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2. A VILA OPERÁRIA PRÓSPERA: ENTRE DISCURSOS, PRÁTICAS E

2.4 Mina, boteco e Maracangalha: noitadas alegres em antros sórdidos

O trabalho nas minas de carvão, como afirmamos, requeria grande esforço físico e atenção a fim de que se evitassem possíveis acidentes nas galerias. Para que não houvesse surpresas desagradáveis, era preciso que o mineiro ao chegar em casa tivesse uma noite sossegada de sono, pois, na manhã seguinte, este deveria estar pronto para mais uma jornada exaustiva de trabalho. Este era, o procedimento esperado do mineiro que trabalhava em uma das carboníferas mais importantes da cidade. Mas ao deixar as entranhas da terra, o operário dirigia-se a sua casa e, ali encontrava a esposa e seus filhos, dividindo o espaço minúsculo.

173 MARIA AMÂNCIO ALVES: Depoimento [08 de outubro de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

Segundo a socióloga Martine Segalen, a habitação exígua é o espaço da mulher e dos filhos, o marido sente-se excluído, e como local para se divertir após as estafantes jornadas de trabalho, só tem o bar, em companhia de outros homens.175 Para Antoine Prost, na maioria das vezes quando o homem regressava do trabalho, este estava retornando para a casa da mulher. O homem não podia tomar iniciativas nesse espaço sem sujar, quebrar ou desarrumar; disso resultavam as sociabilidades masculinas fora da esfera do doméstico.176

Na maioria das famílias de mineiros a rotina era a mesma. Ao sair do trabalho o homem passava primeiro no bar para tomar um gole de cachaça como “aperitivo”. Após, dirigia-se para casa onde tomava um banho preparado pela esposa em uma bacia colocada no centro da cozinha. Esta, em seguida, lhe servia o jantar. Após cumprir este “ritual” diário o mineiro retornava para o botequim.177 O boteco passou a configurar no ideário burguês como

um local de subversão, onde bandos de “desordeiros” encontravam-se para conversas “regadas” a muita cachaça e a jogos de carteado. A estigmatização desta opção de lazer dos pobres urbanos, tinha como principal objetivo afastar os trabalhadores destes “antros de perdição”, pois, pouco a pouco, de gole em gole, este atravessaria linha tênue que separava o operário pobre do “desocupado vagabundo”. Segundo Marlene de Fáveri,

O conceito de homem, na época é aquele que não deixa a família à mercê, mas a protege, alimenta, e trabalha – o trabalho como valor e sinônimo de dignidade. Segundo os pressupostos burgueses, o trabalho é uma virtude, liberta o homem do mundo da natureza e lhe garante a condição de ser livre [...] Nos anos de 1930 e 1940, o trabalho retinha a idéia de virtude imbuída do liberalismo: ser cidadão era produzir riquezas, ter carteira de trabalho e estar moralmente dentro da concepção dos direitos e deveres para com o Estado [...] Isto era ser homem naquele momento, pautado no ideário que permeava o universo masculino: prover a família, melhorar de vida, ser honrado, e assentado nos valores de família e pátria.178

O bar representava um verdadeiro obstáculo para a introjeção dos valores morais do trabalho e da poupança. Gastando os parcos trocados do orçamento familiar, recairia então sobre o Estado a assistência a família. Segundo Jacques Donzelot, incitando indivíduos à poupança, o Estado diminuiria o seu ônus sobre a gestão da população, transferindo para esfera do privado encargos demasiadamente pesados para a administração pública, e para que isso ocorresse, era preciso que a própria família assumisse certas funções, tais como, cuidar,

175 SEGALEN, 1999 [b], op. cit., p. 285. 176 PROST, 1992, op. cit., p. 78.

177 JOSÉ DA SILVA: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

178 FÁVERI, Marlene de. Guerra e papéis masculinos: reflexões na perspectiva de gênero. In: Anais do XXIII Simpósio Nacional de História: Guerra e Paz. Londrina: ANPUH: 2005. p. 03-04.

alimentar e zelar pela saúde de todos os seus membros.179 Esperava-se que o homem assumisse o seu lugar de chefe e provedor da casa. Segundo o historiador Edmar H. D. Davi, “nossa sociedade, pelos menos até o final do século XX é permeada por valores machistas e heterossexistas. Aos homens cabe o controle da sociedade, enquanto as mulheres é reservado o espaço doméstico”.180 Ao se entregar ao consumo de álcool, o homem paulatinamente acabaria por perder o controle sobre sua prole deixando de ser a baliza moral da família, como alerta o articulista do jornal Tribuna Criciumense.

[...] a ação do álcool não se limita apenas a ruína do organismo humano [...] Êle [sic] vai mais longe, desgraçadamente por que afeta profunda e irremediavelmente a personalidade, a moral do homem. Um indivíduo que se embriaga por vício prolongado, é um deprimido, não tem mais fôrça [sic] de vontade, foge ao comprimento [sic] do seu dever e de chefe de família, não inspira confiança a ninguém, é em suma desmoralizado, de quem todos procuram fugir e se afastar.181

Para o historiador Sidney Chalhoub, tantos os homens do poder quanto os cientistas sociais, tendem a analisar as práticas das camadas populares urbanas através de um prisma, no qual escolhem como condutas ideais aquelas praticadas pelas camadas dominantes e que pretensamente são tomadas como “universais”. A partir deste ponto, constata-se que a conduta real vivida pelas camadas populares não se ajusta aos padrões organizados pelas elites, e, por isso, suas sociabilidades cotidianas são observadas através de uma lupa onde a desordem e pela promiscuidade aparecem como características preponderantes das camadas pobres urbanas.182 Já para o historiador Pierre Mayol, o bar é um lugar ambíguo, pois, ao mesmo, tempo que para os seus freqüentadores ele se torna uma recompensa por um dia estafante de trabalho; por outro lado, ele é terrivelmente temido pela propensão ao alcoolismo que ele parece autorizar.183

O uso imoderado de bebidas alcoólicas, dos trabalhadores mineiros da vila operária Próspera provocava desentendimento entre cônjuges, como relembra Irmã Cláudia: “Irmã não tem jeito o meu marido bebe muito e quando chega em casa não tem paciência com as

179 DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. 3ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p. 55-63.

180 DAVI, Edmar Henrique Dairell. Macho a qualquer custo. Investigação das relações de gênero através da análise de processos criminais. Uberlândia, 1975. In: Caderno espaço feminino, vol 13, n 16. Uberlândia: CDHIS, 2005. p.91.

181 FERNANDES, Juarez. Alcoolismo (ou etilismo, para os alcoólatras granfinos). Tribuna Criciumense. Criciuma, 14 de abril de 1960. p. 3.

182 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. São Paulo: Editora brasiliense, 1986. p. 114.

crianças”.184 Além de desestabilizar a relação vigente entre o casal, o uso imoderado de álcool também era percebido pela empresa mineradora como uma das causas para baixa produtividade de seus operários.

[...] outra causa de fadiga entre o operariado da indústria carbonífera é, sem dúvida, o uso imoderado de álcool, que além do mais é causa determinante de acidentes diversos, exercendo ainda nefasta influência sobre a eficiência do operário.185

Local onde se desenrolavam as sociabilidades tidas como propriamente masculinas, e a principal opção de lazer entre as camadas pobres urbanas, os bares existentes nos arredores da vila operária foram incessantemente criticados pelo médico Francisco de Paula Boa Nova Junior, que via nestes lugares um “palco” privilegiado para o consumo excessivo de álcool. Segundo o sanitarista, o consumo mesmo em doses moderadas estava diretamente relacionado aos constantes acidentes no interior das minas.

A questão da responsabilidade do álcool, usado em dose moderada, sôbre [sic] a mortalidade, não deixa dúvidas de que, pela ação sedativa e narcótica que exerce sôbre o sistema nervoso, mesmo em quotas não excessivas, o álcool afeta a produtividade do operário e faz crescer a cifra de êrros e acidentes, tanto mais, quanto mais delicadas a tarefa do operário, prejudicando assim, quantitativa e qualitativamente, o trabalho. [sic]186

Além do combate ao consumo de bebidas alcoólicas, por este estar diretamente relacionado à produtividade operária, Francisco de Paula Boa Nova Junior, atacou uma série de outras práticas cotidianas masculinas que este denominava de desregramentos. Neste discurso há uma associação entre o corpo e a conduta moral. “Tais desregramentos se apresentam sob várias modalidades, dentre as quais citam-se os jogos de carta e as brigas de galo”.187 Estas práticas cotidianas eram perseguidas sobretudo porque retirava os homens do lar. As noitadas de jogatinas, pouco a pouco, transformavam “exímios trabalhadores” em “sombras” daquilo que deveriam ser os “verdadeiros operários”. Para o médico, a união do labor exaustivo no interior das minas com noitadas inteiras dedicadas a “farra” debilitariam de forma irreversível a capacidade física de cada um dos operários mineiros. Além de diminuir consideravelmente a produtividade, a participação nas rodas de jogos de azar necessitava do empenho de certa quantia de dinheiro para as apostas. O mineiro perdia os seus últimos

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CLÁUDIA FREITAS: Depoimento [05 de outubro de 2007]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

185 BOA NOVA JUNIOR, 1953, op. cit., p. 65. 186 Ibid. p. 65.

tostões e, às vezes, todo o seu salário mensal deixando sua família desamparada financeiramente. Conforme afirma Nilo de Oliveira, “infelizmente, o nosso pessoal da Próspera era chegado em uma cachaça. Os pais saíam das minas, tomavam banho e iam para bodegas jogar o seu baralhinho e tomar uma ‘caninha’”.188 Nos jornais da cidade, eram também freqüentes os artigos que condenavam os jogos de azar, pela “ameaça moral” que eles representavam às famílias:

Hoje as 20 hs, na Praça Nereu Ramos, ao ar livre, será o lugar do sensacional encontro Mampituba versus Comerciário e outros antros menores, em disputa do lindo troféu: Criciúma, o principado catarinense do jôgo [sic]. Serão distribuídos às crianças, cartilhas para o aprendizado da jogatina, com explicações práticas pelos ases do pano verde, como se trapacea [sic] no pif-paf, bacará, campista, jôgo [sic] do bicho. Nos dias e noites seguintes, o torneio prosseguirá entre os “clubes” e “bodegas” das redondezas e interior do município. Grandes fogueiras serão armadas com a lei das contravenções penais. [...] Centenas de crianças acompanhadas de seus pais, viciados ou não, nos intervalos da disputa, receberam dos “catedráticos” da jogatina, aulas práticas, como arranjar dinheiro para “divertirem-se nesse humanitário e instrutivo passa-tempo (limpa bolsos, arruinadores de lares, pervertedor do caráter, etc.)189

Francisco de Paula Boa Nova Junior, em seu relatório, infere sobre outra prática cotidiana muito comum entre os homens da vila operária Próspera: as freqüentes idas às zonas de prostituição da cidade.

A vida boêmia a que certos operários de Criciúma se entregam, alguns mesmo legalmente casados, constitúe [sic] outro desregramento de vida que concorre preponderantemente para a existência de muitos casos de fadiga entre o operariado da região. Noitadas alegres em antros sórdidos povoados de infelizes mercadoras em precárias condições de saúde, sub-alimentadas [sic] e portadoras das mais variadas enfermidades, entre as quais já foram constatados até casos de tuberculose aberta, afora as que comumente campeiam nos “bas fonds” de tôdas [sic] as cidades, são passadas em claro por muitos operários, num desperdício de dinheiro, ganho à custa de ináuditos [sic] esforços, de saúde, às vêzes [sic] bastante precária, e de energia quase sempre minguada.190

Quando o médico se reporta a antros sórdidos, sugere que várias as “casas de tolerância” estavam em funcionamento na cidade neste período. Apesar de este estar apenas analisando os trabalhadores mineiros, isto não significa que este grupo fosse o único a freqüentar as zonas de meretrício. Possivelmente esta fosse uma prática muito comum entre os moradores da cidade, mineradores, mineiros, funcionários públicos, colonos, etc., mas por

188 Nilo de Olveira. In: SILVA; PATRÍCIO; 2001, op. cit., p.77.

189 Atenção mães e esposas! Atenção pais de família. Tribuna Criciumense. Criciúma, 8 de julho de 1957. p. 01.

ser uma conduta considerada imoral, os grandes figurões da cidade não aparecem nas denúncias, ficando a análise restrita somente ao círculo dos proletários.

Entre os moradores do município, assim como entre os habitantes da vila operária Próspera, a zona de prostituição mais conhecida era a Maracangalha,191 uma espécie de remanescente de outra casa de tolerância, também muito representativa no “submundo” da prostituição da cidade, a Casa Verde. A Maracangalha era formada por um conjunto de casas construídas no Bairro Vinte, localizado nas proximidades do Morro Cechinel, com o único objetivo de serem alugadas para mulheres que vinham de outras regiões ou mesmo da própria cidade, que ali se estabeleciam para a prática da prostituição. Além dos quartos de aluguel, a Maracangalha ainda contava com um pequeno número de bares, onde os freqüentadores deixavam parte do seu dinheiro, quanto mais a prostituta fizesse o cliente gastar maior seria o lucro da casa.

A Maracangalha era um lugar assiduamente freqüentado pelos mineiros da vila operária Próspera. Muitos após o término de seu turno de trabalho seguiam direto para a zona de prostituição, principalmente após o pagamento, como relata Ilda Pizzetti: “tinha uma tal Maracangalha lá, que eles gastavam o dinheiro, botavam todo o dinheiro fora, jogavam, as mulheres tinham que ir atrás dos maridos”.192 Ciente desta prática comum entre os seus trabalhadores, e com a finalidade de regular o uso racional do orçamento doméstico a Carbonífera Próspera S.A. transferiu parte dos salários de seus mineiros para uma caderneta que era entregue às mulheres. Estas podiam gastar um percentagem da remuneração mensal de seu marido no mercado da mineradora, sendo descontado, posteriormente, na folha de pagamento.

Diante destes considerados “desregramentos”, o sanitarista Francisco de Paula Boa Nova Junior propõe às carboníferas,

O amplo combate ao jogo, sob qualquer forma, e à prostituição desregrada seriam medidas a serem no caso adotadas em defesa de uma geração de operários já bastante viciada e esgotada no pleno verdor dos seus 25 ou 30 anos de existência, com remotas possibilidades de atingir pelo menos a uma longevidade de 40 anos [...]193

191 Sobre a Maracangalha ver: FRAGA, Adriana Vieira. Maracangalha: “vilarejo das desocupadas”: espaço de prostituição e boemia na região carbonífera catarinense (1955-1980). 2008. Dissertação Mestrado em História – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.

192 ILDA PIZZETTI: Depoimento [31 de junho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

Mesmo com as incessantes tentativas de coibir os mineiros de freqüentar a Maracangalha esta foi uma prática que perdurou por muitos anos. Alguns trabalhadores até deixavam suas famílias para viver definitivamente naquele local. Segundo José da Silva “tinha um cara lá da Próspera que ficou parando de vez ali, não vinha mais embora, largou a família e ficou ali, isso acontecia muito”.194 Por serem trabalhadores da maior empresa mineradora da cidade, subsidiaria de uma estatal, os mineiros da vila operária Próspera eram bem recebidos nos botecos da região, e considerados os preferidos das mulheres que trabalhavam na Maracangalha. Com rendimentos superiores ao dos outros trabalhadores mineiros de Criciúma, os operários da Próspera gastavam boas quantias em dinheiro nestes locais que não deixaram de funcionar nos arredores da empresa apesar dos insistentes apelos do médico. Por esse motivo, relembra o Sr José da Silva, “teve uma época que saiu o décimo terceiro da Próspera, e as mulheres da zona colocaram uma faixa bem grande: Salve o Décimo

Terceiro da Próspera”.195

194 JOSÉ DA SILVA: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

195 JOSÉ DA SILVA: Depoimento [02 de julho de 2008]. Entrevistador Ismael Gonçalves Alves. Criciúma: Acervo pessoal, 2008.

3. AS PEQUENAS IRMÃS DA DIVINA PROVIDÊNCIA NA VILA OPERÁRIA