• Nenhum resultado encontrado

O CORPO NA ORAÇÃO do gesto à dança

2.2. PARA UM CONCEITO GERAL DE DANÇA

2.2.1. O MO(VI)MENTO DA DANÇA

A “dança é uma manifestação espontânea do ser humano”, “contemporânea da humanidade”, pensamento este apresentado por Wurzba e compartilhado por muitos outros autores que teorizam sobre a dança.94 Apesar de ser delicado indicar com precisão o início da dança, pode-se dizer que ela está presente em épocas e culturas várias, desde as mais primitivas até nossos dias.

Há quem distinga nas figuras gravadas nas cavernas figuras dançando. E como o homem da Idade da Pedra só gravava nas paredes aquilo que lhe era importante, como a caça, a alimentação, a vida e a morte, é possível que essas figuras dançantes fizessem parte de rituais, básicos para a sociedade de então.95

Como comprovam inúmeros documentos e figuras, a dança esteve presente em diversas circunstâncias, como em ritos religiosos, cerimônias cívicas, festas, educação das crianças, vida cotidiana.96 Para o estudo do movimento em uma cultura antiga, a iconografia é tida como uma boa fonte de pesquisa e torna-se, portanto, um recurso de extrema importância, uma vez que imagens de cerimônias e celebrações fazem um resgate desse evento perdido no tempo. Contudo, como destaca June Layson, é preciso ter cuidado e estar consciente das convenções artísticas e do estilo e evitar reconhecer em danças antigas categorias que são atuais. Esse problema da interpretação da representação ocorre com a dança pré-histórica, por exemplo. Bourcier relata a descrição de uma cerimônia dançada, há dezenas de milhares de anos, em que o ritmo era dançado, com o tempo forte marcado pelo esquerdo, análise esta feita com a verificação das marcas de pés deixadas na argila. Para ele, essa conclusão apresenta muita criatividade para pouca probidade científica.97

Em seu livro Pequena história da dança, Antônio José Faro caracteriza a dança como fruto da necessidade de expressão do homem, por ela estar relacionada ao que há de básico na natureza humana. “Assim, se a arquitetura veio da necessidade de morar, a dança, provavelmente, veio da necessidade de aplacar os deuses ou de exprimir a alegria

94

WURZBA. A dança da alma; BOURCIER. História da dança no Ocidente; FARO. Pequena história

da dança; LAYSON. Historical Perspectives in the Study of Dance. 95 FARO. Pequena história da dança, p. 13.

96 BOURCIER. História da dança no Ocidente, p. 19. 97

52

por algo de bom concedido pelo destino.”98 “Em todas as religiões, a dança sempre ocupou um lugar privilegiado. Basta pensar no xamanismo, que parece estar na origem mesma da religião e parece contemplar a dança justamente como momento originário fundamental.”99

Por essa via, muitos teóricos falam do início da dança na liturgia. Expressão do indizível, a dança sagrada permite que o ser humano transcenda. Esse tipo de dança estava reservado a recintos especiais, como os templos, e sua execução era privilégio dos sacerdotes, pois se realizava dentro de cerimônias específicas, em datas e com motivos preestabelecidos para cada evento.

Em sua obra O sagrado e o profano, dentre outras questões, Mircea Eliade estuda as sociedades arcaicas e o modo como o espaço sagrado é vivenciado pelo homem religioso, modo este diverso do que se percebe ao estar inserido no espaço comum e neutro, profano. A abertura da homogeneidade desse espaço, por meio do ritual, permite a construção do espaço sagrado, organizado, o cosmos. Esse lugar, o eixo cósmico, passa a ser o centro do mundo, e é nele que há a possibilidade de se estabelecer a passagem de uma região cósmica a outra, o que permite ao homem a comunicação com os deuses. O homem religioso tem vontade de estar próximo dos deuses, de se comunicar com eles e de “viver num cosmos puro e santo, tal como era no começo, quando saiu das mãos do Criador”.100 No templo o mundo é ressantificado em sua totalidade, por meio do ritual.

O templo possui um lugar central no Livro dos Salmos, visto que é um dos lugares privilegiados da peregrinação popular e também o espaço em que se dá o encontro entre Deus e Israel.101 No entanto, a participação da dança nos templos não é certificada pelos estudiosos. Segundo Bourcier, não se encontra, em textos canônicos, como a Mishná, e código das práticas rituais no Templo de Jerusalém no século I de nossa era, nada concernente à dança.102

Segundo Faro, as danças litúrgicas, ao serem liberadas pelos sacerdotes, são compartilhadas por todos e, assim, tornam-se manifestação popular, dando origem às danças folclóricas. Essas danças são feitas em espaço público e estão ligadas a um tempo extraordinário, por meio de festivais, que, além de preservarem um sentido

98

FARO. Pequena história da dança, p. 13. 99 TERRIN. O rito, p. 340.

100 ELIADE. O sagrado e o profano, p. 60.

101 GALAZZI. O Senhor reinará eternamente, p. 65. 102

53

religioso – ao se invocar um deus para pedir proteção ou agradecer uma graça alcançada –, trazem também a rememoração do passado histórico.103

O judaísmo traz essa noção de tempo, uma inovação para as religiões até então praticadas: o tempo tem um começo e um fim.104 Os hebreus recorrem ao deus supremo em situações extremamente críticas, de crises históricas em que a existência da comunidade se encontra em estado delicado. A manifestação do deus se dá em um tempo determinado, inserido na história, e essa história é festejada em celebrações que, além de banquetes e músicas, traziam lições acerca do passado na nação. “A história cantada e recitada nessas festas era a história de como Deus havia dado a terra a seu povo, terra cujos produtos eram consumidos e celebrados nas festas.”105

Nas festas de Israel o povo se reunia e certamente cantavam os salmos.106

São três as grandes festas desse povo. Na primeira delas, a Páscoa, celebra-se a libertação proporcionada por Deus e comemora-se com alegria. Ela ocorria no 14º dia do primeiro mês e era seguida pela Festa dos Pães Asmos, que durava uma semana, com uma celebração especial no último dia. Em outra festa, a Festa das Semanas ou das Primícias, mais tarde conhecida como Pentecostes, os primeiros 50 dias de colheita eram comemorados. Já a Festa da Colheita celebrava o fim da colheita. Ela se unia à Festa dos Tabernáculos, e ambas compunham uma grande comemoração. Essa festa relembrava a época em que os israelitas viveram em tendas, e eles, desse modo, deviam habitar, por uma semana, cabanas feitas de ramos de árvores.107

“O festival, ou seja, a ocasião especial em que se abandonam as atividades ordinárias e se celebra um determinado evento, afirma a simples bondade que existe, ou guarda a memória dum deus ou herói, é uma atividade especificamente humana.”108 O homem vive em sociedade, relaciona-se com várias pessoas, trabalha, pensa, canta, reza, celebra festas, o que faz desse homem um homo festivus, dado o caráter universal da festividade humana.109 Nesse contexto, sendo uma manifestação natural do homem, a

103 FARO. Pequena história da dança. 104 ELIADE. O sagrado e o profano, p. 97. 105

PIXLEY. Apresentar-se diante de um deus que faz proezas, p. 135. 106 BARROS. Amor que une vida e oração, p. 158.

107 HARRIS; ARCHER; WALTKE. Dicionário internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 424. 108 COX. A festa dos foliões, p. 14.

109

54

dança auxiliou o desenvolvimento humano de modo integral ao contribuir para a sociabilidade humana.110

“A festividade propicia uma breve dispensa das convenções e, sem o elemento da infração das normas de comportamento comum, socialmente aprovada, a festividade nem festividade seria.”111

Para esse momento de celebração, segundo Henry Cox, o homem afirma o valor da vida e, com a ostentação de contrastes e de “excesso legitimado” em um evento, vive de modo divergente de seu cotidiano.

Cox avalia serem a festividade e a fantasia absolutamente vitais para a existência humana. Se todos os animais são capazes de brincar, cabe somente ao homem celebrar, pois, por meio dessa atividade, ele incorpora em sua própria vida as experiências de gerações passadas e celebra eventos futuros. “O passado não se evoca recordando-o apenas, mas revivendo-o, presenciando novamente seus temores e seus deleites. Nem se antecipa o futuro preparando-o apenas, mas conjurando-o e cuidando-o.” A partir daì, com a junção entre festividade e fantasia, por meio da celebração de um conjunto de lembranças comuns e de esperanças coletivas, Cox vê no homem seu caráter histórico.112

Em uma relação paradoxal, a festividade, ao propor um afastamento temporário do que é cotidiano, torna-se um meio de se distanciar da história sem, no entanto, fugir dela, visto que o momento festivo restaura a relação do homem com a história de seus antepassados. “Essa reatualização ritual do illus tempus da primeira epifania de uma realidade está na base de todos os calendários sagrados: a festa não é a comemoração de um acontecimento mítico (e, portanto, religioso), mas sim sua reatualização.”113 A festa religiosa é sempre um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente, tornado presente. Eliade discorre a respeito do tempo das festas, dos intervalos “sagrados” reconhecidos pelo homem religioso: o tempo mítico primordial tornado presente. Tomando como base o pensamento de Henry Cox, pode-se afirmar que o ritual é o mito corporalizado. E aqui cabe salientar a importância do termo “corpo”, indicando que no ritual a mente não é elemento predominante: o movimento é igualmente essencial. E é o corpo que localiza o homem de modo histórico e social. A festividade ajuda a manter passado, presente e futuro relacionados.

110 TORRES. A dança no culto cristão, p. 28. 111 COX. A festa dos foliões, p. 27.

112 COX. A festa dos foliões, p. 18-19. 113

55 O evento que celebramos é histórico, passado ou futuro, tanto assim que nos ajuda a rememorar e a esperar. Mas durante a celebração nós paramos de fazer e simplesmente estamos aí (...) Se não tivéssemos nem passado nem futuro para celebrar, vítimas seríamos dum presente atemporal e anistórico. Se, por outro lado, não celebrássemos, descambaríamos igualmente num mourejar ininterrupto, já não conhecendo nem descanso, nem alegria, nem liberdade.114

Ao conservarem vivências e seguirem um calendário preestabelecido – dando um ritmo ao tempo, com a reatualização e rememoração de eventos –, os ritos sacramentais e as festas convergem para o mesmo objetivo, o de manter a estabilidade humana.115

O desenvolvimento da dança a conduz do templo aos palcos: da dança litúrgica, celebrada por sacerdotes; vai às aldeias, passando ao folclore que tem caráter popular; e segue para as festas, os salões. A dança sai daquilo que é ligado ao campo do sagrado e se apresenta em atos privados de significado religioso. No texto bíblico, é possível vislumbrar a presença da dança em ambientes festivos de caráter religioso assim como em festas familiares. Nessas ocasiões, o caráter luxuoso do ambiente é indicado, como no Salmo 44, em que se espera pela entrada da princesa no palácio real.

Em outras culturas, a dança também é apresentada a grandes públicos, no âmbito teatral. No entanto, na cultura judaica, não se vê esse movimento, tal como ocorre com os gregos: a dança executada em peças teatrais, os coros, desenvolveu técnicas gestuais precisas, gestos miméticos e movimentos significativos.

Única em seu contexto cronológico, [a dança hebraica] é praticada sem máscaras, indubitavelmente devido a interditos religiosos. Finalmente, apresenta um caráter absolutamente excepcional: suas formas e seu espírito – ela conservou sua função religiosa – não evoluíram: o povo hebreu é o único a não ter transformado sua dança em arte.116

Na seção seguinte, serão apresentados aspectos dessa dança hebraica presente em diversos contextos das passagens bíblicas: seu caráter religioso, social, sua ligação com aquilo que é extraordinário. Serão pinceladas características concernentes ao tempo, ao espaço, ao movimento e à emoção. Outra análise será feita de modo mais aprofundado no terceiro capítulo, tendo como foco o Livro dos Salmos.

114 COX. A festa dos foliões, p. 78.

115 BAZÁN. Aspectos incomuns do sagrado, p. 53. 116

56

Documentos relacionados