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Capítulo 3: Elementos poéticos na canção de Vitor Ramil

3.3. Milonga: histórico e elementos formativos

A origem da milonga não é precisa. Mas podemos afirmar com maior precisão a região onde a milonga pode ser encontrada: a Bacia do Prata, território comum ao Brasil, Uruguai e Argentina. Embora alguns rios e outros recursos hídricos que formam a Bacia do Prata estejam em territórios bolivianos e paraguaios, pouco se fala sobre milonga nesses países. Nas fontes pesquisadas, não encontramos informações sobre a milonga em território boliviano. No caso do Paraguai, a milonga parece estar presente especialmente nas zonas de fronteiras com o Brasil e a Argentina. Ela é mais forte na tríade Brasil-Uruguai-Argentina, a ponto de não encontrarmos na Bolívia e no Paraguai nenhum músico representativo da cena local surgida a partir dos anos 1990.

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Não incluímos o disco Foi no mês que vem (2013) por não se tratar de um trabalho inédito.

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Como Ramil regrava com regularidade sua própria obra, algumas canções foram contadas mais de uma vez.

134 A seguir, veremos dois mapas que nos ajudarão a visualizar o espaço geográfico onde a milonga é encontrada. No primeiro mapa, com os rios destacados em azul, vemos a região da Bacia do Prata: são os territórios cortados pelos rios Paraguai, Paraná e Uruguai, que se unem para formar o Rio da Prata. Por sua vez, o Rio da Prata desemboca no oceano Atlântico, onde é usado para o transporte marítimo entre as capitais Buenos Aires e Montevidéu.

A macrorregião da Bacia do Prata entre Brasil, Argentina e Paraguai

No segundo mapa, com um ponto destacado em vermelho, vemos a localização de Pelotas, ou a Satolep de Vitor Ramil, que está no extremo sul do Brasil e já próxima do Uruguai.

135 Localização da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul

No que se refere às origens históricas e socilógicas da milonga, Marcos F. de Moraes (2013, p. 39-40) buscou alguns importantes autores brasileiros e uruguaios que abordaram o tema. A seguir, veremos os principais nomes levantdos na pesquisa de Marcos.

Segundo Paixão Côrtes (1981, p. 46), o ritmo surgiu na Argentina em 1880. O musicólogo Carlos Veja afirma que a milonga esteve prestes a desparecer, quando foi resgatada pela payada a partir dos contrapontos em forma de versos criados pelos payadores. Moraes (2013, p. 46) define a payada como:

forma de expressão artística onde os versos (trovas) são declamados na companhia das notas tocadas ao violão. A payada era a manifestação poética cantada pelos campesinos do pampa. O ritmo característico da milonga se assemelha muito à base musical das payadas e alguns autores afirmam que a milonga têm suas origens nessa expressão trovadora. O payador se converte em milongueiro na payada por milonga.

Lauro Ayestarán (1979, p. 68) também afirma que a milonga surge a partir da expressão trovadora da payada e defende três funções para a milonga no final do século

136 XIX: dança que acompanha o baile de pareja, a canção criolla e a payada de contrapunto, que corresponde ao duelo poético. E completa:

En 1880, el payador legendario se ha transformado en el milonguero. [...] El esquema psicológico en el payador se repite textualmente en el milonguero. [...] Cambia el ambiente, cambia la estrofa e cambia el contenido, pero la actitude del ‘trovero’ – del que trova, halla o inventa – es la misma.

Moraes (2013, p. 39-40) complementa informando que apesar de a milonga poder ser executada na forma instrumental, sua sonoridade incorpora a tradição da palavra cantada na poesia gaúcha, ligada ao cancioneiro popular, nos quais os versos oralizados são acompanhados pelas notas tocadas ao violão.

Alberto Juvenal de Oliveira (2005, p. 180) estabelece um significado para a palavra milonga: “espécie de música platina dolente, em ritmo binário, cantada ao som do violão”. Essa definição está de acordo com a explicação dada por Cezimbra Jacques no livro Assuntos do Rio Grande do Sul (1912).

A partir do ponto de vista etimológico, Câmara Cascudo (2000, p. 83) afirma que milonga “é um termo originário da língua bundo-congolense, plural de mulonga (palavra), usadosó entre os negros, significando palavrada, palavras tolas ou insolentes [...]”75

.

Por fim, podemos encontrar atualmente, no dicionário Michaelis76, a seguinte definição: “toada dolente de origem platina, cantada ao som do violão ou da guitarra”.

No ensaio A estética do frio, Ramil também afirma que o vocábulo milonga é de origem africana, plural de mulonga, que significa palavra. Acrescenta ainda que vê a milonga como “uma forma musical simples e concisa a serviço do pensamento e das palavras” (RAMIL, 2004, p. 22). A própria definição de Ramil vem de encontro ao seu

75

Para as citações dos autores, cf. MORAES, Marcos Ferreira de, 2013.

76

Michaelis online: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues- portugues&palavra=milonga, acesso em 18/01/2016, às 16:42.

137 projeto poético-cancional, com uma ideologia voltada para as letras e para um tipo de interpretação vocal discreta.

A exemplo dos autores apresentados, Ramil diz o seguinte:

A discussão em torno de sua origem expressa bastante bem sua relevância no encontro dessas três culturas [Rio Grande do Sul, Argentina e Uruguai]: há teses para sua origem rio-grandense, sua origem argentina e sua origem uruguaia; sua ascendência ora é portuguesa, ora espanhola, ora latino-americana mesmo, mais especificamente cubana (RAMIL, 2004, p. 21).

Devido à imprecisão de sua origem, Ramil constrói o lugar de sua (ra)milonga a a partir do afeto e da sua própria vivência musical:

Do lado de cá das fronteiras, modestamente, eu a associava à imagem altamente definida do gaúcho e do pampa. A milonga me soava uma poderosa sugestão de unidade, a expressão musical e poética do frio por excelência (RAMIL, 2004, p. 22).

Para Ramil, a materialização musical que consegue unir o sul do Brasil, a Argentina e o Uruguai está na milonga, que além de ser comum aos três países, é “afeita à melancolia, à densidade e à reflexão; apropriada tanto aos voos épicos como aos líricos, tanto à tensão como à suavidade, e cuja espinha dorsal são o violão e a voz” (RAMIL, 2004, p. 22).

O compositor uruguaio Alfredo Zitarrosa apelidou a milonga de blues de Montevideu, pois existe uma aproximação simbólica entre o blues norte-americano e a milonga: ambas são canções surgidas nas camadas populares próximas ou ligadas ao campo; muitos de seus compositores e cantores não dominavam a escrita e a leitura formais, de modo que a canção muitas vezes era transmitida pela própria vivência em detrimento dos estudos tradicionais; e, como apontado por Graziano (2011), o blues nasce no Mississipi e a milonga no Rio da Prata. O músico gaúcho Oly Jr. desenvolve um trabalho no qual explora a relação entre o blues e a milonga. Dessa aproximação, ele lançou dois discos em que já regravou algumas músicas de Vitor Ramil e Vargas, como

138 “Deixando o pago” e “Chimarrão”77

. Para Zitarrosa, a capacidade de fundir-se a outros gêneros sem dificuldade era uma das características da milonga; para o compositor argentino Atahualpa Yupanqui, as formas possíveis da milonga seriam tantas quantas fossem as possíveis formas de tocá-la78.

Percebemos alguns pontos importantes tocados pelos autores: a milonga está associada às camadas populares e ao cancioneiro popular, geralmente acompanhada de voz e violão; pela sua organização, é um tipo de canção que servia como meio de duelo entre os cantadores, o que nos permite inferir que o ritmo e a rima deviam estar presentes em sua estrutura versificada; o compasso da canção, especialmente no disco Délibáb, é binária (ou binária simples), isto é, tem duas batidas. Ramil também usa a organização binária composta, na qual as batidas são divididas em três partes.

O fato de o ritmo ter diversas possíveis ascendências e ter vindo se adaptando a distintos contextos e novos ritmos, dificulta ainda mais a localização da sua origem. Um dos exemplos mais populares pode ser visto na incorporação de elementos da milonga pelo tango, que se tornou um tipo de música alegre, dançante e geralmente acompanhada pelo acordeom – esse tipo de tango-milonga pode ser facilmente ouvido nas apresentações abertas de tango na feira de San Telmo ou em outros pontos turísticos da cidade de Buenos Aires.

Ao mesmo tempo, continua existindo a milonga campeira, pampeana ou a milonga-canção79, geralmente associada ao homem do campo, ao gaúcho típico do interior do Rio Grande do Sul; é um tipo de música mais melancólica, lírica, e está relacionada diretamente à voz e ao violão, ganhando características mais intimistas. Seria a canção por excelência do gaúcho (estereotipado) imaginado tanto regionalmente, isto é, no sul, quanto no Brasil quente – e é especialmente esta vertente da milonga que interessa a Ramil.

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Ver os seguintes discos de Oly. Jr.: Milonga Bues (2009) e Milonga em blue (notas do Delta) (2012).

78

Apud RAMIL, 2004, p. 22.

79

Milonga campeira, milonga pampeana ou milonga-canção são termos utilizados por Vitor Ramil. Cf. RAMIL, 2004, p. 22.

139 A respeito dessas hibridações, Moraes afirma que alguns artistas contemporâneos estão trabalhando com propostas de renovação de repertório, algumas vezes passando a dialogar com temáticas urbanas, outras vezes aderindo a um andamento mais rápido, com vestígios próximos do tango. No entanto, muitos não desprezam as origens rurais, pois conseguem manter certos formatos tradicionais, como o andamento mais lento e a proximidade das expressões folclóricas da região do Prata. Ressalta ainda que no Rio Grande do Sul, de modo geral, a milonga é aceita entre artistas e público, adaptando-se com certa facilidade às linguagens gaúchas e mantendo presente o compasso binário (MORAES, 2013, p. 40).

Parece-nos que o processo de renovação da milonga tradicional, isto é, o processo de agregar novas formas, instrumentos, valores, nuances musicais, é o que faz a própria milonga continuar viva e ganhar mais projeção, conquistando novos adeptos, especialmente junto à camada jovem urbana. Jorge Drexler afirma o seguinte: “quem defende a milonga de maneira ortodoxa está fazendo um dano enorme à milonga”80.

O disco Ramilonga, um marco importante e categórico na renovação da milonga, contribuiu de maneira decisiva para uma maior popularidade e interesse para o gênero. A repercussão ultrapassou as barreiras do Rio Grande do Sul e estimulou o surgimento de uma nova geração de músicos milongueiros, alguns dos quais sem qualquer tipo de contato anterior com a milonga. O músico argentino Pablo Grinjot fala sobre própria experiência:

Eu pensava que as vanguardas estavam no rock dos anos 90, Jamiroquai e umas bobagens assim. Eu acho que é boa música, mas não a minha [música], nem a música que tenho que defender. E por essa razão quase política, por defender algo que sinto que é nosso e da nossa terra, porque não sou milongueiro, não venho do campo, não escutei milonga quando era criança, mas aí apareceu um desejo de defender algo que me parecia próprio. E depois vem a identificação com vários músicos, que vai saber por que razão cada um adota a milonga [...]81

80

Citação tirada do documentário A linha fria do horizonte, 2014.

81

140 Antes de A estética do frio e da problemática levantada por Ramil, a percepção dessa “música da nossa terra” de que fala Grinjot era mais vaga. A estética do frio é o movimento inicial que impulsiona essa percepção nos músicos da região e que nos parece, no momento, atingir outras modalidades de arte, movimentando poetas, artistas plásticos e a classe artística como um todo, a exemplo da poetisa Angélica Freitas82 e do artista plástico e quadrinista Odyr, ambos pelotenses e residentes em Pelotas. Tanto Angélica Freitas como Odyr flertam artisticamente com Ramil a partir da própria estética do frio83.

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