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Privar a crença de sua ontologia, sob o pretexto que ela tomaria lugar no interior do sujeito, é desconhecer, ao mesmo tempo, os objetos e os atores humanos. É não conseguir atingir a sabedoria dos fe(i)tiches (LATOUR, 2002, p.79).

Então, depois de vivenciar o cotidiano da escola Centro Educacional Infantil

Três Pastorinhos, busco neste tópico dialogar e refletir sobre sensações que me

afetaram quando igualmente pratiquei aquele cotidiano escolar. Desta maneira, me “confundi” com o meu “objeto” de estudo, o qual foi a dinâmica cotidiana daquela escola, trazendo aqui a desconstrução que vivenciei no processo da pesquisa. Como pesquisadora, escrever este trabalho foi como entrar em uma “montanha russa”, me “virar de ponta cabeça” e viver vários sentimentos, todos juntos e misturados, não tentando defini-los, mas buscando me conhecer por meio da desordem, da insegurança e dos conflitos por mim vivenciados no processo da pesquisa.

Pois bem, como já sublinhado neste trabalho, também fui formada pelos modos de subjetivação católico, sendo que minha família, tanto paterna quanto materna, praticam a religião católica. Uma das minhas maiores influências religiosas é a minha avó materna que sempre foi muito envolvida com religião. Deste modo, desde pequena a minha mãe também dizia ter recordações de zelo da minha avó com a igreja do município em que moravam, varrendo-a e também a enfeitando em momentos comemorativos. Assim, compor o histórico da creche foi recordar sobre a minha própria constituição familiar.

Desde pequena sempre acreditei em Deus e em Nossa Senhora, participava de grupos de oração e rosários com a minha mãe. Eu era aquela filha que gostava de rezar junto com a mãe nos momentos de aflição (fazemos isto até hoje) e meus sentimentos religiosos sempre foram profundos. Na graduação em pedagogia na UFV, quando comecei a participar do “Grupo Cotidianos em Devir”, acabei por me afastar um pouco da religião, pois aprendi a questionar as verdades absolutas e o modelo transcendental (modelo único, perfeito e ideal de existência), até que, quando estava prestes a me formar, passei por um momento difícil na minha vida pessoal e decidi recorrer novamente à religião católica. Desta vez, havia prometido a mim mesma que não me afastaria das minhas crenças, pois não queria viver sem Deus em minha vida, uma vez que sempre sentia a sua presença e sua força no meu dia a dia.

Ainda, naquele período, pensei em tentar o processo seletivo do mestrado acadêmico, mas confesso que às vezes ficava com receio de perder a minha fé e isso eu não queria. Então, voltei a participar do “Grupo de Oração Filhas de Maria”, que se reunia todas às quartas-feiras no salão paroquial da Igreja Santa Rita de Cássia, localizada na cidade de Viçosa - Minas Gerais. Logo fiz um pedido a uma das intercessoras32 daquele grupo para que rezasse junto comigo e expliquei a minha dúvida com relação ao mestrado. No momento da oração, a intercessora pronunciou que era para eu tentar a pós-graduação e não ter medo de perder a minha fé. Depois de relembrar todas estas situações, percebo que, assim como Marta e Helena, eu também caminhei, e às vezes ainda caminho, seguindo o poder da transcendência e das “ordens” sobrenaturais e divinas transmitidas por Deus.

No que diz respeito ao modo em que a escola pesquisada buscava formar as crianças, também se assemelha à formação em que recebi enquanto criança. Em vista disso, considero necessário apresentar a minha composição familiar. Tenho um pai, uma mãe e quatro irmãos, sendo eu a filha mais nova que veio nesta vida por insistência. Minha mãe fez uma laqueadura aos 22 anos de idade, após o nascimento de seu quarto filho e, mesmo assim, cheguei ao mundo. Considero-me o fruto do acaso, do imprevisto e minha educação foi uma mistura de autonomia e obediência. No que diz respeito à autonomia, desde pequena aprendi a resolver os meus problemas e necessidades, já que a minha mãe cuidava em casa de cinco filhos e o meu pai sempre foi aquele que trabalhava fora para nos sustentar financeiramente.

Nesta perspectiva, consegui estabelecer um ponto de conciliação entre a minha composição de vida e a história apresentada nas cenas referentes ao cotidiano escolar das crianças de três anos, uma vez que também percebi esta mistura de autonomia e obediência. Na maioria das vezes as crianças da creche pesquisada também resolviam seus problemas e necessidades, sejam indo sozinhas ao banheiro, limpando o nariz ou calçando os sapatos. Portanto, na escola pesquisada, as professoras reforçavam a importância do “bom comportamento” e a minha educação familiar também priorizava o mesmo. Era necessário ser obediente, não responder meus pais ou os mais velhos; não podia interromper os adultos enquanto eles estavam falando; era preciso fazer tudo o que eles dissessem, seguindo sempre as regras que eles designavam. Muitas vezes,

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As Intercessoras no Grupo de Oração são aquelas que se assemelham à Virgem Maria e intercedem as graças e os pedidos à Deus. As intercessoras organizam o Grupo de Oração, estão sempre rezando o rosário, assistindo missas e comungando todos os dias, por isso Deus transmite mensagens por meio delas.

contudo, fui privada da possibilidade de me expressar como gostaria; mas muitas outras tentei transgredir e nem sempre acatava todas as ordens, procurando questionar e burlar as normas impostas.

Um exemplo, dentre tantos outros que eu poderia citar, era o momento do almoço. A ordem era: não levantar da mesa enquanto não acabar de comer todo o

alimento. Esperava, então, por momentos de distração da minha mãe e eu alimentava o

cachorro da casa, para, logo após, afirmar que havia almoçado toda a comida do prato. Este episódio foi repetido muitas vezes e a minha mãe nunca descobriu: eu resistia à norma e, paradoxalmente, sempre era parabenizada por não “me alimentar” como deveria. Imagino que seja por isso que a socialização e o disciplinamento imposto às crianças pelos adultos me trouxe provocações pelo meu contexto de vida, justificando o meu desejo de estudar a produção social da infância. Desta forma, no cotidiano escolar pesquisado também não era diferente, Vanessa e Saulo também transgrediam as normas impostas; eles utilizavam, assim como eu, o tempo oportuno.

No que se refere à professora da Turma da Girafinha, também me problematizei por meio dela. Percebi nossas semelhanças fosse pelo esforço, dedicação, carinho com as crianças, fosse pelo desejo de deixá-las mais livres. Também vivi junto com a mesma a angústia da crítica em relação ao seu desejo de deixar as crianças se expressarem. Além disso, percebia que, do mesmo modo como ela se sentia deslocada na escola, eu também me sentia deslocada no contexto acadêmico. Ela por ser a professora “doidinha” que não colocava limite nas crianças, e eu por acreditar em Deus e estudar, na universidade, em uma linha que questionava a existência de verdades absolutas. Às vezes eu tinha a sensação de que acreditar em Deus no meio acadêmico aparentava ser algo pejorativo, algo “ruim” ou anunciava que alguém tinha pouca criticidade. Assim sendo, nós duas, eu e a professora da Girafinha, evitávamos desagradar os outros e, consequentemente, acabávamos nos distanciando de nós mesmas, daquilo que somos e acreditamos.

Desta maneira, escrever esta dissertação não foi um processo fácil; pelo contrário, a escrita foi árdua e muito conflituosa, e o pior de todos os conflitos que eu vivi foi o religioso; tudo que eu lia me balançava, me questionava. Passando, pois, por dificuldades pessoais com o mestrado e as teorias ali estudadas, adentrei na escola pesquisada e quando percebi que a fachada da instituição era Nossa Senhora da Graças, fiquei surpresa. Naquele momento me senti acolhida, senti muita vontade de chorar, porque aquela era exatamente a imagem da santa que fica em cima da minha cama.

Todos os dias eu rezava e conversava com ela e pedia proteção à imagem de Nossa Senhora das Graças antes de começar cada dia. Assim, foi impossível não lembrar da minha avó, que é devota daquela santa, bem como do grupo de oração em que eu participei e ainda participo.

Escrever o histórico da escola foi o processo de me destravar na escrita, de me emocionar, de chorar, de sentir o desejo de escrevê-lo cada dia mais. Então, compor o histórico foi vivenciar dois processos: o primeiro foi o de construir a narrativa por meio das entrevistas e o segundo o de problematizar teoricamente aquela história, que mais me gerou conflitos. Após acabar de escrever o histórico, me apaixonei pelo meu trabalho e resolvi abrir a minha vida de modo a produzir uma pesquisa cartográfica. Considerei necessário trazer as minhas experiências, minhas inseguranças, meus conflitos, para colocar em evidência que a pesquisa cartográfica não está pronta, não está dada, ela se configura nos acompanhamentos incertos, imprevistos, caóticos tanto para os sujeitos da pesquisa quanto para os pesquisadores. Foi uma pesquisa que se desenvolveu com a minha religiosidade e para além dela, pois cartografar é “expor” a sua composição de vida no mesmo modo em que se compõe o processo da pesquisa. Ao final deste trabalho, percebi que compor uma pesquisa cartográfica é uma constante construção e desconstrução que produz diferentes modos de viver e compor a nossa vida. Portanto, considero que este foi o meu mergulhar na pesquisa, pois o que importa aos cartógrafos são os processos que tecemos a partir das linhas que ativamos e que nos ativam.

Nesta direção, escrever este trabalho me ajudou a me sentir livre: livre dos “pecados”, das “culpas”, dos medos, das inseguranças. Agora me sinto com vontade de voar sem medo de cair. Porque durante este caminho incerto e conflituoso, a pedido do meu orientador li pela segunda vez um livro de Latour (2002), e nesta segunda aproximação consegui compor esta leitura de um modo diferente. Entendi que qualquer tipo de “crença” e “descrença” pode ser considerada uma invenção/fabricação, uma vez que as crenças se tornam “reais” no momento em que as produzimos. Quando me dei conta disso, meu conflito religioso cessou, porque pensei: “o Deus é meu e eu o fabrico do jeito que eu quiser”. Logo, diante de tudo aquilo que não concordava com a minha religião, eu dizia: “O meu Deus, não é assim!”; e agora me sinto bem com aquilo que estudo e com o Deus que eu criei para mim. Finalmente já não sentia aquela necessidade de fazer tantos questionamentos porque agora me sintia livre para criar o Deus que eu melhor apreciasse. Acredito que a vida se compõem assim; nem sempre precisamos

concordar com tudo, ou questionar tudo, mas devemos sempre compor a nossa vida como uma obra em construção, a nossa obra, mesmo que para isso seja necessário burlar aquilo que nos é imposto.

Quando faço este regate vivido por mim e escrevo cada parágrafo deste tópico final, me transbordo em lágrimas, porque percebo que não somente escrevi uma cartografia, mas vivi este trajeto. Perder o controle da situação de todos os setores da sua vida de uma só vez, não é nada confortável, é desesperador, é muito inseguro, e sair do nosso quadradinho não é um processo fácil, mas árduo, conflituoso e quase insuportável. Neste trecho final descobri que mesmo caminhando em linhas incertas e caóticas eu me apaixonei por tudo que vivi e aprendi na construção desta pesquisa.

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