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Modelo de direitos humanos da capacidade jurídica

4. CAPACIDADE: UM CONCEITO COM IMPLICAÇÕES JURÍDICAS E BIOÉTICAS

4.1 CAPACIDADE JURÍDICA: PRESSUPOSTO PARA O EXERCÍCIO DA

4.1.2 Modelo de direitos humanos da capacidade jurídica

O tema da capacidade jurídica a partir do referencial dos Direitos Humanos foi reformulado com o advento da CDPD (111) que, em seu art. 12 (1) e (2), determina que os Estados Partes assegurem às pessoas com deficiência o direito de serem reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei e de gozarem da capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. Essa norma corroborou com a mudança de paradigma sobre a capacidade jurídica que, como esclarece Albuquerque (110), foi também influenciada por outros dois fatores: o reconhecimento da capacidade como uma questão intrínseca à dignidade humana; e a incompatibilidade da declaração de incapacidade (e por conseguinte da interdição) com os princípios da não discriminação e da não

estigmatização que eram desrespeitados no caso das pessoas com deficiência intelectual e com transtorno mental.

Assim, todas as pessoas devem ter, a partir do advento da CDPD, o direito à capacidade jurídica. Uma vez que a capacidade materializa no campo jurídico o exercício da autonomia pessoal e essa é elemento ético-constitutivo da dignidade humana, conclui-se que a capacidade jurídica é expressão desse valor inerente às pessoas e, por isso, os sistemas normativos não podem obstar o exercício da autonomia por meio de instrumentos legais que declaram a incapacidade da pessoa e determinam sua interdição (110).

Com a mudança introduzida pela CDPD, a compreensão da capacidade jurídica, no âmbito dos direitos humanos, passa a ser feita baseada mormente no Comentário Geral N° 1 do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que se dedica à interpretação do art. 12 da CDPD e no QualityRights – Protecting the right to legal Capacity in mental health and related services da OMS (110).

Consoante o Comitê (47), a capacidade jurídica e a capacidade mental são conceitos diferentes. A capacidade jurídica reúne a capacidade de ser titular de direitos e obrigações (capacidade legal) e a capacidade de exercer esses direitos e obrigações (legitimidade para agir ou agência legal), sendo um conceito decisivo para garantir a participação do indivíduo na sociedade. Observa-se que essa classificação assemelha-se à classificação do Direito brasileiro, contudo, como demonstrado, os civilistas vinculam a capacidade para exercer direitos (capacidade de fato) ao discernimento, noção imprecisa e não científica que tem ocasionado a declaração equivocada de incapacidade daquelas pessoas que apresentam alguma deficiência intelectual ou transtorno mental.

A capacidade mental, diferentemente, refere-se à capacidade para tomar decisões e pode ser avaliada conforme as três abordagens mencionadas: abordagem baseada no status; abordagem baseada no resultado e abordagem funcional. Segundo o Comitê (47), a capacidade mental não deve ser mais utilizada para determinar o exercício da agência legal, pois, de acordo com o art. 12 da CDPD (111), os déficits de capacidade mental, presumidos ou reais, não podem ser usados como justificativa para negar a capacidade jurídica.

O Comitê (47) explica que a capacidade mental não é um fenômeno objetivo, científico e natural, mas depende dos contextos sociais e políticos, tal como as disciplinas, profissões e práticas que desempenham um papel central na avaliação da

capacidade mental. O Comitê (47) também observou, a partir dos relatórios dos Estados-partes, que a maioria não diferencia os conceitos de capacidade mental e capacidade jurídica, de modo que uma pessoa tem o seu direito à capacidade negado quando considerada sem aptidão suficiente para tomar decisões em razão de uma deficiência cognitiva ou psicossocial. Assim, o Comitê (47), além de rechaçar a abordagem da capacidade baseada no status, pois declara uma pessoa mentalmente incapaz devido à sua deficiência, e a abordagem baseada no resultado, que vincula a capacidade à consequência da decisão; também se posiciona contrário à abordagem funcional, pois ela, ao perquirir a aptidão da pessoa para tomar uma decisão, na prática, ignora os fatores que podem impedi-la de aplicar determinada informação à sua realidade, como no caso de desordens compulsivas, e ainda desconsidera que as decisões tomadas por uma pessoa não se restringem às motivações racionais. Portanto, considerando que todas as pessoas tomam decisões insensatas e irracionais, em maior ou menor grau, o Comitê advoga pelo reconhecimento da capacidade jurídica universal, de modo que as dificuldades no exercício da capacidade não podem servir de justificativa para declarar alguém incapaz. O Comitê, dessa forma, propõe a substituição das três abordagens citadas (status, resultado e funcional) pela abordagem da tomada de decisão apoiada. Isso significa que não é mais aceitável o modelo da decisão substituta, porquanto se fundamenta em valores e crenças externos, antes os Estados têm o dever de fornecer os suportes de apoio para que as pessoas consigam tomar uma decisão sobre questões afetas à própria vida.

A abordagem baseada na tomada de decisão apoiada é central para o modelo de capacidade jurídica que tem como referencial os Direitos Humanos e consiste em uma série de suportes para apoiar aqueles cujas habilidades decisionais encontram- se debilitadas. Essa abordagem não tem relação direta com a deficiência ou com o transtorno mental, sendo endereçada a todas as pessoas com inabilidade decisional, ou seja, que não demonstram as seguintes habilidades conforme os estudos realizados por Grisso e Appelbaum: a) habilidade para entender as informações envolvidas na situação; b) habilidade para retê-las; c) sopesar a informação e as consequências da tomada de determinada decisão; d) comunicação da decisão tomada (98).

O art.12 (3) da CDPD (111) não especifica como será esste apoio, devendo, por isso, ser entendido como um termo amplo que engloba o apoio familiar, círculos

de apoio, ombudsman pessoal, advocacy, diálogo aberto, entre outros (110). A apresentação de cada um destes suportes foge ao objetivo deste capítulo, não obstante, enfatiza-se que se trata de uma mudança crucial na forma de enxergar a capacidade dos adultos vulneráveis. Independente do suporte adotado, o apoiador deverá agir de acordo com a vontade e as preferências da pessoa apoiada, empreendendo esforços para fornecer informações de forma adequada e compreensível, permitindo, assim, que a pessoa tome uma decisão consoante seu plano de vida.

O empreendimento do Comitê em prol da tomada de decisão apoiada merece ser reconhecido, todavia, a interpretação do art.12 da CDPD dada pelo Comitê não tem sido adotada pelos Estados em geral. A partir dos argumentos de um grupo de psiquiatras contrários à radicalidade do Comitê, Albuquerque (110) esclarece que a completa desvinculação dos conceitos de capacidade jurídica e capacidade mental pode gerar danos às pessoas com deficiência mental e intelectual. Algumas pessoas, mesmo contando com suportes de apoio, não conseguirão tomar uma decisão em razão das consequências severas que determinadas deficiências, doenças neurológicas e quadros psicóticos podem causar. Assim, não obstante a regra seja a presunção de capacidade, sendo amplamente aceito que a deficiência e o transtorno mental não podem, por si só, embasar uma declaração de incapacidade, em situações excepcionais, quando os suportes de apoio se mostram insuficientes, a tomada de decisão substituta em virtude da inaptidão completa para tomar uma decisão se revela necessária.

Este trabalho, apesar de reconhecer que a abordagem da tomada de decisão apoiada deve ser a referência principal de um modelo de capacidade jurídica alicerçado no referencial dos Direitos Humanos, não descarta a importância do conceito de capacidade mental e sustenta que sua avaliação deve se dar a partir de uma abordagem funcional, o que se aplica inclusive para a compreensão da capacidade sanitária das crianças, tema que será tratado em item próprio. Na abordagem funcional, a capacidade está diretamente ligada ao tipo de decisão a ser tomada, ao momento específico e ao contexto particular na qual a decisão se insere. Isso significa que o fato de uma pessoa ser considerada capaz para decidir sobre determinado assunto não impede que ela seja considerada incapaz para outro assunto e, da mesma forma, ainda que essa pessoa seja tida por capaz em determinado momento, poderá, em outra época, ser considerada incapaz (98). Essa

abordagem considera a capacidade como algo contínuo que pode ser promovido; a capacidade não é estática, ao contrário, pode ser modificada conforme a adoção de medidas promocionais.

Neste tópico, foi demonstrado que no modelo de capacidade jurídica embasado no referencial dos Direitos Humanos, o direito à capacidade jurídica é reconhecido como um direito absoluto de modo que ninguém pode ser declarado incapaz. Dessa forma, ainda que algumas pessoas, em determinado momento, apresentem uma inabilidade para decidir, serão consideradas capazes, podendo recorrer a suportes de apoio no processo de tomada de decisão. Se tais suportes revelarem-se insuficientes, após a avaliação da capacidade decisional, poderá indicar ou ter designado um curador para decidir por ela com base na sua vontade e preferências. (110).

A despeito do reconhecimento do direito à capacidade jurídica, foi ressaltado que a capacidade jurídica universal totalmente independente da capacidade mental não é aceita na maioria dos países, existindo grande discordância quanto a intepretação do art. 12 da CDPD proposta pelo Comitê. Se com relação à capacidade do adulto ainda não é aceita o reconhecimento da capacidade jurídica completamente desvinculada da capacidade mental, a discussão sobre a capacidade jurídica das crianças é ainda maior, de modo que até mesmo os países com legislação mais avançada não abandonaram o critério da idade como delimitador da capacidade jurídica das crianças. Sob o enfoque dos direitos humanos, o regime da capacidade da criança deve ser compreendido a partir do conceito de capacidades em evolução e, como será visto, a abordagem funcional também será útil para avaliar as habilidades decisionais da criança no contexto dos cuidados em saúde, ou seja, para determinar sua capacidade sanitária.

4.1.3 Modelo de Direitos Humanos da Capacidade Jurídica da Criança: