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2 EVOLUÇÃO CONCEITUAL DA EDEFICIÊNCIA

2.1 Modelo social da deficiência – Resultados e encaminhamentos

A consolidação do modelo social da deficiência provocou alterações em todo o contexto social relacionado às PCDs. Tal fato encaminhou reestruturações teóricas e conceituais em diferentes níveis e espaços destinados aos estudos e acompanhamentos dessa população.

Entre as reestruturações encaminhadas a partir dessa mudança conceitual está a reformulação do instrumento de classificação internacional da deficiência, o qual também influenciou e influencia os instrumentos de levantamento populacional e os instrumentos de avaliação da qualidade de vida. As alterações em todos esses instrumentos incorporam e denotam avanços em relação ao contexto em estudo.

É significativo nesse processo é a elaboração, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1976, de um instrumento de classificação que, de certa forma, em face aos debates presentes à época, esboça incorporar a perspectiva do modelo social da deficiência: a Internacional Classification of impairments, disabilities, and handicaps: a manual of classification relating to the consequences of disease (ICIDH). A sua tradução para o português, publicada em 1989, ficou assim definida: Classificação Internacional de deficiências, incapacidades e desvantagens: um manual de classificação das consequências das doenças (CIDID). Em termos práticos, o avanço acontece no campo da terminologia proposta. Mas, mesmo esta, é ainda apresentada em uma sequência linear,

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em condição decorrente da doença, como elucida a Figura 1. Esta representação gráfica fundamenta-se na distinção de três termos diretamente ligados ao contexto da deficiência: impairment (imparidade), disability (deficiência) e handicap (desvantagem).

FIGURA 1 – Modelo linear da CIDID

DISEASE or DISORDER IMPAIRMENT DISABILITY HANDICAP (intrinsic situation) (exteriorized) (objectfied) (socialized)

Fonte: International Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps: A manual of classification relating

to the consequences of disease

Importante salientar que a tradução da versão original, em inglês, para o português, ocorreu em Portugal, e, obviamente, para o português de Portugal. Em razão disso, é necessário que haja uma interpretação com relação aos termos dessa tradução, sobretudo no que diz respeito ao significado de “impairment” e “disability”.

Na tradução de Portugal, e utilizações dessa tradução, tem sido usados para definir “impairment”, “disability e “handicap” os termos, respectivamente, “deficiência”, “incapacidade” e “desvantagem” (OMS, 1989; AMIRALIAN et al., 2000; FARIAS; BUCHALLA, 2005). No entanto, na versão original, em inglês, a definição para os referidos termos parece acompanhar aquela proposta pelo modelo social da deficiência e destacada com ênfase pela UPIAS (1976).

Na versão em inglês do CIDID o termo “impairment” aproxima-se do que no português do Brasil se entende por imparidade, que designa a falta de paridade, a desigualdade, uma limitação. Pois, conforme é apresentado nesta versão original, no contexto da saúde, está ligado à qualquer perda ou anomalia da estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica. Representa a exteriorização de um estado patológico, refletindo um distúrbio orgânico, um defeito ou perda de um membro, órgão, tecido ou qualquer outra estrutura do corpo, inclusive das funções mentais (WHO, 1980).

O termo “disability”, por sua vez, no português do Brasil mais se aproxima do termo desabilidade, que designa a carência de habilidade, ou deficiência na habilidade, e que pode ser mais bem interpretado como “deficiência”. Esse termo é definido pela WHO (1980) como uma restrição ou falta de capacidade (resultante de uma imparidade) de executar uma atividade na forma

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ou dentro dos parâmetros considerados normais para um ser humano. O que permite reforçar que o termo que melhor se aproxima dessa definição é “deficiência”.

Em síntese, as limitações funcionais, resultantes das doenças ou desordens, que resultam em imparidades, são elementos da deficiência. A limitação funcional é considerada como um aspecto da imparidade, que está ligada às funções das partes do corpo de forma isolada. A deficiência, por sua vez, diz respeito ao resultado dessa relação entre o corpo e as habilidades e comportamentos para as tarefas do dia-a-dia (WHO, 1980).

Para o termo “handicap” não é verificada alteração semântica em relação às definições apresentadas nas versões em inglês e em português de Portugal. O termo é traduzido como “desvantagem”, a qual é definida como um prejuízo resultante de uma imparidade ou uma deficiência, que limita ou impede o cumprimento de papeis e tarefas de um indivíduo normal, independendo de idade, sexo e fatores sociais e culturais (WHO, 1980).

A aproximação desse instrumento de classificação com a perspectiva do modelo social da deficiência é esboçada na não utilização de uma mesma palavra para designar a imparidade, a deficiência e a desvantagem. Na elaboração da CIDID também se evitou utilizar palavras de carater insultante ou estigmatizante. Seguindo ainda a mesma linha, para as imparidades foi adotado um adjetivo derivado de um substantivo; para as deficiências, um verbo no infinitivo; e para as desvantagens, uma das condições de sobrevivência no meio físico e social (WHO, 1980; OMS, 1989). Tais aspectos estão elucidados no Quadro 1. O problema recai na linearidade sugerida e no fato de o início dessa linearidade estar focado na doença. Pois, essa linearidade põe-se na contramão daquilo que propõe o modelo social da deficiência, para o qual, o “não poder caminhar” é a expressão da imparidade, e a deficiência consiste na inacessibilidade imposta às pessoas pela estrutura social, e não como uma consequência natural da imparidade.

QUADRO 1

Exemplos ilustrativos para a classificação da CIDID

Imparidade Deficiência Desvantagem

Linguagem Falar

Audição Ouvir Orientação

Visão Enxergar

Músculo/Esquelética Vestir/Alimentar Independência física

Caminhar Mobilidade

Intelectual/Psicológica Comportar Integração social

Fonte: International Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps: A manual of classification relating to the consequences of disease

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As críticas mais frequentemente apontadas à CIDID estão amparadas no fato desta estabelecer uma relação causal e unidirecional entre imparidade, deficiência e desvantagem; centrar-se nas limitações da pessoa (enquanto situações intrínsecas) e apenas em seus aspectos negativos; e não contemplar o papel determinante dos fatores ambientais e sociais (FARIAS; BUCHALLA, 2005; ZOLA, 2005; MÂNGIA; MURAMOTO; LANCMAN, 2008).

Embora a CIDID tenha trazido contribuições significativas, em certo sentido ela reforçou o enfoque biomédico de compreensão da deficiência, fundamentado no ideário de que a incapacidade/desabilidade é o resultado direto da doença ou desordem.

Com base nessa descontextualização, a OMS, em 2001, revisou esse catálogo internacional de classificação da deficiência – que passou a ser chamado de “preliminar” – para então adequar-se à perspectiva do modelo social da deficiência (WHO, 2001; MEDEIROS; DINIZ, 2004). A partir dessa revisão foi elaborado um novo documento que foi denominado International Classification of Functioning, Disability and Health (ICF), também chamado, pela OMS, de ICIDH2. A versão em língua portuguesa foi traduzida pelo Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde em Língua Portuguesa com o título de Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF)3.

Nessa nova classificação o foco é ampliado e tem como objetivo uma aplicação universal. A CIF não se refere unicamente às pessoas com incapacidade. Trata-se de uma classificação que visa permitir verificar situações relacionadas com a funcionalidade do ser humano e as suas restrições. Engloba todos os aspectos da saúde humana e alguns componentes relevantes para a saúde relacionados com o bem-estar.

Para tal organização são consideradas duas partes: (1) Funcionalidades e Deficiências; (2) Fatores Contextuais. Cada parte é composta de dois componentes (WHO, 2001):

1) Parte 1. Funcionalidade e Deficiências a) Funções e Estruturas do Corpo b) Atividades e Participação 2) Parte 2. Fatores Contextuais

3 A versão em português foi desenvolvida, como na classificação anterior, a partir da língua portuguesa de Portugal

(OMS, 2004). Também nesta versão, a tradução para os termos “impairement” e “disability” seguem o mesmo padrão da classificação anterior. A referência aos termos aqui utilizados seguem como anteriormente, ou seja, seguem uma interpretação a partir da versão original, em inglês.

15 a) Fatores Ambientais

b) Fatores Pessoais

O diagrama apresentado na Figura 2 permite visualizar melhor a atual compreensão da OMS a respeito da interação entre esses vários componentes.

FIGURA 2 – Compreensão atual das interações entre os componentes da ICIDH2 Condição de saúde

(transtorno ou doença)

Funções e Atividades Participação

estrutura do corpo

Fatores ambientais Fatores pessoais

Fonte: ICIDH2

A CIF adota como base conceitual o que hoje é chamado de modelo biopsicosocial, ou seja, busca uma síntese do modelo médico e das abordagens sociais da deficiência. Com base nessa síntese, cada dimensão da deficiência é conceituada a partir da interação entre as características intrínsecas do indivíduo e o seu ambiente físico e social. Para que os pressupostos da abordagem social da deficiência se façam presentes o projeto inclui um quarto componente, “uma listagem dos fatores ambientais que podem ser utilizados, em conjunto com outros componentes ou separadamente, para identificar os determinantes da deficiência do corpo, da pessoa ou nível de funcionalidade da pessoa mediante o contexto em que está inserida” (BICKENBACH et al., 1999, p. 1183).

A deficiência é agora compreendida como uma variação identificável de funcionamento humano. Para isso surgem três dimensões: imparidade, limitações para as atividades e restrições para participação. O termo “participação” é usado para identificar a natureza e a extensão da condição de envolvimento de uma pessoa em áreas básicas da vida humana. Ao invés de tentar destilar a experiência da incapacidade, como na classificação preliminar, essa nova classificação amplia a gama da deficiência para todas as áreas da vida humana, desde a mais fútil (cuidados com

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aparência física, por exemplo) até os planos mais elevados da existência humana, como educação, espiritualidade, emprego, e envolvimento cultural, social e político (BICKENBACH et al., 1999). A teoria da deficiência apresentada na ICIDH2, ou CIF, busca deslocar o pressuposto de que o nível de disfunção do corpo, classificado como imparidade, é a dimensão fundamental, ou conceito prioritário, de deficiência. Ao contrário, as três dimensões passam a ser entendidas como iguais em significância e compreendidas como diferentes facetas ou partes de um único fenômeno que delas emerge, ou seja, da deficiência (BICKENBACH et al., 1999; WHO, 2001).

A partir dessa nova classificação, toda dificuldade ou limitação corporal, permanente ou temporária, é passível de ser classificada como deficiência. De idosos a mulheres grávidas, de crianças a adultos, seja com qual for a limitação, inclusive em decorrência da obesidade, estão amparados por essa nova classificação. A CIF propõe um sistema de avaliação com base na imparidade, nas limitações para as atividades e restrições para participação, relacionando essa “funcionalidade” com contextos sociais. A CIF também mostra que é possível uma pessoa ter imparidade sem ser deficiente – como, por exemplo, uma pessoa com lesão medular em ambientes sensíveis à cadeira de rodas. Assim como é possível alguém experimentar a previsão da imparidade e já ser socialmente considerado um deficiente – num diagnóstico preditivo de doença genética, por exemplo – (WHO, 2001; MEDEIROS; DINIZ, 2004).

O desenvolvimento de um modelo biopsicossocial, representado pela síntese dos modelos médico e social, e não apenas a adoção da abordagem social, implica no entendimento de que cada dimensão da deficiência está associada com uma gama de adequadas e diferentes respostas ou intervenções sociais. Ao nível da imparidade, as respostas médicas ou de reabilitação são as mais adequadas. Ao nível das limitações e restrições para as atividades, ligadas a um contexto de ambiente, as respostas adequadas são aquelas que dizem respeito à corrigir ou alargar a gama de recursos para compensar a limitação para as atividades.

Tal ampliação conceitual implica reconhecer que uma grande parte da população experimenta a deficiência. Esse fato pode ser acompanhado na evolução dos recenciamentos no Brasil. Os instrumentos de levantamento populacional incorporaram a evolução conceitual de deficiência ocorrida ao longo dos tempos. E essa incorporação alterou também a dimensão da deficiência.

A seguir são apresentados dados a respeito dos recenseamentos no Brasil, a relações dos instrumentos com a evolução conceitual de deficiência e também a relação dessa mudança com

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o aumento do número de pessoas declaradas com alguma deficiência. Esses dados permitem não apenas explorar a amplitude das mudanças relacionadas ao contexto dos direitos das PCDs, mas também reconhecer que a incapacidade da sociedade se ajustar à diversidade resulta na exclusão de muitas pessoas da vida social cotidiana.

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