• Nenhum resultado encontrado

No âmbito da doutrina brasileira há séria divergência sobre qual sistema é adotado. Todavia, a corrente majoritária se definiu por apregoar que aqui, no Brasil, vigora o sistema acusatório. O argumento mais presente está fundado na titularidade da ação penal concedida ao Ministério Público, consoante art. 129, I, da Constituição Federal1. Como somente o Ministério Público pode acusar nos crimes de ação penal pública, o texto constitucional tratou de excluir tal possibilidade de qualquer outra pessoa ou autoridade pública, entre elas o juiz. Com isso o processo penal brasileiro teria adotado o sistema acusatório, pois este se ajustaria a uma visão histórica de que esse sistema está centrado na presença de um acusador diferente do juiz e na impossibilidade deste último iniciar a persecução penal.

1 Art. 129: São funções institucionais do Ministério Público:

Inciso I: promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

A essência do sistema acusatório é essa: outorga das funções de acusar e julgar a órgãos distintos. Subsidiariamente, as garantias concedidas ao acusado (art. 5°, da CF), sujeito passivo do processo penal e a adoção do Estado Democrático de Direito (características trazidas pela Constituição Federal de 1988), também contribuíram para definição do sistema acusatório.

Isso porque, a definição de processo penal a ser seguido por um determinado país, de acordo com Gilberto Thums (MAURO FONSECA, P. 453) decorreria “diretamente do sistema político, fundado na Constituição”. Logo, como no Brasil se adotou expressamente o regime democrático, tal regime conduz-nos à opção pelo sistema acusatório, mesmo porque o sobredito sistema está formado por uma série de garantais inerentes a esse sistema (tribunal do Júri, publicidade, contraditório, oralidade, igualdade, entre outras), o que reforça a idéia de que o sistema acusatório é o fomentador de um processo penal democrático.

Dentre os renomados autores que defendem a adoção do sistema acusatório, destacam-se Tourinho Filho, Afrânio Jardim, Geraldo Prado (1999, p.

171), que, sobre o assuntos, expõe:

Se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, a presunção de inocência, e a que, aderindo a tudo, assegura o julgamento por um juiz competente e imparcial, pois que se excluem as jurisdições de exceção, com a plenitude do que isso significa, são elementares do sistema acusatório, chegaremos à conclusão de que, embora não diga expressamente, a Constituição da República adotou-o.

Há, todavia, quem defenda que nosso país não adota um sistema processual acusatório essencialmente puro. Para eles, há sim resquícios do sistema inquisitivo, mas já avançamos muito. Como bem coloca o professor Luiz Flávio Gomes: “não se trata de um modelo acusatório “puro” (até porque o juiz ainda pode determinar, supletivamente, a realização de prova ex officio), mas é inegável que se aproxima do ideal” (GOMES, 1999, p. 182).

Por outro lado, existem doutrinadores, tais como Frederico Marques, Rogério Lauria Tucci e Guilherme de Souza Nucci, que são defensores de que no Brasil vigora o sistema misto. Para tanto, sustenta Nucci (2007, p. 104):

O sistema adotado no Brasil, embora não oficialmente, é o misto.

Registremos desde logo que há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimento, recursos, provas, etc.) é regido por Código Específico, que data de 1941, elaborado em nítida ótica inquisitiva (encontramos no CPP muitos princípios regentes do sistema inquisitivo, como veremos a seguir). Logo, não há como negar que o encontro dos dois lados da moeda (Constituição e CPP) resultou no hibridismo que temos hoje.

Para Nucci (2007, p. 104), trata-se de um sistema complicado, já que é resultado de um Código de forte “alma inquisitiva”, iluminado por uma Constituição Federal “imantada de princípios democráticos do sistema acusatório”. Por esta razão conclui:

Seria fugir à realidade pretender aplicar somente a Constituição à prática forense. Juízes, promotores, delegados e advogados militam contando com um Código de Processo Penal, que estabelece regras de funcionamento do sistema que não pode ser ignorado como se inexistisse. Essa junção do ideal (CF) com o real (CPP) evidencia o sistema misto.

Na mesma linha, ensina Rogério Lauria Tucci: “o moderno processo penal brasileiro delineia-se inquisitório, substancialmente, na sua essencialidade; e, formalmente, no tocante do procedimento desenrolado na segunda fase da persecução penal, acusatório. [...] Nosso sistema é inquisitivo garantista, enfim, misto” (TUCCI, 2009, p. 42).

Conforme se afere, doutrinadores renomados defendem idéias opostas quanto à adoção do sistema processual no Brasil. Entretanto, não obstante a divergência de opiniões em relação a qual sistema o Brasil seria signatário, a maioria da doutrina concorda que, em que pese tenha a Constituição, ainda que implicitamente, pendido para o acusatório, na realidade prática, nosso ordenamento

tem fortes “ranços inquisitoriais”, dentre os quais sobressaem unissonamente a possibilidade do juiz “agir de ofício”, em especial, na busca por provas (largamente difundida como “poder de gestão da prova”). Tanto o é, que Guilherme de Souza Nucci coloca (2007, p. 105):

Defender o contraditório, classificando-o como acusatório é omitir que o juiz brasileiro produz prova de ofício, decreta a prisão do acusado de ofício, sem que nenhuma das partes tenha solicitado, bem como se vale, sem a menor preocupação, de elementos produzidos longe do contraditório, para formar sua convicção. Fosse o inquérito, como teoricamente se afirma, destinado unicamente para o órgão acusatório, visando a formação da sua opinio delicti não haveria de ser ele parte integrante dos autos do processo, permitindo-se ao magistrado que possa valer-se dele para a condenação de alguém.

Contudo, o que se pretende com a presente abordagem é fazer-nos aceitar que o reconhecimento da iniciativa instrutória do julgador (como se verá mais adiante), não é incompatível com os preceitos trazidos pela Constituição Federal (seja qual sistema processual por ela adotado), ainda que esse entendimento seja majoritário. Referida assertiva está equivocada, à medida que o chamado “ativismo judicial” não é conflitante com a Carta Maior, nem mesmo com um sistema processual penal de índole predominantemente acusatória, já que, conforme ressaltado, em síntese, esse sistema é caracterizado preponderantemente (se não essencialmente) pela outorga das funções de julgar e acusar a diferentes órgãos.

Outrossim, a função jurisdicional em um Estado de Direito supõe que a aplicação do ordenamento seja efetuada de forma correta, efetiva e apropriada, o que exige, quando as partes processuais fracassarem nas suas tarefas, uma iniciativa instrutória deflagrada pelo magistrado a ser fielmente acompanhada pelas partes. Como bem nos ensina Marcos Alexandre Zilli, observados esses limites, não há que se falar em violação das características essenciais do sistema acusatório, tampouco aproximação com o inquisitivo, afinal é “inadmissível que se confunda

„poder inquisitório‟ com „poder instrutório‟ do juiz” (ZILLI, 2003, p. 141).

Entretanto, consigna-se desde já que, conforme será abordado de forma mais contundente, a iniciativa instrutória do juiz nada tem a ver com a adoção de um ou outro sistema processual.

4 EM DEFESA DO PODER INSTRUTÓRIO DO JUIZ

Inicia-se agora a singela tentativa de se dirimir a concepção mitológica e ultrapassada acerca do papel do juiz na condução do processo, chegando o trabalho ao ápice do seu objetivo.