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Ilustrações 16 e 17 – Mesa de jogo

2 MITOS, RITUAIS E EXPERIÊNCIA DO SAGRADO NO PASSADO E NA

2.1 MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE: INTRODUÇÃO AO TEMA

Considera-se a modernidade como o período imediatamente anterior à pós-modernidade e que propiciou o seu surgimento. Essa fase, segundo Bauman (1998), vivenciou um estado de permanente guerra à tradição e que foi legitimado pela pretensão de coletivizar o destino humano. Dentro desse espírito, as próprias práticas e costumes sociais eram constantemente examinados em busca da utopia da sociedade tecnológica ideal.

Essa compulsão, junto com a regulação, a supressão ou a renúncia forçada, constituíam-se no que ele denominou de “mal-estares” que se tornaram à época, marca registrada da modernidade e que “resultaram do “excesso de ordem” e sua inseparável companheira – a escassez de liberdade” (BAUMAN, 1998, p. 8-9). Nesse momento, interesses coletivos e ordem se traduziam em sinônimo de busca pela segurança.

Foi um momento em que as ciências deixaram para trás o paradigma holístico para se filiarem à especialização crescente, às explicações minuciosas dos fenômenos. Os procedimentos científicos seguem a filosofia do estado moderno “que legislou a ordem para a existência e definiu a ordem como clareza de aglutinar divisões, classificação, distribuições e fronteiras” (BAUMAN, 1998, p. 28). A história foi concebida como tendo um princípio e um fim. No campo religioso, objeto de nossa análise, tanto as denominações religiosas quanto o próprio mito deixaram de ser uma fonte de compreensão e legitimação sociocultural.

Definindo a modernidade, Maffesoli afirma que sua característica principal foi “sem dúvida, ter “domesticado” o homem, ter racionalizado a vida em sociedade” (2003, p. 140). Enfim, predominou a hegemonia da racionalidade e da lógica. Mas, como não é típico do ser humano se deixar domesticar, as reações se fizeram sentir na pós-modernidade; período ainda em curso, tempo histórico onde se desenvolverá nossa análise.

A pós-modernidade, enquanto corrente filosófica e sociológica, se expandiu em particular na França, cujos expoentes foram Michel Foucault, Jean- François Lyotard, Jean Baudrillard, dentre outros (HOUTART, 2002). A partir da década de 60, aconteceu uma radicalização das mudanças em curso, iniciadas na passagem do século retrasado para o passado, relativas ao campo religioso. Surgiu, aparentemente, uma nova forma de se posicionar perante o mundo, oriunda e desenvolvida a partir da modernidade.

Mas, segundo Bachelard, “não há desenvolvimento das antigas doutrinas para as novas, mas antes pelo contrário, envolvimento dos antigos pensamentos pelos novos” (1995, p.55). Seguindo essa linha de raciocínio e relacionando-a à pós- modernidade, depreende-se que não se trata apenas de um contra-movimento, um anti-modernismo, mas de uma herança do período anterior que se opõe às suas contradições. Observa-se que o mesmo já ocorreu por ocasião da transição de

movimentos históricos anteriores para novos períodos, onde foram revistos alguns paradigmas.

Caracteriza-se a pós-modernidade como um estado de permanente pressão para se despojar de toda interferência coletiva no destino individual, como também uma rejeição pelas ortodoxias. Há como que um desejo de tergiversar um mundo onde o sonho acalentado no período anterior – a implantação da ordem e da segurança – não foi possível. A ciência já não consegue impor conceitos rígidos, levando a uma revisão constante de teorias e paradigmas. A história se esvazia das metanarrativas e dos conceitos emblemáticos e atemporais.

Enfim, o que acontece é uma reação crítica ao período anterior, onde a liberdade individual, a descontinuidade, a fragmentação, o pluralismo de teorias e modelos e a aceitação do efêmero não representam mais o problema que importou para os antigos edificadores da ordem. É uma busca de caminhos alternativos, um recurso “na perpétua autocriação do universo humano” (BAUMAN, 1998, p. 8), onde é aceita até mesmo a multiplicidade de sentidos atribuídos a um mesmo fato, por indivíduos diferentes.

A pós-modernidade destaca-se como uma nova forma de perceber o mundo, onde a condição de incerteza é permanente e irredutível (BAUMAN, 1998); onde o mito do progresso é colocado em dúvida. Ela é permeada por um espírito de tempo que, segundo Maffesoli (2006), se caracteriza pelo termo que tomou de empréstimo à Cazenave: a regrediência, ou que ele denominou de ingresso. Vale ressaltar que regrediência não é sinônimo de regressão, é antes um “retorno em espiral de valores arcaicos unidos ao desenvolvimento tecnológico” (MAFFESOLI, 2006, p. 7). Vai de encontro a uma visão cíclica da história, diferente do que era concebido na modernidade, quando a história tinha início e fim.

O período que se está vivenciando se caracterizaria pelo paradoxo formado pela junção do arcaísmo com a vitalidade: “depois da dominação do “princípio do logos”, o da razão mecânica e previsível, o de uma razão instrumental e estritamente utilitária, assiste-se ao retorno do “princípio do eros” (MAFFESOLI, 2006, p. 6).

Quanto à administração do tempo, segundo Houtart (2002, p. 104), “o que se faz é gerir o cotidiano”. Surge uma ética do instante, onde a tônica é viver o momento presente sem fazer projeções para o futuro, aproveitando cada momento do cotidiano como ele se ofereça. Com isso, o terreno sólido do passado deixa de ter

importância e as perspectivas de futuro esmaecem em um mundo onde as mudanças são tão rápidas que faz tudo parecer incerto. O fato do período se situar cronologicamente próximo a um final de milênio, também induz à formação de um cenário de forte impacto na esfera do sagrado.

Esses fatores reunidos proporcionam uma sensação de insegurança muito grande. E, em relação a ela, a única atitude a tomar é também administrá-la. Na busca de atenuar essa insegurança, o indivíduo procura estabelecer ligações com indivíduos que cultivem ideias afins. Mas, como as idéias e ideais são continuamente renovadas, surgem os denominados grupos fluidos, que se dissolvem e refazem ao sabor da ideologia do momento.

Mesmo sendo a fluidez uma característica marcante, o período atual, segundo Maffesoli (2006), valoriza o estar-junto, a convivência, a partilha de sentimentos e pode ser traduzido pela figura mítica do puer aeternus. É a criança eterna que traz com ela uma liberdade que sacrifica até mesmo a segurança ou a felicidade, quando não reflete a respeito das possíveis consequências futuras de seus atos.

É possível assistir o surgimento de um novo modo de conviver social, onde os valores nativos trazidos pelo modo tribal de viver estão “certamente na origem dessas rebeliões da fantasia, dessas efervecências multiformes, dessa miscelândia dos sentidos de que os múltiplos agrupamentos contemporâneos dão ilustrações incontestáveis” (MAFFESOLI, 2006, p. 6). O estar-junto traz consigo, inclusive, a valorização das diferenças e o abrandamento da distinção entre cultura de massa e cultura erudita. Em resumo,

A grande mudança de paradigma que se está operando é bem o deslizar de uma concepção de mundo ‘egocentrada’ à outra ‘locuscentrada’. No primeiro caso – a modernidade que se acaba –, a primazia é concedida a um indivíduo racional que vive em uma sociedade contratual; no segundo – a pós-modernidade nascente –, o que está em jogo são grupos, ‘neotribos’ que investem em espaços específicos e se acomodam a eles (MAFFESOLI, 2003, p. 8).

Essas modificações típicas da pós-modernidade favoreceram também mudanças no campo religioso. Dentre elas, o crescimento de aspectos religiosos minoritários, o direcionamento do indivíduo para uma nova forma de vivência religiosa, mais voltada para a individualidade e a freqüência a mais de um culto/religião. Formatações essas mais compatíveis com os novos rumos que a

sociedade seguiu. E, é dessas possibilidades de experienciar o sagrado, foco de nossa investigação, que se tratará a seguir.

2.2 RELIGIOSIDADE E BUSCA PELA EXPERIÊNCIA DO SAGRADO NA