• Nenhum resultado encontrado

A metodologia de análise adotada é a mitocrítica, pois “o mito é o método” na teoria do imaginário de Gilbert Durand, que “procura desvendar nas produções do imaginário de um indivíduo e/ou grupo essas figuras ‘numinosas’8 [...] de nós mesmos” (PAULA CARVALHO, 1999, p. 241), imagens que podem ser compreendidas no sentido de que são resultado de um “efeito dinâmico que não tem sua causa num ato arbitrário da vontade” (1999, p. 133). Desta forma, acreditamos que através deste tipo de observação mítica, poderemos acessar alguns pontos do mundo imaginal que, ora ou outra, permite-se revelar através das frestas da imaginação.

Wunenburger (2007, p. 44) afirma que “o imaginário de um indivíduo é, por exemplo, inseparável dos grandes símbolos e mitos políticos que modelam suas representações do território nacional, da instituição do poder, das transformações sociais, etc”, ou seja, o contexto e os objetos que nos propomos a estudar e analisar estão inseridos nesta ideia de que o imaginário privado e o partilhado, podem ser articulados.

Esta forma de investigação foi criada por Gilbert Durand em 1970, inspirada na psicocrítica9, pois no seu entendimento, era necessário criar um “método de crítica que seja a síntese construtiva das diversas críticas [...] que até então se confrontavam de modo estéril” (1985, p. 252). O autor explica que a mitocrítica engloba críticas como a psicológica e a psicanalítica, a psicanálise existencial, assim como na crítica estrutural do próprio texto. Sua proposta, no entanto, é que a mitocrítica preserve e acumule estes progressos já conhecidos e atue de “modo ‘centrípeto’ nas ‘formas simbólicas’ (Cassirer) coordenadas num relato simbólico ou ‘mito’, no que realmente se instaura a leitura e se desvendam seus níveis de profundidade” (DURAND, 1985, p. 252).

A técnica “parte das obras literárias, artísticas, dos relatos, histórias de vida, documentos e narrativas de modo geral para compreender os mitos diretores dessas produções” (FERREIRA-SANTOS e ALMEIDA, 2012, p. 113). Esta forma de análise aborda “o próprio

8 Parte divina, ou características inspiradas na transcendentalidade. “Termo de R. Otto para designar de modo mais

originário o divino, no sentido daquilo que é anterior à separação entre o Sagrado e o Profano” (PAULA CARVALHO, 1999, p. 242).

9 A psicocrítica é uma metodologia desenvolvida por Charles Mauron, criador da crítica literária psicanalítica. A

técnica “busca a associação de ideias involuntárias sob as estruturas construídas no texto”, de forma a ser obtida pela mistura dos conteúdos conscientes com repetições obsessivas e vínculos inconscientes, o que levará o autor a conceituar “pensamento inconsciente” como, dentro da psicocrítica, “pensamento das estruturas” (PAULA CARVALHO, 1998, p. 82).

ser da ‘obra’ no confronto entre o universo mítico, que forme o ‘gosto’ ou a compreensão do leitor, e o universo mítico que emerge da leitura” (DURAND, 1985, p. 252). Deste modo, tomaremos como narrativas, ou ainda obras artísticas, os desenhos feitos pelas crianças nas escolas, consideradas, como Durand denomina, “obra de pequena dimensão” na escala da narrativa (1996, p. 247), pois os estudantes desenharam esboços da cidade que imaginaram para suas personagens.

O autor (DURAND, 1985, p. 252) detalha que esta metodologia é dividida em três etapas: inicia na identificação dos temas redundantes e sincronias míticas, ou mitemas; segue para a análise das situações e suas possíveis combinações, para terminar na descoberta das lições do mito e suas relações com outras lições e outros mitos. Passo este que já seria o primeiro da mitanálise, metodologia que não iremos nos expandir.

A mitocrítica tem o objetivo de extrair dos seus objetos de análise estes mitemas, a menor unidade de um mito, que são características para encontrar se há e qual é “o mito diretor subjacente”, evidenciado em uma obra, ou em um autor de uma época específica que permitirá identificar “os mitos diretores e as suas transformações significativas” (ARAÚJO; WUNENBURGER, 2003, p. 29). Esta metodologia geralmente irá além dos próprios textos ou documentos em análise, e situa-se “na produção do universo das imagens simbólicas, e do mito que é a forma dinâmico-cultural dessas configurações organizatórias da sociedade, suscita um novo e acrescido interesse antropológico pelas mitologias, tanto negligenciadas pela perecida era dos positivismos (DURAND, 1985, p. 256).

Durand (1985, p. 244) explica que o mito configura-se como um discurso mítico que apresenta personagens e cenários “segmentáveis em seqüências ou reduzidas unidades semânticas (mitemas) onde, de modo necessário, está investida uma crença contrariamente à fábula ou ao conto – (chamada “pregnância simbólica” por Cassirer”). A metodologia aplicada busca encontrar as recorrências míticas nos desenhos e personagens apresentados pelos estudantes, de modo que seja possível identificar também se os recortes podem ser classificados nos regimes Diurno e Noturno da Imagem, além das estruturas místicas, heroicas ou cíclicas, descritas por Durand (2001).

O antropólogo do imaginário descreve que o mitema pode agir ou manifestar-se de duas formas: patente, “pela repetição explícita de seu ou seus conteúdos (situações, personagens, emblemas, etc.) homólogos” ou latente, “pela repetição de seu esquema de intencionalidade implícita” (DURAND, 1985, p. 254). Ou seja, será possível observar nos trabalhos desenvolvidos pelas crianças se há a criação de mitemas relacionados a elementos

repetitivos ou, então, intenções de gesto gerais que recorrem em desenhos diferentes ou dentro das mesmas peças.

Esta redundância, quando patente, tenderá ao “estereótipo identificador”, que irá valorizar mais o descritivo do que o sentido, estereotipando o próprio mito, deixando quase que explícito seu “nome próprio”. Já a redundância latente apresenta-se como parábola: “a transformação se dá por meio de uma espécie de drible da intenção em detrimento da indicação descritiva do nome próprio” (DURAND, 1985, p. 255). Portanto, quando os mitemas são patentes poderemos identificar com mais clareza os itens que coincidem e remetem às características do mito. Por sua vez, quando os mitemas são latentes, será necessária uma análise mais global, que pode indicar a “evaporação do espírito” ou algum recalque (1985, p. 255).

É importante salientar que estes objetos de estudo deixam sempre algo “por descobrir” e “é o ‘mito’ que ‘descobre a interpretação”, evidenciadas nas redundâncias (DURAND, 1996, p. 251). Desta forma, como propusemos a criação de personagens e cidades em diferentes épocas, procuramos suscitar nas crianças a evocação do mito como “o ‘poço sem fundo do passado’. Cada época, cada momento cultural apenas guarda o grupo das lições que lhe convém” (DURAND, 1996, p. 255), afinal, por mais que seja perene, o mito altera-se ao longo do tempo e é a ocorrência, ou não, de mudanças que procuramos observar.

Esta noção de diferentes tempos fundamenta-se na ideia de bacia semântica, como explicado na seção Imaginação Simbólica, em que durante suas fases percebemos as mudanças culturais, baseadas em média no ciclo de vida de quatro gerações de 30 a 50 anos. Assim uma bacia semântica dura cerca de 150 a 170 anos (DURAND, 1996, p. 257) e contém diferentes etapas. A mudança de uma corrente para outra, chamamos de trends: quando dentro de um período de 30 a cem anos notam-se “mudanças significativas, tanto quantitativas quanto qualitativas, motivadas pela reinjeção, que não é uma repetição mecânica e estereotipada, de informação e de acontecimentos sociopolíticos, culturais e econômicos que marcam os estilos duma época” (ARAÚJO; ALMEIDA, 2018, p. 32).

Portanto, relembramos que a cidade de Imbituba celebrou 60 anos de emancipação político-administrativa em 2018 e em 2020 completam-se 50 anos da criação do Brasão de Armas Municipal. Portanto, após cerca de duas gerações e com a consideração de que a sociedade se transformou de industrial para pós-moderna, aplicamos a pesquisa imbuídos da missão de identificar como as crianças representam o imaginário da cidade. Assim poderemos comparar estes resultados aos cenários que analisamos ao longo da Dissertação.

Afinal, “para G. Durand, os mitos não morrem, passam apenas por eclipses (M. Eliade fala de ‘camuflagem’), como as águas que antes de ressurgir como fontes, desaparecem em labirintos subterrâneos” (WUNENBURGER, 2007, p. 46). Assim, como investigadores miticianos buscamos observar todas as nuances mítico simbólicas dos desenhos produzidos pelas crianças, na tentativa de identificar como os mitos dos desenhos podem, ou não, relacionar-se com os do brasão. Desta forma, endossamos a ideia que “o imaginário (de uma obra, de um criador, de um povo, de uma época), longe de ser um conjunto anárquico, caótico, feito de associações heteróclitas de imagens, obedece a estruturas e conhece uma história marcada por um jogo sutil de constantes e de variações do tempo (WUNENBURGER, 2007, p. 27), sutilezas estas, que esperamos tornar evidentes no próximo capítulo.

Diante dos elementos metodológicos acima expostos, acreditamos que a mitocrítica é a metodologia de análise que nos permitirá identificar os símbolos municipais que nutrem, ou não, as crianças das turmas de foco das escolas municipais e se estes elementos estão relacionados, ou não, ao brasão municipal. A partir de agora iremos expor os contextos escolares onde a pesquisa foi aplicada.

Documentos relacionados