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A MIMESE PERMANENTE

2.13. Mimese permanente

Sabemos que, nos nossos dias como no século XX, existe um segmento relevante das audiências que se reconhece e se identifica com o teatro não-dramático ou com aquilo a que, na sequência de Lehmann, temos vindo a chamar o pós-dramático. Esse público, possivelmente mais esclarecido, reconhece e identifica-se com os mecanismos de distanciação utilizados nas visões, muito diferentes entre si, de Brecht, Foreman ou La Compte, e reconhece aqueles mecanismos como formas de chegar à verdade artística. Mas esta identificação, que é histórica, não é incompatível com o entendimento lato de mimese que defendemos e que atribuímos a Aristóteles. Pelo contrário, os objectivos de empatia e catarse descritos por Aristóteles podem ainda reconhecer-se hoje, inclusive nas mais variadas expressões artísticas do século XXI. Cremos por isso que nas artes os mecanismos de empatia do público são sempre necessários, até, ironicamente, para fazer aceitar os mecanismos da distanciação. Podemos afirmar que existe sempre empatia, e que a causa dessa existência é, como defendeu Aristóteles, “natural”. De facto, mesmo Artaud aderiu, se identificou, e se emocionou com o Teatro de Bali que viu pela primeira vez em Paris. A visão de teatro que esses espectáculos nele despoletaram resulta incontestavelmente de uma adesão empática e por isso,

profundamente catártica. Brecht também procurou essa espécie de verdade, insistindo das mais variadas formas na atenção dos espectadores para o mundo em que vivem, e na

53 importância de os levar a reflectir, a olhar para os factos de diferentes pontos de vista, a pôr questões, a interrogar as evidências. Não existe nesta perspectiva uma diferença fundamental entre os propósitos de Artaud e de Brecht e aquilo que Stanislavski dizia ser o objectivo fundamental do actor em relação aos espectadores: “tocá-los

profundamente”. Por muito diferentes que sejam, e são, as suas concepções de teatro e os seus objectivos, os efeitos sobre espectador permanecem uma preocupação comum e sobretudo uma sua condição necessária.

O teatro de Brecht, de Robert Wilson ou de Richard Foreman, como aliás a pintura não- figurativa de Mondrian ou de Rothko, propõem em em todos os casos visões artísticas que requerem formas de reconhecimento, seja ‘reconhecimento’ definido como realidade intelectual ou como realidade sensorial. Nunca poderemos eliminar da nossa noção de arte, e da própria ideia de arte, a interacção dinâmica entre logos, discurso, e pathos, emoção. Como afirma Hans-Ulrich Gumbrecht, a arte, e por isso a experiência estética, oscila por definição entre a produção de presença e a produção de sentido:

Se admitirmos que não existe experiência estética sem um efeito de presença e não há efeitos de presença sem que esteja em jogo a substância e se aceitarmos que o componente da presença na tensão ou oscilação que constitui a experiência estética nunca pode ser estabilizado, segue-se que sempre que um objecto da experiência estética surge e por momentos produz em nós essa sensação de intensidade, ela parece vir do nada. (2004:141)

Por mais fragmentários e anti-dramáticos que se proclamem, os teatros de Richard Foreman ou de Robert Wilson constituem expressões artísticas assentes num discurso articulado convincente e inegável, que requer formas de assentimento, e nessa medida de reconhecimento, por parte das suas audiências. Por essa razão, como afirma Gumbrecht,

. . . uma reflexão sobre a presença considerará pertinente e inevitável qualquer tradição conceptual, a começar pela filosofia de Aristóteles, que tenha a ver com

54 a substância e o espaço . . . [A] “produção de presença” não elimina a dimensão da interpretação e da produção de sentido. (2004:39)

A criação artística será assim nesta perspectiva expressão complementar e dialéctica entre um logos e de um pathos. Reconhecemos evidentemente aqui, a oposição entre apolíneo e dionisíaco, geradora da obra de arte, identificada famosamente por Nietzsche em O nascimento da tragédia.

Simetricamente pode também dizer-se que não é exacto, quer para Aristóteles quer sequer para Stanislavski, que a procura da verdade em arte ou daquilo a que Aristóteles chama o belo ou o “bem feito” passe por uma reprodução da realidade. A verdade artística é procurada e acontece através de uma combinação de mimese, de empatia e de emoção catártica nos sentidos alargados que vimos discutindo, de uma combinação daqueles factores a que Aristóteles, sempre chamou “causas naturais”.

A diferença entre teatro dramático e teatro pós-dramático não é assim uma diferença entre teatro mimético e teatro não-mimético. A clivagem, e aquilo que motivou muitas pessoas a insistirem na distinção (e a, como observa Goodman, colocarem a pergunta de modo errado), encontra-se antes nas formas, ou naquilo a que acima chamámos forma de contar histórias.

O que distingue o teatro pós-dramático do teatro “dramático” é em nosso entender a não-hierarquização dos elementos tradicionais definidos por Aristóteles. Sublinhámos em vários momentos deste capítulo vários traços distintivos desse fenómeno.

Tentemos agora resumi-los em dois núcleos: em primeiro lugar, o afastamento ideológico da história contada do ponto de vista quase exclusivo do protagonista, acompanhada muitas vezes pelo modo como o movimento e corpo ganham uma autonomia artística independente da narrativa psicológica das personagens, e pela recusa da colagem ilusionista do actor à personagem. Em segundo lugar, a não- existência frequente de uma relação de causa e efeito no enredo. Esta situação é por vezes descrita como uma recusa radical do mythos, mas é perfeitamente compatível com a consideração de que se tratará porventura de um outro tipo, um tipo menos familiar,

55 de enredo. Pensamos por isso que mais uma vez se trata de um aumento de variedades, modos e formas de narrar; não de um desaparecimento do mythos, mas da pulverização da sua unidade tradicional.

O que, em nosso entender, se alterou inegavelmente na linguagem performativa do último quartel do século XX pode por isso ser definido como uma forma de contar histórias. O fenómeno mimético, descrito por Aristóteles como elemento constitutivo de todas as artes, manteve-se. A questão da verdade, da identificação (empatia) e da catarse, que o mesmo é dizer a questão da mimese, são questões permanentes. Um efeito muito importante desta alteração verificou-se na concepção da arte do actor e nos modos de pesquisa que esta arte prossegue e desenvolve. Exprimiu-se através de uma renovação na forma e no caminho para alcançar uma mimese reconhecível do mundo e das acções humanas. No próximo capítulo discutiremos em pormenor essa alteração, através de uma consideração pormenorizada da obra de PK.

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CAPÍTULO 3