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O conto de fadas foi, primeiramente, uma narrativa oral. Pessoas contavam histórias para passar o tempo e, também, para transmitir ensinamentos. Mostrava-se, nesses contos, um mundo encantador, mas também assustador diante das dificuldades da vida. Havia no conto de fadas uma espécie de aviso: o mundo é um lugar perigoso e, por isso, ser esperto é importante. Muitos contos tinham finais infelizes, mostrando a impossibilidade de superação de um determinado problema. Parece que Coover se apropria desses contos para dizer: "preste atenção, não é com o lobo, por exemplo, que você tem que ter cuidado. Olhe quem criou esses contos, ou para quem lhe contou esses contos, é deles que se precisa ter medo. Quais eram suas reais intenções ao inventarem tais narrativas? O que desejavam fazer com você?" É esta natureza das admoestações que parecem estar por trás das narrativas de Coover.

O mito também teve sua origem na oralidade, porém não era narrado como entretenimento, já que, entre outros aspectos, propunha-se a explicar eventos gerais, como os elementos da natureza (raios, trovões, etc.). O mito está ligado a um saber coletivo, pois é de conhecimento de todos, caso contrário deixa de ser um mito no sentido de "verdade". Muitas vezes, está relacionado com o aspecto religioso ou com a religiosidade de um povo. É também poesia, enquanto narrativa alegórica, enquanto forma figurada do ser humano transmitir suas crenças.

Atualmente, o mito também pode ser lido como forma de entretenimento ou estudo, mas em sua origem não se propunha a essa função, principalmente se se pensar nos mitos dos povos primitivos.

Coover também vai se aproveitar do mito (no caso, o bíblico), assim como faz com os contos de fadas, para levantar suspeitas sobre “verdades” criadas por segmentos religiosos à serviço da manutenção de uma visão cristã unilateral defensora de seus interesses.

Ao se pensar no mito como literatura, é importante se observar a mitologia greco- romana. Para ela, os deuses são seres superiores, imortais em sua glória e esplendor. Eles são gloriosos por natureza. Não podem ser, por isso, heróis.

Os heróis, na mitologia greco-romana, estão, no entanto, relacionados aos deuses. Possuem, em geral, algum elo de ligação com eles, normalmente, um parentesco. Muitos são filhos de mortais com algum deus.

Na mitologia nórdica, os deuses não são imortais e estão expostos a todos os perigos como um homem qualquer. Lutam sabendo que podem morrer, mas lutam pela glória, pela honra.

No conto de fadas, os heróis são seres predestinados a alcançar o sucesso. Passam por dificuldades, mas cumprem o que lhes foi proposto. São reconhecidos, desde o início da história, como heróis.

Nos mitos e nos contos de fadas, o herói normalmente desconhece sua condição heróica. Ele apresenta uma "missão", que não lhe é dada de imediato. Muitos heróis míticos não crescem em suas famílias, são abandonados; sobreviver a esse abandono passa a ser uma prova de que são seres "especiais".

As vitórias do herói mítico são associadas a lutas pelo poder, a conquistas coletivas. As vitórias do herói do conto de fadas são relacionadas à satisfação pessoal e afetiva do herói, ao final feliz e ao cumprimento de uma missão.

Comum aos contos de fadas e aos mitos é a estrutura narrativa, que segue os elementos de um ritual de iniciação

[...] encontramos constantemente as provas iniciáticas (lutas contra um monstro, obstáculos aparentemente insuperáveis, enigmas para serem resolvidos, tarefas impossíveis de realizar etc.), a descida ao Inferno ou a subida ao Céu, ou ainda a morte e a ressurreição (o que equivale ao mesmo), o casamento com a princesa (ELIADE, 1989, p. 166).

Há, sempre, nos mitos e contos de fadas a passagem de um estado a outro, como em um rito.

No conto de fadas, o rito pode ser evidenciado como um afastamento em busca de algo ou para resolver alguma situação; um período de transição, em que ocorre a passagem de uma situação inicial de dificuldade para uma situação de recompensa; e, finalmente, a reintegração a uma nova ordem, a uma nova situação vitoriosa, recompensadora.

No mito, o rito se dá de diversas formas, através da "morte" de um estado inicial até se chegar a uma situação renovada. Além disso, vale lembrar que estava ligado, em sua origem, à religião.

Eliade relata o fato de, na atualidade, a "iniciação" coexistir com a condição humana. Na perspectiva do autor, o homem passa, durante toda a sua vida, por diversas "provas", diversas "mortes" e diversas "ressurreições".

E, para Eliade (1989, p. 167), o conto repetiria essa "iniciação", ao nível do imaginário. Para o autor, o conto

[...] só constitui um divertimento ou uma evasão para a consciência banalizada e nomeadamente para a consciência do homem moderno; na psique profunda, os cenários iniciáticos conservam a sua seriedade e continuam a transmitir a sua mensagem e a operar mutações. Sem dar por isso, e imaginando divertir-se ou evadir-se, o homem das sociedades modernas beneficia ainda desta iniciação imaginária fornecida pelos contos.

Eliade (1989), com base no acima exposto, questiona se o conto de fadas não teria se transformado numa "réplica fácil" do mito e do rito iniciático, além de desenvolver o papel de reatualizador das "provas iniciáticas" em um nível onírico, em que predomina a imaginação. Diz ainda que, nessa perspectiva, a iniciação não é um comportamento unicamente pertencente ao homem das sociedades tradicionais.

Outro fator em comum nos contos de fadas e nos mitos é a presença do sobrenatural, do mágico. O mito está mais ligado ao sobrenatural relacionado a fenômenos inaugurais — como a criação do mundo, a origem dos deuses e a explicação de fenômenos da natureza. O sobrenatural no conto de fadas está mais relacionado ao uso de objetos mágicos e a personagens fabulosos, como fadas, duendes, animais falantes, gigantes, entre outros fatores.

De acordo com Eliade (1989), o mito conta, por meio de feitos de seres sobrenaturais, como uma realidade passou a existir. Essa realidade pode estar ligada a um todo (Cosmos), ou apresentar-se como um fragmento desse todo.

A partir das idéias de Eliade, pode-se concluir que se o mito narra os feitos de seres sobrenaturais

[…] it sets examples for human beings that enable them to codify and order

their lives. By enacting and incorporating myths in their daily lives, humans are able to have a genuine religious experience. Indeed, it is through recalling and bringing back the gods of the past into the present that one becomes their contemporary and at the same time is transported into primordial or sacred time (ZIPES, 1994, p. 1).

Ao ser transportado para uma época sagrada, o ser humano se conecta ao divino, pois o "mortal" se conscientiza de sua origem e presentifica, através de seus sentimentos, o processo histórico do mito e o tempo divinizado.

Eliade (1989) afirma que não há nos contos populares e de fadas literários uma memória precisa, exata, de um estágio particular de cultura, de estilos culturais e ciclos históricos. Mas, apesar disso, não acredita que sejam narrativas dessacralizadas. Ao contrário, pensa que esses contos trazem noções e motivos míticos camuflados.

O autor é de opinião que os contos populares e de fada literários abandonaram a responsabilidade "iniciática" religiosa. Eliade acredita que e fato ocorreu "When the traditional

and secrets of cults were no longer practiced and when it was no longer taboo to reveal and to tell the ´mysteries´ of the religious practices" (apud ZIPES, 1994, p. 2).

De qualquer maneira, fica claro que, para Eliade, o mito precedeu os contos populares e de fadas e tinha uma função mais sagrada em comunidades e sociedades do que em narrativas seculares.

Em seus estudos sobre a relação do mito e do conto de fadas, o autor tende a considerar os contos folclóricos como transmissores profanos da experiência religiosa do mito.

De acordo com Eliade (1989), os mitos e contos populares se misturaram muito cedo na tradição oral, e em muitas narrativas literárias modernas é difícil separá-los, como também afirma Zipes (1994, p. 3):

They seem to be invested with an extraordinary mystical power so that we collapse the distinctions and feel compelled to return to them time and again for counsel and guidance, for hope that there is some divine order and sense to a chaotic world.

Os mitos e contos de fadas trazem conhecimentos aos seres humanos. Prendem a atenção das pessoas e as encantam. São lidos como busca por respostas e, como bem afirma Zipes (1994, p. 4), são usados em "diverse ways as private sacred myths or as a public

commercial advertisements to sell something".

Zipes (1994, p. 4) afirma que as pessoas se referem aos mitos e contos de fadas "as

lies by saying, ´oh, that's just a fairy tale´ or ´that's just myth´. But their lies are often the lies that govern our lives".

No Iluminismo houve uma substituição dos mitos arcaicos pelos mitos relacionados aos ideais burgueses, movidos pela razão. Esses mitos ainda influenciam e fazem parte da vida das pessoas.

Não são mitos novos,

[…] nor are they just myths, for they are also fairy tales. These myths and

fairy tales are historically and culturally coded, and their ideological impact is great. Somehow they have become codified, authoritative, and canonical. We talk of classical myths and classical fairy tales. They seem to have been with us for centuries, for eternity, but we neglect the manner in which we created gods and magic to hold our experiences and lives intact (ZIPES,

1994, p. 4).

O conto de fadas é mito, se se considerar que o conto de fadas clássico, tradicional, sofreu um processo de mitificação. De acordo com Zipes (1994) qualquer conto de fadas se torna mito quando tende a ser natural e eterno. Apenas os contos inovadores, não tradicionais, tendem a não serem míticos.

Barthes (1973) define o mito como uma representação coletiva socialmente determinada e invertida para não aparecer como artefato cultural. O mito é um discurso manipulado.

No conto de fadas, também pode haver mitos que aparecem como discurso manipulado. E, nos contos literários, que retomam mitos ou contos de fadas, esses também se apresentam como discurso manipulado, mas sempre com uma porta aberta ao questionamento ou a reversão do mito ou conto retomados. Como afirma Zipes (1994, p. 15), muitos escritores atualmente, "parody, mock, question, and undermine the classical literary tradition and

produce original and subversive tales that were part and parcel of the institution itself".

Percebe-se que o conto de fadas está intimamente ligado ao mito. Porém, de alguma maneira, o conto conseguiu tornar-se independente, mesmo conservando raízes míticas. Para Mendes (1992, p. 13), o conto nasce a partir do momento em que o mito torna-se profano e artístico, deixando de ser sagrado, religioso. De acordo com Propp (1984), o mito transformou-se em conto quando a história perdeu seu caráter de narrativa ritualística, passada dos mais velhos para os mais jovens.

O mito transforma-se em conto porque

[...] todos nós precisamos contar nossa história compreender nossa história. Todos nós precisamos compreender a morte e enfrentar a morte, e todos nós precisamos de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à morte. Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o interior, compreender o misterioso, descobrir o que somos (CAMPBELL, 1990, p. 5).

Bettelheim (1996) compartilha com Propp a idéia de que o mito transformou-se em conto ao se tornar profano. Para Bettelheim os contos de fadas se desenvolveram a partir dos mitos e alguns deles foram incorporados aos contos de fadas, agregando a experiência cumulativa de uma sociedade como garantia da transmissão da sabedoria dos antigos para as gerações posteriores.

Nos contos de Coover, pode-se observar os questionamentos e as mudanças realizadas em relação ao conto de fadas tradicional e aos mitos originais.

É pertinente observar que mito e conto de fadas possuem suas especificidades, mas, muitas vezes se embricam, possuem características comuns, que podem ser trabalhadas nos contos contemporâneos como os de Robert Coover. Por essa razão foi importante traçar algumas relações entre ambos.

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