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Depois de todo este percurso, chega-se ao ponto em que algumas conclusões são possíveis e necessárias:

1. Celso Furtado, ao sinalizar a especificidade histórica do subdesenvolvimento e a trajetória peculiar do Brasil, no contexto capitalista periférico, deduz um arranjo singular no ordenamento político-social brasileiro – a inexistência das lutas de classe nos moldes dos países centrais, a impossibilidade histórica da burguesia nacional liderar o processo de desenvolvimento, a desarticulação das massas trabalhadoras, incapazes de impulsionar o desenvolvimento social pela via da pressão organizada –, que inviabiliza o pleno funcionamento das clássicas formas políticas de organização nos moldes do capitalismo central, ou seja, parlamento, sindicatos e partidos políticos. Neste vácuo, Furtado propõe o Estado (o Executivo) e a intelligentsia, nele incrustada, como “demiurgos” do desenvolvimento: forças capazes de traduzir as aspirações nacionais em um projeto de desenvolvimento capitalista autônomo;

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2. A análise do papel do Estado no desenvolvimento capitalista do Brasil, no ideário de Celso Furtado, demonstrou que ele não se atém à discussão das dimensões econômicas da questão. Percebe-se claramente, em dados momentos, o predomínio de uma argumentação eminentemente política (os limites da ação do legislativo, a necessidade de reforço político do executivo, a incapacidade da classe burguesa de viabilizar um projeto nacional, a ação inorgânica do operariado etc.) para justificar a participação do Estado e das elites intelectuais no processo de desenvolvimento. Uma abordagem que, de longe, ultrapassa um tratamento nos moldes econômico- keynesianos, strictu sensu. Sem colocar em questão a reconhecida dimensão keynesiana do pensamento de Furtado(um “keynesianismo atípico”, como já se disse antes), o que se quis apontar foram as razões pelas quais a argumentação intervencionista reveste-se, em dadas circunstâncias, de uma fundamentação preponderantemente política, em detrimento da econômica;

3. A sugestão foi a de que este tratamento dispensado à questão do Estado é produto das “determinações brasileiras” no ideário cepalino de Furtado. Ou seja, a existência de um substrato ideológico primário, sustentado por um conjunto de condições históricas concretas, ao qual toda a formação intelectual cosmopolita de Furtado (afinada com a renovação do pensamento social no 2o pós-guerra), acomodou-se confortavelmente. E que, é bom salientar, só pôde se revelar plenamente na análise dos textos produzidos nos primeiros anos da década de 60, período em que ele, intelectual engajado, viu-se confrontado com os desafios da prática política reformadora. Neste momento, em que suas formulações desenvolvimentistas revestem-se mais do que nunca da dimensão ideológica restrita186, evidenciam-se os

fundamentos remotos de suas concepções, cuja urdidura está em sintonia com uma larga memória intelectual brasileira que, em momento anterior da análise, chamou-se de “fascínio pela questão nacional”. Em suma, pretendeu-se demonstrar que o ideário de Furtado, para além da reconhecida influência cepalino-keynesiana, deita raízes

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numa tradição do pensamento social no Brasil que, frente à “nação inconclusa”, projetou ideologicamente, desde o final século XIX, formas de construção nacional; 4. O que esteve em jogo, nesta proposta de análise, foi a idéia de que um conjunto de

condições históricas e sociais, peculiares ao modo de ser e ir sendo do capitalismo no Brasil, fizeram com que a questão do Estado ganhasse acentuada relevância para os intelectuais envolvidos em projetos de construção nacional. Assim sendo, um tema recorrente percorreu o pensamento da intelligentsia engajada, num espectro muito amplo que vai dos teóricos da modernização conservadora (os pensadores “autoritários”) aos intelectuais comprometidos com o nacionalismo desenvolvimentista: a importância de se dar combate à disfuncionalidade do Estado brasileiro. Ou seja, a premência de se implementar um processo de racionalização na estrutura e no modo de operação dos organismos estatais, a desconfiança frente ao jogo político no parlamento (sempre visto como espaço privilegiado de ação das elites tradicionais) e na postulação da importância das elites “técnicas” para a construção da modernidade capitalista no país. E isto em função da dimensão demiúrgica atribuída ao Estado na questão nacional, à medida da inapetência ou impossibilidade da burguesia nacional realizar a modernização capitalista no país; 5. Procurou-se, também, acentuar que o reconhecimento da forte presença da “tradição

do nacional” não deve anular a percepção dos elementos inovadores do pensamento de Furtado, que vão da forma intelectual de expressão do projeto nacional –a análise macro-econômica–, passando pela identidade entre nação e desenvolvimento, com base na indústrialização auto-sustentada, até chegar a uma visão substantiva da questão democrática.

Em Furtado não se encontrou uma teorização sobre a democracia, nem mesmo em seus textos eminentemente políticos, do imediato pré-64. Mas, ficou evidente que a questão democrática, para ele, reveste-se de aspectos que não residem no jogo político liberal. Seu olhar reformador busca a “substância econômica” para a construção nacional da democracia: a superação do subdesenvolvimento; a

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interiorização das esferas de decisão; a equação keynesiana da demanda efetiva, a partir da atuação do Estado, responsável pela alocação da riqueza que o jogo do mercado não possibilita. A ação planificadora e compensatória do Estado e da sua intelligentsia, portadora de uma racionalidade superior, é que devem assegurar o interesse coletivo, a superação da miséria e as profundas desigualdes, de modo a permitir o bem-estar social na nação finalmente construída.

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