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Se podes olhar, vê Se podes ver, repara.

2.1. Enquadramento do Gabinete de Sub-visão do Instituto de Oftalmologia Dr Gama Pinto

2.2.1. Modelo Médico pelo Prisma da Dádiva

A medicina convencional ou alopática centra-se na objetividade cartesiana, devendo aplicar o conhecimento científico ao corpo que apresenta sintomas de doença, de molde a descortinar os problemas ou patologias que o afetam. Esta racionalidade configura a ideia da separação entre corpo e mente, onde a objetividade deixa de lado o campo das emoções e dos afetos conforme orientações da formação e cultura médica que se orienta para um corpo anatómico que funciona por órgãos, aparelhos ou peças, que quando entram em disfuncionamento deverão ser analisadas de forma a elaborar um diagnóstico de identificação do problema, de modo a aplicar o tratamento ou a intervenção necessária a um rápido restabelecimento.

Para conceber um diagnóstico claro, preciso e rigoroso cientificamente, é indicado como orientação que o médico se concentre nos sintomas, limitando ao máximo quaisquer interferências perturbadoras do raciocínio tais como emoções ou afetos, pelo que se impõe um olhar “gaze” sobre o doente como um corpo objeto. O enfoque é centrado na doença e as pessoas são reduzidas ao corpo recetáculo da patologia. Como refere Bill Hughes (1999), este olhar está imbuído de uma conceção medicalizada da saúde que reduz os doentes a uma categoria de diagnóstico. Assim, a relação que se impõe entre profissionais e doentes é uma relação fria, distante, norteada por formalismos e etiquetas técnicas e simbólicas, que têm por finalidade criar uma barreira entre “nós” através do “ele”, o “outro” objeto da intervenção, aspeto que é notório quando, por exemplo, os profissionais de saúde trocam impressões ou discutem aquele caso na presença do doente como se este não estivesse presente; o que lhes importa é a doença, facto que nos foi dado observar quando o médico conduziu um doente a um colega especialista da retina e a conversa aconteceu entre os dois, ignorando o doente, remetido em algo acessório que apenas serviu para se submeter a exames. Os médicos falaram na sua linguagem hermética, sem qualquer preocupação com a presença e compreensão do doente (nota do diário de campo n.º 5). O recurso ao jargão neste contexto corrobora a análise de Foucault (2000), quando constata que o discurso médico visa a transformação dos sintomas em sinais clínicos, sendo os doentes colocados entre parêntesis, uma vez que o quadro de referência é a doença e não os doentes.

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Efetivamente, nestas situações a relação que se impõe entre os profissionais e os doentes é centrada na observação que avalia e reduz os doentes a um corpo recetáculo de doenças, ou patologias, como se de um outro abstrato se tratasse, despertando a nossa atenção para os tipos de relação interpessoal, anunciados por Martin Buber (1958), quanto ao eu-ele, eu-isso ou eu-tu. Numa relação eu-isso, uma pessoa trata a outra pessoa como objeto ou coisa, com pouco interesse pelas suas preocupações ou necessidades especiais. No caso da saúde o profissional centra-se na doença (isso) e a pessoa será reduzida a um qualquer “ele” (corpo). Quando a relação se situa entre nós (eu–tu), traduz um encontro entre iguais, entre duas pessoas que interagem com preocupação e respeito pelo bem-estar uma da outra, sendo a saúde entendida como uma vivência da pessoa que está para além da doença ou da patologia biológica. A utilização do pronome, recorrendo à perspetiva de Elias (2011:139), pode igualmente ajudar-nos a compreender a natureza das teias de interdependências que se estabelecem, de modo que o “nós” é utilizado quando nos referimos a nós mesmos, aos pares, aos de dentro e “eles”, quando nos referimos aos outros, aos distantes, aos do exterior. De forma que, o pronome pessoal “eu”, a forma singular “tu”, o plural “nós”, ou a proposição na terceira pessoa, refletem a necessidade social de exprimir, de uma forma simbólica e socialmente estandardizada, a relação entre o emissor e o recetor a quem a mensagem se destina. Pode dizer-se, então, que a configuração das pessoas envolvidas na emissão e na receção de uma mensagem, e a posição que elas ocupam no interior da configuração estruturam a linguagem e a relação.

Assim, quando os profissionais de saúde se concentram nas tarefas a executar, nas tecnologias a utilizar, ou mesmo no conhecimento a aplicar sobre os doentes objetos da intervenção, eles criam uma barreira, um distanciamento, onde os doentes deixam de ser um “nós” para se objetivarem primeiro no ele (corpo) e depois no isso (doença), os doentes são despersonalizados da sua pessoa, tornam-se no “isso”, doenças ou patologias.

A modernidade médica assenta numa dicotomia entre doente-objeto/doente-sujeito; doente- passivo/doente-ativo, que se joga entre o humanismo e o tecnicismo de que nos fala Carapinheiro (1993), imposta sobretudo pela especialização e tecnologia das infraestruturas médicas. Todavia, a autora também constata que alguns médicos mais tecnicistas, devido à centralidade da especialização médica, “procuram salvaguardar a qualificação médica e a unidade interna do corpo científico da medicina, considerando que a fragmentação provocada pela autonomização e institucionalização de domínios especializados em

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patologias ou em órgãos acarreta, de forma inevitável, a sua desqualificação e esvaziamento” (Carapinheiro,1991a:37) enquanto profissionais de saúde, podendo-se ver nesta postura analítica, de certa forma, o apelo à conservação da ideia de vocação médica, manifesta na dimensão humana da relação profissional.

No contexto da investigação, os profissionais entrevistados salientam que “cada vez mais, os médicos não estão preparados para trabalharem com pessoas: a sua formação é muito tecnicista, centrada num exame objetivo, no diagnóstico, na terapêutica. A parte da relação, do estar com o outro, a parte humana não é trabalhada ou é até mesmo camuflada” (entrevista a profissional n.º 6). A autenticidade da relação e da comunicação humana, do saber estar, comunicar, ouvir e agir com os doentes, é apresentada nestes relatos como uma dimensão ausente da formação em saúde, pois consideram que a formação académica não ministra, não treina, nem desenvolve competências relacionais e humanas. Depois os médicos oriundos destas formações praticam uma medicina defensiva ancorada em representações objetivistas do ato médico, como constatam: os “médicos não sabem lidar com as pessoas onde só veem doenças. Assim, por exemplo, quando é preciso comunicar uma má notícia, como um mau diagnóstico ou um prognóstico de irreversibilidade da doença, ou a iminência de cegueira, não são capazes de comunicar aos doentes com clareza, ficam-se pelos subterfúgios paternalistas e, quando os doentes chegam aqui, à Sub-visão, é muito mais difícil, pois não houve uma preparação e estão muito revoltados e descrentes. O médico abusa do seu estatuto e até da sua inconsciência. Por vezes fazem-se cirurgias sem informar os doentes dos riscos; sim, porque há sempre riscos e é um direito dos doentes quererem, ou não, correr esses riscos” (entrevista a profissional n.º 5). O posicionamento destes profissionais é bastante crítico quanto ao facilitismo com que se agendam cirurgias; por exemplo, às cataratas em doentes com glaucoma, que frequentemente acabam por cegar devido a complicações no pós-operatório.

Desta forma, consideram importante uma avaliação mais ponderada dos riscos, concluindo que “por vezes mais vale cuidar do pouco que se tem do que correr o risco de ficar sem nada, o que a nível da visão pode fazer toda a diferença entre uma vida autónoma e uma vida dependente” (entrevista a profissional n.º 1). Estes profissionais apresentam a formação médica e a prática cirúrgica orientada por critérios objetivistas assumindo uma postura autoritária e acrítica quanto às dimensões sociais e humanas, deixando a comunicação com os doentes e suas famílias para os profissionais sociais. Depois, em contextos de trabalho

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diferentes do hospital, os médicos precisam reorganizar os valores da experiencia clínica pessoal. Esta reorganização vai depender sobretudo das suas características pessoais, pois a perceção que estes médicos construíram do olhar médico que vê tudo tem que dar lugar à perceção do “ambiente da doença” e à prática consubstanciada no princípio de “escutar para além dos sintomas” (Carapinheiro,1993:183), em que os médicos precisam redefinir as múltiplas dimensões sociais inscritas na relação com os doentes e as doenças. Aspetos que levam a autora a salientar que os detentores do saber médico universitário definem a natureza da relação médico-doente como algo abstrato, que obscurece as diversas configurações concretas que assume nas diferentes estruturas de cuidados médicos, de modo que a representação médica dominante do hospital seja a de uma organização que permite o acesso ao desenvolvimento científico e tecnológico da medicina e não aos cuidados de saúde.

Estas relações superficiais provocam nos doentes a experiência e a sensação de um “tratamento de não-pessoa”, nos termos de Goffman (1974:298), onde os doentes são cumprimentados com o que aparenta ser civilidade, mas como se o doente não estivesse ali como uma pessoa social mas apenas como um objeto. Ora, o teor da prestação de cuidados de saúde impõe outra autenticidade e predisposição dos prestadores de serviços, onde o simbolismo duma relação de dádiva pode alterar a configuração dessas prestações. Nestas circunstâncias podemos perspetivar a transposição da troca de bens materiais para bens simbólicos ou comunicacionais – como a relação ou a palavra – e, em vez de circulação de bens ou serviços, falar em transação de palavras, onde poderemos até, segundo Caillé (1989), distinguir o registo informativo do utilitário e funcional da comunicação. Veja-se, a título ilustrativo, o sorriso, que é sempre um sinal de bem-estar e de sentimentos amistosos do emissor em relação ao recetor da mensagem; mas há sorrisos autênticos e sorrisos de circunstância: o sorriso do vendedor que nos acolhe numa loja é deliberadamente produzido, apresentando-se como um ato de circunstância instrumental, é um sorriso institucional (Baudrillard, 1995).

A relação profissional-doente pode acontecer num ambiente acolhedor ou constituir uma circunstância institucional. Neste segundo tipo de cenário o contexto da interação coloca entre parêntesis as relações interpessoais, os afetos ou a dádiva relacional, centrando-se em modelos impessoais que impõem a separação entre nós e os outros com base numa distinção nítida e hierarquizada de papéis sociais, onde a função se sobrepõe à relação, estipulando que

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quando estamos perante profissionais que detêm qualificações técnicas específicas a relação deve centrar-se na qualidade do serviço técnico, deixando de lado os afetos ou as emoções. Esta postura é resultado de um processo de socialização profissional que vai construindo um médico-tipo, que ao longo do curso de medicina e da prática médica vai perdendo o idealismo da vocação, visto como humanitarismo, e vai adquirindo um cinismo mais preocupado com os aspetos da doença e menos com os aspetos sociopsicológicos. Estes aspetos são evidenciados por Carapinheiro quando salienta o comentário de um médico que lamenta que a formação que a faculdade lhe prestou não o tenha preparado para a estrutura onde ia trabalhar nem lhe tenha proporcionado igualmente formação para uma vida laboral de relação com as pessoas que sofrem e precisam da sua ajuda (Carapinheiro, 1993:181). Este modelo médico procura envolver os profissionais numa carapaça protetora do sofrimento e envolvimento emocional, que uma relação de proximidade pode causar perante doenças crónicas, desfechos negativos, deficiências ou mesmo morte, posturas que se iniciam nas aulas de anatomia, onde a relação com o cadáver procura ocultar a pessoa detentora daquele corpo. O mesmo acontece quando, perante uma cirurgia, se oculta com um pano o corpo que dispensa intervenção. O próprio termo intervenção remete para um saber/poder médico que se usa e aplica sobre o outro com uma autoridade de subjugação. Ou seja, a cultura e prática médica dominantes assentam num simbolismo manifesto em signos, mais ou menos visíveis, que vão desde a atitude à linguagem, desde os instrumentos técnicos às técnicas de intervenção, passando por artefactos como a bata de cor branca, o estetoscópio ou o oftalmoscópio, que evidenciam essa separação, esse distanciamento assente no conhecimento e na técnica que informam a cultura médica (Lupton, 1994), onde a dádiva médica se restringe ao saber e à tecnologia apresentada e disponibilizada na forma de um serviço de natureza burocrática, que os doentes recebem como utentes ou clientes, não havendo espaço para uma relação de dádiva recíproca.

Cada vez mais, a prática médica é a de um conhecimento científico biotecnológico que se aplica sobre o outro ele, objeto de intervenção com o qual é preciso manter distância para que o raciocínio seja aplicado com o máximo de clareza, reducionismo, que se inicia no próprio ato médico quando se deixa de olhar a pessoa e se olha o corpo, e depois se olha apenas a parte, ou o órgão, como por exemplo na observação dos olhos com o oftalmoscópio, ou nos exames de diagnóstico com os diferentes aparelhos e tecnologias. Podemos divisar nesta prática entre a tecnologia e os profissionais que a aplicam duas

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componentes: a desumanização da medicina pela tecnologia e simultaneamente uma componente simbólica. A articulação e concomitância destas duas componentes, provoca por vezes, como nos foi dado observar, algum constrangimento, algum embaraço das pessoas que não conseguem permanecer quietas ou manter o olho aberto: “aquela máquina tem uma luz que parece que nos entram na alma” (entrevista a doente n.º 13). Depois, também no contexto da sub-visão, a complexidade das situações que acarretam uma cegueira iminente faz com que os profissionais não consigam, nem queiram, manter-se indiferentes ao sofrimento das pessoas, pelo que classificam a sua atividade, e o seu envolvimento, como natural, quando mencionam que “isto aqui é a quente, não há lugar para couraças” (entrevista a profissional n.º 6). Então, a dádiva representa uma forma de estar que consegue conciliar a tecnologia médica, as técnicas de reabilitação e a atenção relacional e comunicacional com aquela pessoa em particular, ou seja, a dádiva consegue através do campo simbólico conciliar tecnicismo com humanismo, ciência com afeto.

A biomedicina apela a um contexto de assepsia humana, na medida em que solicita que os profissionais de saúde domestiquem a sua componente emocional, passando a utilizar exclusivamente a razão, apresentando-se este modelo não apenas como redutor quanto à relação ou à figura do doente mas também, e antes de mais, como redutor da ação profissional e da pessoa do médico, a quem expurga da componente afetiva, dado que se considera a emoção como um obstáculo ao raciocínio lógico. Contudo, por mais que se procure objetivar a relação médica no corpo do doente não é possível quebrar a interação, que, nos termos de Weber (1982, 1983, 1991, 1997), adquire carácter de comunicação, pois a ação social só pode ser considerada como tal na medida em que a sua constituição traduz uma construção de sentido intrínseco e, ao mesmo tempo, se dirige aos outros indivíduos de uma forma significante. Sendo estes aspetos, o comunicacional e o relacional, indissociáveis, a capacidade humana de comunicar, a ação comunicativa e a solidariedade, passam a constituir elementos centrais de integração social.

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