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No contexto brasileiro de novos enfrentamentos a partir das disputas de discurso, da busca pela tradução da sociedade nacional ou da identidade nacional, há uma parcela progressista da sociedade que rompe, a partir do início do século XX, com a ideia de uma democracia racial em torno da sociedade. Para a compreensão primeira da ideia de democracia racial, impressa principalmente a partir do livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1930), percorremos um longo caminho no campo teórico. Embora o conceito em si já se encontre superado, essa mentalidade deixou marcas na sociedade, sobretudo ainda nos dias atuais, em que há uma parcela significativa de cidadãos que, influenciados pela onda conservadora, reafirmam a falsa teoria.

Visto como uma “ponte do naturalismo dos velhos intérpretes da sociedade […] e ponto de vista sociológico” (HOLANDA, 1995, p 18.), Freyre está preocupado em demonstrar de forma expositiva as relações que compõem a sociedade brasileira, sobretudo entre os brancos colonizadores e os negros escravizados. Por esse motivo, a mencionada obra foi recebida, à época, como revolucionária. Contudo, ao passo que avançamos com discussões sobre o escravismo, percebe-se a influência da ideologia política da branquitude, que, entre outros aspectos, consiste na tentativa de minimizar a crueldade das relações raciais no Brasil com a intenção de que a estrutura racista seja mantida.

Essa tese será entendida como uma noção falsa, um mito a partir de pesquisas que pretendiam compreender o Brasil como modelo do bem viver e

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bom convívio entre as diversas raças aqui presentes, tentando demonstrar que a harmonia social estava dada.

No entanto, tal ideia só pode ser sustentada se se ignorar as diferenças fundamentais entre as condições da ocupação branca e da ocupação negra no país. Sabe-se que negros escravizados e trazidos contra sua vontade para cá foram colocados em condições de “subumanos ou inumanos” (NASCIMENTO, 2017, p. 61). Assim eram mantidos por estes colonizadores, “já que o escravo era, para os produtores da época, um animal de carga como outro qualquer” (MOURA, 1981, p. 47). Notemos que esse é o pano de fundo de uma sociedade escravista, cunhada no capitalismo, cujo branco colonizador detém “a posse absoluta do corpo do outro”, sendo o “outro” o negro ou negra em condição de força de trabalho para a “exploração econômica representada pelo lucro” (NASCIMENTO, 2017, p. 62).

Mesmo internamente à população negra, vê-se que a exploração se deu de formas diferentes em diferentes setores. Assim, as mulheres, além de sofrerem o uso de sua força de trabalho, desempenhando todas as mesmas funções que os homens, experimentaram um outro tipo de apropriação de seus corpos, sendo exploradas também sexualmente. Segundo Moura, a

[…] proporção da mulher para o homem estava perto de uma para cinco, e as relativamente poucas mulheres que existiam estavam automaticamente impedidas de estabelecer qualquer estável estrutura de família. A norma consistia na exploração da africana pelo senhor escravocrata, e este fato ilustra um dos aspectos mais repugnantes do lascivo, indolente e ganancioso caráter da classe dirigente portuguesa. O costume de manter prostitutas negro-africanas como meio de renda, comum entre os escravocratas […] (NASCIMENTO, 2017, p.73) Fato é que deste movimento desprezível nasceram os primeiros filhos mestiços. Além disso, até os dias de hoje há resquícios desse processo a que mulheres negras escravizadas foram submetidas, entre os quais o legado abominável que produziu a “mulata” como produto de orgulho nacional, numa imagem em que mulheres são submetidas ao escárnio e a sexualização. Esse fato certamente se opõe à “ideia de que a formação do Brasil se verificou obedecendo a um processo integrativo imune de qualquer preconceito” (NASCIMENTO, 2017, p. 74). Pelo contrário, em vez de conotar a plena integração das raças, a “mulata” é um ostensivo resultado do estupro cometido

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pelo português contra a mulher africana, do crescimento do número de pessoas nascidas da comborçaria, os bastardos então chamados mulatos, hoje compreendidos como pardos.

A miscigenação é um dado da crueldade que remonta do período do escravismo aos dias de hoje. Nas palavras de Moura, “a miscigenação (fato biológico), por outro lado, não criou uma democracia racial (fato sociopolítico). Ela estava subordinada a mecanismos sociais de dominação” (MOURA, 2014, p. 149). Foi amplamente divulgada por teóricos da democracia racial como interação sexual saudável. Contudo, essa prática criminosa, o abuso sexual, no limite configurado pelo estupro, desencadeou a formação de uma parte da população de pardos, que, assim como os negros, não eram vistos como parte integrada à sociedade brasileira.

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4 MODUS OPERANDI: REPRESENTAÇÕES DOCENTES SOBRE O ENSINO DA CULTURA E DA HISTÓRIA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA

Docente é uma personagem categórica no processo de desenvolvimento dos discentes e cidadãos. Ele(a) traz a pauta que será discutida em determinada aula, em determinado dia. Ele(a) é a chave que provoca o diálogo, isto é, na perspectiva de Freire, uma ação que propicia aos que estão envolvidos na leitura de si e do outro, causando a transformação enquanto ele acontece. Para o educador pernambucano, “o diálogo sela o ato de aprender, que nunca é individual, embora tenha uma dimensão individual” (FREIRE apud SHOR, 1986, p. 11).

Para que a educação antirracista se sobressaia e cause efetivo aprendizado em todos os envolvidos no processo, ela deve ter um aspecto dialógico e consciente.

O processo de conscientização ocorre coletivamente, democraticamente e com a efetivação do diálogo. As experiências que analisaremos a seguir nos sugerem que esses profissionais são “práxis. São seres do quefazer” (FREIRE, 1987, p. 70).

Demonstramos, a seguir, a apreciação dos dados coletados das entrevistas, na seguinte disposição. Primeiramente, trazemos o perfil de cada educador(a), a partir de sua trajetória de vida. Respeitando essa construção, destacaremos aspectos essenciais às nossas categorias de pesquisa. Num segundo momento, disporemos a análise sobre os desafios e as práticas pedagógicas desses(as) profissionais em relação à temática em questão.

O conceito de conscientização freiriano demonstra que o ato de se conscientizar acontece ao mesmo tempo individual e coletivamente, quando a pessoa entende qual seu lugar no mundo, já que as pessoas se conscientizam em comunhão mediatizadas pela realidade social. O compreender-se e compreender seu meio, analisando suas próprias atitudes e agindo de maneira coletiva em prol da consciência grupal, acontece a partir do distanciamento do mundo, condição necessária para, então, problematizá-lo. Em seguida, na trajetória entre o “redescobrir-se” nesse lugar, onde cada um tem papel importante, e a construção de uma sociedade mais equânime em direitos, o diálogo precisa ser democrático e solidário, objetivando alcançar as complexidades humanas.

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No diálogo com nossos(as) entrevistados(as), destacam-se as particularidades dos processos de amadurecimento da conscientização de cada um, seja durante o período de preparação formal, na faculdade estudando História, seja no aprendizado pela interação com o outro. Entretanto, evidentemente, também nos atentamos aos elementos comuns entre todos os depoimentos, entre os quais se sobressaem as oportunidades que cada um dos docentes tiveram de se distanciar do próprio mundo e ser conflitado com o outro. Destaca-se a transformação que ocorre em decorrência desse estar coletivo. Pudemos notar que, à medida que problematizavam sua realidade, os docentes se conscientizavam das outras realidades e submetiam sua postura à mudança. Trata-se de uma situação dialógica, tendo em vista que “o diálogo é o momento em que os humanos se encontram para refletir sobre sua realidade tal como fazem e re-fazem” (FREIRE,1986, p. 64).

Nas entrevistas aqui realizadas, os diálogos com esses profissionais partiram de uma base de questões prévias que nos serviram de ferramenta para dar corpo à parte empírica desta pesquisa e que são agora submetidas a análise. Para manter o anonimato dos(as) docentes entrevistados(as), adotamos aqui, em substituição aos nomes originais dos entrevistados, os seguintes pseudônimos: Afoxé, Samba, Jongo e Maracatu, menções a grandes gêneros da musicalidade negra brasileira.

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