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3. Para uma representação da leitura, do leitor e do autor

3.3. Palavras sussurradas aos leitores

3.3.2. Mo: a leitura mágica

Motimer, de Coração de Tinta, é um encadernador de livros que possui um amplo conhecimento sobre textos literários. Dessa forma, a comunicação entre Mo e as histórias se diferencia um pouco da que vimos com Bastian anteriormente. Outra diferença entre a relação dessas duas personagens leitoras com o ato de ler diz respeito ao fato de Mo interagir com a narrativa quando ele lê em voz alta. De fato, um dos momentos em que se percebe o diálogo dessa personagem leitora com as personagens de “Coração de Tinta” acontece quando ele dá vida a essas figuras por meio de sua voz.

Tudo desapareceu. As paredes vermelhas da igreja, os rostos dos homens de Capricórnio e o próprio Capricórnio em sua cadeira. Havia apenas a voz de Mo e as imagens que as letras iam formando como um tapete de tear [...]. Todos estavam calados. Não se ouvia um som além da voz de Mo, que dava vida a letras e palavras. (FUNKE, 2006, p. 156-157)

Notamos aqui como a voz de Mo, ao ler uma história, encanta todos que a escutam. Esse encantamento demonstra como o leitor está sintonizado com a narrativa que lê: é como se fizesse parte realmente da história, como se Motimer entrasse na narrativa e levasse consigo aqueles que o escutam, pois tudo some, permanecendo apenas a voz dele e o que ele narra.

Ao ler em voz alta, Mo desempenha não apenas o papel de um leitor modelo, o qual é capaz de interagir com destreza com o texto, mas também simboliza os trovadores medievais. Isso ocorre porque ele lê para outras pessoas, proporcionando, desse modo, a diferentes pessoas e seres imaginários, principalmente, aqueles que não sabem ou não podem ler por algum motivo, a magia e o encanto das histórias que encontramos dentro dos livros. Esse papel desempenhado por Mo é percebido, sobretudo, quando ele está na aldeia de Capricórnio, visto que a maioria dos empregados do vilão não sabem ler nem escrever:

Nenhum dos meus homens sabe ler nem escrever. Eu os proibi. Sou o único que aprendeu, uma das minhas criadas me ensinou. Sim, acredite, estou perfeitamente em condições de estampar a minha

marca neste mundo. E quando há alguma coisa para escrever, quem cuida disso é o meu leitor. (FUNKE, 2006, p. 151)

Dessa citação se depreende, essencialmente, a importante função social que Mo exerce na aldeia de Capricórnio como leitor, pois, quando a personagem leitora lê nessa aldeia, ela desempenha dois papeis importantes. O primeiro papel desempenhado por Mo consiste em ler para o “comandante” daquele lugar, com a função de suprir as necessidades desse “superior”. O segundo se relaciona ao fato de Mo levar a magia e o encanto das histórias para aqueles que não são capazes de ler, pois, quando Mo lê na igreja de Capricórnio, estão presente inúmeros empregados analfabetos que se encantam não apenas com a voz e a forma de Motimer ler, como também com a narrativa lida por ele.

Desse modo, quando Mo lê em voz alta ele é capaz de compartilhar seu imaginário com os seres que o escutam, ajudando-os a imaginar e interagir com essas narrativas. Isso não significa que ele influencia no imaginário dessas pessoas em relação ao texto que ouvem, apenas que ele auxilia essas pessoas a conseguirem interagir e produzir seus próprios mundos narrativos por meio de sua voz e imaginação.64 Mo, ao compartilhar de seu processo imaginativo e interação com o texto, faz com que percebamos que sua relação com as histórias vai além de apenas uma leitura encantadora, porque com a sua voz ele é capaz de trazer objetos e dar vida aos personagens dos livros que está lendo.

Mo não fez esperar muito. Enquanto lia o que Jim Hawkins, o garoto que era só um pouco mais velho do que Meggie, vira numa caverna escura durante suas terríveis aventuras, aconteceu:

Moedas de ouro, cunhadas com a efígie do rei George ou de um dos Luíses, dragões, guinéus, moidores e cequins, as efígies de todos os reis da Europa no decorrer dos últimos cem anos, estranhas peças orientais [...]

As criadas ainda estavam limpando as últimas migalhas das mesas quando de repente as moedas começaram a cair sobre a madeira lustrosa. As mulheres recuaram assustadas, soltaram os panos de limpeza e puseram as mãos na boca, enquanto as moedas pulavam aos seus pés, moedas douradas, prateadas, cor de cobre, repicavam no chão de pedra, amontoavam-se tilintantes sob os bancos, mais e mais moedas. (FUNKE, 2006, p. 157)

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Abordaremos de forma mais abrangente o conceito de formação de mundo narrativo pelo leitor no subcapitulo 3.5.

Contudo, Mo não tem apenas a aptidão de trazer objetos e personagens dos livros, mas também é capaz de criar novos acontecimentos para a narrativa, visto que, tanto em “Coração de Tinta”, livro ao qual Mo tem acesso, como em Coração de Tinta, há novos fatos e personagens conforme a leitura desse leitor. Isso ocorre porque, ao retirar as figuras de “Coração de Tinta”, ele as insere em um outro “mundo”, fazendo com isso que vivam outras histórias e aventuras.

Da mesma forma que afirmamos que Bastian era coautor do texto que estava lendo, podemos alegar que Motimer também é coautor da história, porque, no momento em que ele traz as personagens de “Coração de Tinta” para a sua realidade, é como se estivesse colocando essas personagens em uma outra narrativa, cujos fatos e novas figuras ele pode criar - assim como Bastian faz. Deste modo, Mo consegue preencher os espaços vazios deixados na obra e interpretá-la, produzindo sentido para aquilo que encontra em suas leituras.