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4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

4.3 A CIRCULAÇÃO DE DISCURSOS NA AMBIÊNCIA DE POLARIZAÇÃO

4.3.4 Minha fé não combina com

A última publicação trata-se do compartilhamento da campanha intitulada “A fé cristã”, pela página “Quebrando Tabu”, em 23 de setembro de 2018, com a seguinte descrição: “O grupo „cristãos contra o fascismo‟ mostrando o que não combina com a fé deles”. A postagem recebeu 1,4 mil comentários, 19 mil compartilhamentos e 30 mil reações - sendo 22 mil curtidas, 8,5 mil “amei”, 163 “haha”, 40 “uau”, 8 “triste”, 6 “grr”. As imagens que foram compartilhadas tratavam-se das que afirmavam “Minha fé não combina com homofobia”, “Minha fé não combina com racismo”, “Minha fé não combina com misoginia”, “Minha fé não combina com xenofobia”.

Figura 33 - Compartilhamento da campanha “A fé cristã” pela página “Quebrando Tabu”

Fonte: Facebook “Quebrando Tabu” (2018).

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defendiam o que não combina com a fé, ao contrário de compartilhar as postagens em que afirmam com o que combina: amor, respeito, igualdade. Indivíduos afirmam que pregam o amor, o respeito, a igualdade, a justiça, mas mesmo assim justificam seus atos homofóbicos, desrespeito, machistas, xenofóbicos. Para muitos, essas atitudes demonstram uma dissonância cognitiva (FESTINGER, 1975).

Por outro lado, quando os indivíduos tomam atitudes dissonantes, recorrentemente eles buscaram justificativas para suas dissonâncias cognitivas. Nesse caso, é possível visualizar, através dos comentários, que os internautas defendem sua posição por meio de elementos bíblicos. Isso é, o indivíduo defende que é cristão, que acredita no amor e no respeito, mas também defende, por exemplo, que os homossexuais não podem congregar na igreja.

Quando a página opta por compartilhar justamente essas negações, ela reforça que mais importante do que dizer com o que combina a fé, é dizer com o que ela não pode ser conivente. Nos comentários, é possível ver usuários concordando com as negações expressas nas imagens compartilhadas pela “Quebrando Tabu” e reforçando que a fé não pode estar associada a formas de opressão.

Diferentemente de outras publicações, em uma das interações, é possível ver um internauta sendo questionado acerca de questões teológicas. No caso, o diálogo ocorre através de perguntas a respeito da conduta de Deus no Antigo e no Novo Testamento, que são respondidas pelo usuário.

O internauta, cujas iniciais são R.S., elogia a postagem e defende que a fé cristã não combina com a morte de ninguém, dando ênfase à palavra ninguém. Em resposta, é possível ver usuários ironizando R.S., afirmando que esse só defende a morte de quem não acredita no mesmo Deus ou de homossexuais. Em resposta, é possível ver que R.S. retorna as respostas com base no “cristianismo bíblico”.

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Figura 34 - Comentário do usuário elogiando a postagem.

Fonte: Página “Quebrando Tabu” (2018).

Figura 35 - Comentário do internauta questionando sobre conhecimentos teológicos.

Fonte: Página “Quebrando Tabu” (2018).

Figura 36 - Comentário de internauta respondendo o outro com base em conhecimentos teológicos

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Interessante observar que, ao responder o comentário do usuário sobre Deus ser uma figura má, que ensinou o povo a matar e que permitia que esses o fizessem, R.S. não optou por retornar de forma agressiva e categórica; pelo contrário, ele inicia sua colocação falando “Você está parcialmente correto” e, em seguida, discorre sobre os pontos corretos na fala do outro. Ele não desconsidera tudo o que o outro internauta pontua, simplesmente por esse pensar de forma diferente da sua. Ou seja, suas características não são tomadas como definidoras e, portanto, ele não é reduzido a um grupo, fazendo com que o diálogo ocorra. Desse modo, o usuário utiliza de referência aos elementos compartilhados com o outro sujeito, a bíblia, a fé, na tentativa de criar um diálogo com esse.

Outra interação entre esse mesmo sujeito, R.S., e outro internauta, P.S.A.D., que questiona a respeito da posição sobre o aborto. R.S. instiga P.S.A.D. a respondê-lo com base em argumentos do cristianismo bíblico, uma vez que, segundo R.S., verás que essa prática não retrata “a vontade de Deus”. O diálogo novamente, nesse caso, ocorre com base no acesso dos dois sujeitos ao repertório compartilhado: a Bíblia.

Figura 37 - Comentário do internauta sobre membros de igrejas defenderem a morte de pessoas e crianças.

Fonte: Página “Quebrando Tabu” (2018).

Figura 38 - Comentário do usuário criticando a posição adotada pelo outro

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Figura 39 - Comentário do internauta instigando o outro a respondê-lo com base em conhecimento bíblico.

Fonte: Página “Quebrando Tabu” (2018).

Figura 40 - Comentário dos usuários interagindo

Fonte: Página “Quebrando Tabu” (2018).

O usuário R.S., portanto, mantém um diálogo e responde questionamentos relacionados a questões seculares como a descriminalização do aborto, com base no seu entendimento do cristianismo bíblico. Do mesmo modo que, na postagem anterior, o interagente aciona versículos e valores bíblicos para justificar o seu posicionamento.

Nas postagens cujo número de comentários era menor, como nas três primeiras selecionadas da página “Cristãos contra o fascismo”, foi possível ler todos os comentários

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presentes na publicação. No caso da quarta postagem compartilhada pela página “Quebrando Tabu”, dado a grande quantidade de comentários, optou-se por se ater aos 50 tidos pela plataforma como os mais relevantes. Ao analisar os comentários, foi possível fazer algumas considerações.

A primeira é a divergência de falas que não tem relação com o conteúdo publicado pela página. Concomitantemente, é feito o uso de hashtags relacionadas ao embate travado no cenário polarizado como “#ForaBolsonaro”, “BolsonaroTemRazao”, “#EleSim”, “#EleNão”, “B17”, “Lula Livre”. Esse tipo de argumento é ineficaz quando se trata de possíveis articulações de diálogo, uma vez que não expõe a opinião do interagente, não traz reflexões a respeito do que está sendo colocado em discussão pela página e não demonstra abertura a posições políticas divergentes.

A segunda constatação é o emprego de memes como um recurso humorístico para desqualificar ou depreciar: (a) a página, (b) o que está sendo dito pelo movimento ou (c) outro internauta nos comentários. Em alguns casos, o uso de memes e gifs é empregado para corroborar com a opinião defendida pela página ou por outro usuário, mas esse uso se apresenta menor recorrência. Da mesma forma, esses não se apresentam como potencialidades para o estabelecimento de diálogo, uma vez que majoritariamente ofendem e depreciam a imagem e/ou a fala de outro usuário.

A terceira colocação é o ódio biopolítico direcionado à esquerda, principalmente, aos cristãos de viés político de esquerda, justificados pelo fato dessas duas proposições serem consideradas pelos interagentes como dissociantes/opostas, posto que, segundo esses, partidos de esquerda defendem a ideologia de gênero, a sexualizaçãoo infantil, a descriminalização do aborto, a legalização da maconha, ações que vão contra os valores cristãos. Ademais, há indivíduos que alegam seu ódio contra o viés político de esquerda porque, de acordo com eles, a esquerda deseja acabar com o cristianismo, pois são contra qualquer manifestação religiosa, uma vez que vê a religião como “ópio do povo”.

A quarta colocação que se pode fazer são os embates travados a respeito da definição do que é ser cristão e o combate sobre quem pode e quem não pode fazer uso dessa concepção. A quinta colocação trata-se das estratégias argumentativas baseadas em elementos religiosos. Foi possível perceber, através dos comentários, o acionamento de ensinamentos, versículos bíblicos como forma de (a) justificar a posição adotada pelo interagente, (b) criticar o posicionamento defendido pela página e por outros usuários e, talvez a mais otimista proposição, (c) a construção de um diálogo com base no discurso

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religioso.

A seguir, explorar-se-á esses dois últimos apontamentos que vão ao encontro dos objetivos e do problema central desta monografia.