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Modificação da estrutura-“como” – abertura para propriedades

No documento SENTIDO E COMPREENSÃO EM SER E TEMPO (páginas 46-50)

1. COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO

3.2 Modificação da estrutura-“como” – abertura para propriedades

Segundo Heidegger, a questão central no tocante à modificação da estrutura-“como” com a emergência da asserção é a seguinte: em que sentido a asserção se afigura como um modo de interpretação, relevado pela estrutura de “algo como algo”? Ou seja, como a asserção explicita a compreensão de ser dos entes? No que tange a essa questão, Heidegger oferece a princípio cinco pontos, quais sejam: (1) a indicação que faz a asserção se dá com base no que já abriu na compreensão e descobriu na visão circunspectiva; (2) asserção não é uma entidade “aérea”, subsistente, mas se detém no ser-no-mundo; (3) a asserção necessita de uma posição prévia própria para mostrar no modo de determinação; (4) a asserção necessita de uma visão prévia que desloque o predicado e o inclua no ente; e (5) requer uma concepção prévia para a articulação do significado, pertencente à asserção enquanto comunicação determinante (Heidegger, 1979, p. 156-7). Desses cinco pontos mencionados, fica claro que à asserção corresponde uma interpretação dos entes, a exemplo de como se efetiva no âmbito da ocupação, de acordo com a estrutura tríplice da interpretação, ou seja, da posição prévia, visão prévia e concepção prévia (cf. Cap. 1.3). O ponto reside em entender como tal estrutura deve se modificar para que a asserção surja. Diz Heidegger (Ibid., p. 157-8):

O ente sustentado na posição prévia, por exemplo, o martelo, de início, está disposto como utensílio. Se este ente se torna ‘objeto’ de uma asserção, já se realiza previamente com a proposição assertiva uma mudança na posição prévia. O

disponível com que lidava o fazer, isto é a execução, torna-se aquilo ‘sobre’ o que a

asserção indica. A visão prévia visa algo subsistente no disponível. Através da visualização e para ela o disponível vela-se como disponível. No âmbito (Innerhalb) desse descobrir do subsistente que encobre a disponibilidade, determina-se o encontro de tudo que é subsistente, em seu modo de ser tal e tal (so-und-so). Só agora é que se abre o acesso às propriedades. O que a asserção determina como que algo subsistente é haurido do subsistente como tal. A estrutura-“como” da interpretação se modificou. O “como” já não basta para cumprir a função de apropriar-se do que se compreende numa totalidade conformativa. No tocante às suas possibilidades de articular relações de remissão, o “como” separou-se da significatividade, constitutiva do mundo circundante. O “como” é forçado a nivelar- se com o subsistente.

Pode-se identificar nessa passagem pelo menos oito “passos” por meio dos quais se efetiva a modificação da estrutura-“como”, quais sejam: (1) tem-se um ente disponível como utensílio sustentado numa posição prévia; (2) se se visa a asserção, ocorre uma mudança na posição prévia; (3) o próprio lidar, e não a função do utensílio, torna-se o “alvo” de indicação da asserção; (4) a visão prévia visa algo subsistente no disponível; (5) o disponível vela-se como disponível; (6) no âmbito do descobrir o subsistente determina-se o subsistente em seu modo de ser tal e tal; (7) abre-se assim o acesso à propriedades; (8) aquilo com que a asserção determina algo subsistente é haurido do subsistente.

O ponto central dessa mudança que permite a emergência da asserção reside nos “passos” 2 e 3, ou seja, na mudança da posição prévia e no modo de relacionar-se com o ente, visto que é o próprio lidar que se torna “alvo” de indicação da asserção. Segundo Heidegger, tal mudança na posição prévia implica uma separação do “como” das relações de remissão constitutivas da significatividade, portanto, do mundo circundante. Isso significa que as relações por meio das quais os entes eram apreendidos sofreu um alteração, o modo como as mesmas se estabelecem no tocante ao “como” (da interpretação) alterou-se. Como afirma Heidegger em outro contexto, com a asserção o modo de ser original e peculiar de algo como utensílio, por exemplo, uma caneta, nivela-se com o seu estar presente, de modo subsistente, e de tal maneira que a determinação com que a asserção apresenta esse ente se dá com base num ocultar da função primordial do mesmo enquanto um utensílio-disponível no tocante ao seu ser-para (Heidegger, 2004, p.130ss).

O primeiro ponto concernente à modificação da compreensão de ser diz respeito à estrutura, por assim dizer, do relacionar-se do ser-aí com os entes, isto é, o ente deixa de ser visto no âmbito de uma função (caracterizada por uma relação de remissão) para ser ele próprio objeto dessa visão, ou seja, visto não em conformidade a outros entes mas como algo

subsistente por si mesmo. Compreender o ente a partir de si mesmo, e não em conformidade com outros, significa deixar de compreendê-lo (apreendê-lo) segundo uma relação de remissão, seu ser-para, sua função no âmbito de uma ocupação (a “execução”). O velamento do disponível como tal deve-se à “suspensão” da relação de remissão por meio da qual o ente torna-se acessível no âmbito de uma ocupação. Nesse caso, a mudança na posição prévia corresponde à mudança do modo do ser-aí de comportar-se, relacionar-se com o(s) ente(s). Todavia, do fato de que, segundo a descrição de Heidegger, o subsistente se torne acessível apenas com o velamento do disponível, não se segue que no âmbito da ocupação haja uma hierarquia de primordialidades no tocante à compreensão dos sentido de ser, isto é, os sentidos de ser não estão dispostos de acordo com um “cake model” (bolo em camadas). A idéia do “bolo em camadas” se refere às abordagens que entendem haver uma primazia e privilégio de um sentido de ser frente a outros (Brandom, 2002, p. 328). Como fizemos notar na seção anterior, há e podem ser concebidas argumentações para confirmar a necessidade e importância da asserção no âmbito da analítica do ser-aí, ou seja, do caráter fundamental da asserção para a caracterização do próprio ser-aí.

Temos sugerido ao longo da dissertação que a mudança da compreensão do sentido de ser segue-se de uma mudança no modo do ser-aí relacionar-se, comportar-se com os entes, mudança a qual pode ser atestada pela exibição de um tipo de relação característico a cada comportamento. Foi Indicado acima (cap. 2.3) uma espécie de tipologia de relações e seus significados, depreendidos a partir de uma análise do próprio texto de Ser e Tempo. Visto que analisamos, no presente caso, o sentido de ser do subsistente, o tipo de relação inerente a este sentido de ser, tal como fizemos notar no capítulo anterior, é o de uma relação intramundana, porém, não de remissão, caracterizada pelo termo alemão “Bezug”. Além da passagem já citada acima na qual Heidegger afirma que com a asserção o “como” separa-se da significatividade, portanto, das relações de remissão que a constituem, tal ponto pode ser textualmente comprovado com a seguinte passagem (Heidegger, 1979, p. 224):

A asserção pronunciada, no entanto, é um disponível de tal modo que tem em si mesma uma relação (Bezug) ao ente descoberto, na medida em que preserva a descoberta. A verificação de seu ser descobridor diz agora: verificar a relação para o ente da asserção que preserva a descoberta. A asserção é um disponível. O ente para o qual ela tem uma relação descobridora é um disponível intramundano ou um subsistente. A própria relação se dá como algo subsistente. A relação, no entanto, reside no fato de que a descoberta, preservada na asserção, é sempre descoberta de... […] Transformando-se numa relação (Beziehung) entre subsistentes, a relação (Bezüg) recebe agora o caráter de subsistente. Descoberta de... transforma-se em concordância (Gemäßheit) subsistente de algo subsistente, isto é, da asserção pronunciada, transforma-se em um subsistente, o ente discutido. E quanto mais a concordância for vista como relação (Beziehung) entre subsistentes, ou seja, quanto

mais o modo de ser dos membros da relação forem compreendidos indiscriminadamente como algo subsistente, mais a relação (Bezüg) se mostrará como concordância subsistente entre dois subsistentes.

Essa passagem foi extraída do contexto no qual Heidegger aborda a questão da verdade (Ibid.,§44b) em consonância com a temática da asserção, visando explicar como o conceito tradicional de verdade como correspondência deve sua origem à verdade como abertura, ser-descobridor. Entretanto, torna-se claro com essa passagem que a emergência da asserção implica uma modificação no modo do ser-aí se relacionar ou comportar-se com os entes, isto é, dos sentidos de ser, modificação a qual é caracterizada por uma “tipologia” de relações. No entanto, deve-se atentar para algo importante neste ponto: Heidegger refere-se à asserção como um disponível, cujo diferencial é justamente proporcionar uma relação entre e com outros disponíveis ou com um subsistente, sendo, porém, a relação mesma tomada como algo subsistente. Ou seja, não é o caso que, como poder-se-ia facilmente pensar, a asserção seja apenas e simplesmente um subsistente, já que, como diz Heidegger, a asserção pode ser tomada como um disponível23; o ponto aqui é acerca do tipo de relação que a asserção implica: uma relação de subsistência. Note-se que a “verificação” que deve se efetivar por meio da asserção não diz respeito a um ente por meio desta apontado, mas à própria relação indicada, isto é, se podemos nos expressar desta maneira, à “estrutura relacional” na qual o ente indicado se encontra conformado. Como já notado no capítulo anterior, e que fica claro na passagem acima, a relação caracterizada pelo termo “Bezug” refere-se ao lidar que ainda mantém um vínculo com a ocupação intramundana (por exemplo, a indicação de uma relação entre um disponível e um subsistente, ou vice-versa); já a relação caracterizada pelo termo “Beziehung” refere-se a uma relação entre subsistentes, não necessariamente vinculados ao âmbito da ocupação intramundana.

Heidegger mesmo faz notar que ocorre uma variedade de graus entre uma interpretação estritamente vinculada a compreensão ocupacional, e o caso extremo de uma asserção teórica sobre subsistentes (Ibid., p. 158). Na literatura em que se aborda esse tema (Dreyfus 1991; Brandom 2002; Carman 2003), em geral, costuma-se reconhecer dois casos dessa gradação mencionada por Heidegger: a asserção ligada ao uso cotidiano, a qual também pode ser usada como um disponível ou utensílio, e a asserção no caso da tematização (Heidegger, 1979, §69b, p. 357-9).

23 Brandom (2002, pp. 298-323) concebe a asserção como uma espécie de utensílio, cuja função é realizar inferências.

Em suma, vimos nesta seção como e o que envolve a modificação da compreensão de sentido de ser, no caso, do sentido de ser da disponibilidade para o da substancialidade. Mostramos que tal modificação implica uma mudança no modo do ser-aí se relacionar ou comportar-se com os entes, atestada pelo tipo de relação que entra em questão em tal modificação.

No que se segue, apresentaremos as outras duas problemáticas enunciadas por Heidegger como relativas à temática da asserção, quais sejam, do λόγος e da verdade. O fio condutor para a elucidação de tal elo já foi apresentado com a citação textual feita acima, na qual a temática da asserção é abordada no âmbito de uma discussão a respeito do conceito de verdade.

No documento SENTIDO E COMPREENSÃO EM SER E TEMPO (páginas 46-50)

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