• Nenhum resultado encontrado

Milagre

No documento Download/Open (páginas 69-74)

2 ADENTRANDO NO MUNDO DO SEGUNDO TESTAMENTO

2.6 ENTENDENDO PALAVRAS-CHAVE DENTRO DO CONTEXTO

2.6.3 Milagre

Não somente a Bíblia, mas também textos gregos ou judaicos extrabíblicos narram vários milagres. Esses relatos não são registros de ocorrência, mas sim testemunhos de pessoas que crêem. Num mundo em que era natural os deuses se manifestarem, as pessoas daquela época não tinham preocupação de deter-se no fato histórico e aceitavam os milagres espontaneamente. A preocupação era com o significado do fato. É nesse sentido que devemos considerar os milagres narrados pelos evangelistas: aconteceu algo que o povo ou os discípulos perceberam como um fato extraordinário e no qual eles descobriram a interpelação de Deus (VV.AA. 1982, p. 8).

Segundo os mesmos autores, o essencial do milagre é servir como sinal; o que importa é que o sinal fale para a época em que é exposto. Daí que o fato em si pode variar de uma época para outra.

Nos evangelhos sinóticos, as curas realizadas por Jesus são consideradas milagres, e esses são inúmeros4, ocupando lugar importante nas narrativas. As narrativas de milagre que encontramos no Segundo Testamento adotaram certas formas de narrativas tiradas do seu contexto, pois se tem conhecimento de um certo número de milagres atribuídos a gregos contemporâneos de Jesus (HOFIUS, 2000, p. 1290)5 .

Os relatos de milagre são revestidos de um esquema de apresentação bem determinado, conforme veremos ao analisarmos as narrativas nos capítulos III e IV. Conforme Myers (1992, p. 184), o esquema consiste em:

• A pessoa doente é colocada sob a atenção de Jesus (muitas vezes por intermédio de outras pessoas amigas ou parentes).

• Jesus entra em contato com a pessoa doente (às vezes com um diálogo, outras, apenas com gestos).

• Jesus responde: com um toque ou com uma palavra, ou com o toque e a palavra.

• A cura é relatada (muitas vezes são dadas algumas instruções).

4

Veja quadro dos milagres em Cadernos Bíblicos: Os milagres do Evangelho, São Paulo: Paulinas, Calisto Vendrame (1992, p. 32-3). A cura dos doentes na Bíblia, São Paulo: São Camilo: Loyola (2001, p. 47-9).

5

Embora os milagres realizados por Jesus tenham adotado formas de narrativas do contexto da época, chamam nossa atenção as diferenças e as particularidades dos testemunhos dos evangelhos em relação aos realizados pelos theios aner6.

A diferença reside em primeiro lugar no modo como Jesus os fazia: recusa o milagre pelo milagre, sua intenção é sempre o bem global da pessoa, entra em diálogo pessoal com o doente e estabelece um novo relacionamento de salvação. Jesus nunca operou milagres em benefício próprio ou para se projetar (VENDRAME, 2001, p. 104). Devemos considerar também que os milagres de Jesus se realizavam mediante a sua palavra autoritativa à qual se pode acrescentar um gesto (Mc 1,31.41; 5,41; Mt 9,29); rejeitava demonstrações de poder que visariam demonstrar que fora enviado por Deus (Mt 4,5; Lc 4,9 -12; Mt 16,1 -4); em algumas ocasiões proibia que as pessoas curadas divulgassem o fato (Mt 8,30; Mc 5,43; 7,36; Lc 8,56).

Segundo Vendrame (2001, p. 103), o conceito de milagre assumido pelas comunidades cristãs difere do conceito pagão que usa o termo thauma, realçando o caráter prodigioso que provoca esturpor e curiosidade. O Segundo Testamento usa outros termos: semeion (sinal), que evoca a origem divina do evento, e dynamis (ato ou força). A própria palavra teras, que significa prodígio, vem sempre acompanhada do termo semeion.

Mas o que faz acontecer o milagre? No caso das comunidades judaico-cristãs, é a fé, isto é, a confiança no poder de Jesus que transcende todas as possibilidades humanas (Mc 2,5; 5, 34; 7,29; 9, 23-24; Mt 8,10; 9, 28-29). A quem não crê, não é

6

Theios aner são homens extraordinários, aos quais eram reconhecidos poderes e virtudes de homens divinos, deuses curadores. Sobre esse assunto veja Leipoldt, Grundmann (1973, p. 76-84); Vendrame, Calisto (2001, p. 91-106).

concedido o milagre (Mt 13,53-58; Mc 6,1-6). Os milagres de Jesus pressupõem a fé; e esta não é consequência do milagre.

Segundo Hofius (2000, p. 1291), o que distingue definiti vamente os milagres de Jesus dos demais milagres realizados pelos theios aner da época é a sua referência escatológica. As palavras e ações de Jesus são um prenúncio e uma promessa da redenção universal vindoura. A cura dos enfermos, por exemplo, pode ser entendida como testemunho de que todo sofrimento cessará (Ap 21,4), os suprimentos miraculosos de comida são prenúncios do fim de todas as necessidades físicas (Ap 7,16-17).

Quando as narrativas de milagre provocam admiração séria e relevante, a intenção é fazer com que isso seja percebido como um sinal fundamentalmente diferente e não como uma violação da ordem natural que é geralmente conhecida e reconhecida.

Resumindo, podemos reafirmar que a saúde da população tem profunda relação com a organização de uma sociedade, com as suas estruturas socioeconômicas e de como a sociedade se organiza no cuidado - ou não - com a saúde e a dignidade das pessoas que dela fazem parte. Por isso é imprescindível considerarmos o contexto das narrativas bíblicas sobre as curas realizadas por Jesus.

Considerando a forma como as multidões buscam Jesus desde o início de sua missão, os evangelhos nos revelam que, para Jesus, o anúncio do Reino não é feito apenas de palavras e discursos, mas, sim, e acima de tudo, de gestos concretos de libertação. Isso desperta no povo empobrecido a esperança de ver supridas suas necessidades de fome, desalento, saúde e dignidade.

Uma leitura mais atenta dos evangelhos nos permite perceber não apenas que Jesus dedica boa parte de seu tempo com pessoas doentes, mas que ele as trata de forma diferente dos demais curadores da época. Jesus é movido pela compaixão que não apenas cura fisicamente, mas que reintegra e dignifica as pessoas numa perspectiva holística, integral.

Jesus inverte os valores que vigoravam na época e possibilita aos pobres, entre eles os doentes e as mulheres, viverem uma nova experiência. Vai ao encontro, aproxima-se e toca. Porém, não apenas Jesus, mas também pessoas doentes, consideradas impuras e excluídas pela Lei tomam iniciativas inovadoras, corajosas, cujos encontros com Jesus resultam em uma vida mais feliz e saudável.

Essa nova vida feliz e saudável é experimentada no corpo, pois é através do corpo que sentimos e comunicamos sentimentos e entramos em comunhão com outros corpos. Jesus valoriza a corporalidade com gestos de aproximação e de toque que ainda hoje são considerados importantes para a recuperação da pessoa doente, visto que o toque a faz sentir-se acolhida, lembrada e importante para alguém. O contato físico, do qual Jesus nunca se esquiva, valoriza e transforma as pessoas, despertando nelas o desejo de servir/seguir.

Levando em consideração esses aspectos, passaremos agora a estudar algumas narrativas de cura, consideradas milagres, que ficaram na memória das comunidades e que foram registradas nos evangelhos sinóticos.

No documento Download/Open (páginas 69-74)