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6. Harmonia

6.7 Modulações (deslocamento de centro tonal)

A música estabelece nitidamente três metáforas espaciais. São construções arbitrárias, realizadas a partir de elementos sonoros, que nada tem em comum com elementos espaciais. A primeira delas está tão enraizada pelo uso no nosso dia-a-dia que raramente nos damos conta de que se trata de uma metáfora. Mas o fato é que a nossa cultura associa o deslocamento melódico a um deslocamento espacial que se realiza verticalmente. Falamos em melodias “ascendentes” e “descendentes”, e tecemos comentários sobre o “sobe-e-desce” das notas de uma melodia. O sistema de escrita musical ocidental é construído a partir desta metáfora: notas mais agudas são anotadas acima das notas mais graves. Podemos encontrar o uso desta associação em algumas canções eruditas: para falar sobre o céu, os compositores preferiam uma melodia ascendente; ao contrário, para falar sobre coisas terrenas melodias descendentes seriam mais apropriadas.

E, assim como em peças visuais, onde o que figura acima é destacado, posições mais agudas tendem a produzir o efeito de sentido de destaque. É por isso que geralmente a melodia principal de uma peça instrumental tende a ser a melodia mais aguda. É claro que existem muitos recursos para destacar melodias mais graves como, por exemplo, a intensidade. É o mesmo que colocar uma frase no meio de um jornal, só que com um tipo maior que o restante: apesar de não estar no topo, a frase ainda será destacada. O que queremos dizer aqui é que se nenhum outro recurso for utilizado, a melodia mais aguda tende a ser destacada e ouvida como sendo principal.

A segunda metáfora espacial pode ser descrita também como um plano, só que desta vez horizontal. Como acabamos de dizer, sons com maior intensidade parecem estar mais próximos. Esse recurso pode ser obtido também com a aplicação de um efeito de reverberação, que produz o efeito de sentido de afastamento. São estas algumas das ferramentas utilizadas pelos técnicos de som na operação de mixagem. Falamos então da “profundidade do som”, que é justamente uma metáfora espacial horizontal.

Ainda dentro da segunda metáfora, é preciso lembrar que nosso sistema auditivo tem a capacidade de perceber a posição (esquerda ou direita) da fonte sonora. Em uma audição “ao vivo” de uma peça musical, podemos identificar a posição de cada instrumento da orquestra. Esse efeito é reproduzido em sistemas de gravação estereofônico (a esmagadora maioria dos equipamentos tem essa capacidade). Na mixagem, o técnico também manipula essa propriedade (que chamamos de pan), e distribui os instrumentos à esquerda, ao centro ou à direita, dentro de uma escala gradual. Com isso, ao ouvir a peça recebemos uma verdadeira “paisagem musical”, que é reconstruída pela percepção também em formas espaciais. A tendência da evolução dos equipamentos aponta para a difusão do sistema quadrofônico, em que os sons podem vir também atrás do ouvinte, criando um efeito de sentido de imersão.

Por mais estranha que possa parecer essa discussão no âmbito da análise musical, devemos ter em mente que todo e qualquer fato da linguagem musical é pertinente. A possibilidade de construir essa “paisagem sonora” existe porque o sistema sonoro-musical permite e a nossa cultura reserva um lugar para os signos assim criados. Na introdução da canção “Acorda amor” (BUARQUE, 1974), podemos ouvir uma sirene de polícia se aproximando gradualmente, da esquerda para o centro. Isso acontece porque a intensidade do som aumenta progressivamente, mas é no início maior no canal esquerdo que no direito. Ao reconhecermos o som de uma sirene, tanto pelas suas

qualidades timbrísticas quanto pela sua curva melódica característica, reconhecemos um ator do discurso – que será depois aproveitado pela letra. Graças à metáfora espacial, somos informados de que “a polícia chegou”. Pouco importa se o som foi produzido por uma sirene de fato, ou se é um som artificial gerado por um sintetizador, ou se é o som de um violino manipulado eletronicamente. O que importa é que o signo sonoro possa ser corretamente decodificado.

A terceira metáfora espacial produzida pelo discurso musical é uma propriedade harmônica que já discutimos anteriormente: o centro tonal. Ao tecermos um paralelo entre a harmonia e a narrativa, afirmamos que o acorde dominante aponta para um “lugar eufórico”, em que as tensões são dissipadas. Esse lugar pode ser associado a um

topos, uma posição. Esta associação não passou despercebida por Ricardo Monteiro:

Em verdade o conceito de tonalidade é representado com bastante precisão pela noção de um lugar harmônico, um tópos, correspondendo conseqüentemente a modulação harmônica à passagem de um tópos a outro (MONTEIRO, 1997, p. 53).

Esse fenômeno pode ser então muito bem percebido quando a harmonia sofre uma modulação, ou seja, uma mudança de centro tonal. Mais adiante, estudaremos esse efeito na análise da canção “A história de Lily Braun” (BUARQUE e LOBO, 1983). No entanto, podemos encontrar exemplos como esse em gêneros bem distantes daqueles usualmente praticados por Chico Buarque. A associação entre modulação e deslocamento espacial pode ser facilmente percebida em “Aonde quer que eu vá” (VIANNA 2002), famosa canção do grupo Os Paralamas do Sucesso:

Aonde quer que eu vá Olhos fechados

Pra te encontrar Não estou ao seu lado Mas posso sonhar Aonde quer que eu vá Levo você no olhar Aonde quer que eu vá Aonde quer que eu vá Não sei bem certo Se é só ilusão Se é você já perto Se é intuição

Aonde quer que eu vá Levo você no olhar Aonde quer que eu vá Aonde quer que eu vá Longe daqui

Longe de tudo

Meus sonhos vão te buscar Volta pra mim

Vem pro meu mundo Eu sempre vou te esperar

A letra desta canção apresenta um forte investimento na sensibilização espacial. Seu mote principal é a afirmativa de que a distância espacial não interfere na relação juntiva que mantém com seu objeto de valor: “Aonde quer que eu vá levo você no olhar”. A intensidade desta junção é tão grande que chega a confundir o sujeito, mesmo em uma situação de separação espacial: “Não sei ao certo se é só ilusão, se é você já perto, se é intuição”

As estrofes 1 e 3 apresentam uma construção harmônica peculiar. Desenvolvida no tom de Am, ela apresenta apenas dois acordes: o próprio Am7 e um C, relativo de Am. O acorde de Am7 é composto com as notas Lá, Dó, Mi e Sol. Por sua vez, o C é construído com Dó, Mi e Sol. A proximidade harmônica entre estes dois acordes se dá

justamente pelas notas que mantém em comum: o acorde de C está inserido em Am7, pois todas as notas do primeiro estão no segundo. É essa proximidade que confere a eles o estatuto de “relativos”, e faz com que ambos apresentem a mesma função harmônica, que no caso desta canção é função tônica.

No refrão (estrofes 2 e 4), a canção passeia por outros graus do seu campo harmônico. A seqüência harmônica, exibida duas vezes, é F7M C G/B Am7. Cabe aqui alguns comentários: F7M possui Fá, Lá, Dó e Mi, tendo 3 notas em comum com o acorde de tônica. Isso faz com que ele também apresente a mesma função harmônica (trata-se de um bVI7M, sexto grau do campo harmônico de Am). F7M e C são variantes de Am7. Apesar de introduzirem algum deslocamento e um mínimo de tensão (pois os seus baixos estão em outras notas), eles são as alternativas mais próximas do centro tonal. G/B, função subdominante, é o único acorde que escapa a essa descrição. No entanto, salientamos que a tensão que ele apresenta é atenuada pela inversão, já que ele tem a nota Si no baixo. Cria-se assim um caminho de baixo contínuo que liga C a Am. Além disso, a entrada do Am é antecipada. Resumindo: aonde quer que a harmonia vá, ela corre logo para a estabilidade. Depressa (antecipação do Am) e pelo menor caminho possível (linha de baixo).

Se a tônica é a função do repouso e estabilidade, podemos concluir que esse é o investimento harmônico primordial destas estrofes. Com a alternância dos acordes relativos, o movimento harmônico é mínimo. Isso confere ao trecho um valor de verdade absoluta, inquestionável, já que nenhuma tensão harmônica sobressai. E isso figurativiza musicalmente o conteúdo produzido pelo verbal. Por mais que a melodia insista em um traçado sinuoso, a força dominante é de coesão.

Mas a canção vai um pouco além disso. Na quinta estrofe observamos uma ruptura no componente verbal. Se até então o sujeito afirmava – com convicção – que a

sensação de presença do seu par era tão forte que o confundia, aqui ele o convoca explicitamente: “Volta pra mim, vem pro meu mundo”. Ao afirmar que “meus sonhos vão te buscar”, o sujeito assume a distância que o separa de seu objeto.

Esta estrofe inicia com a afirmação: “longe daqui”. Isso coloca uma distinção entre o primeiro espaço, o “aqui”, em que a presença se faz forte, e o “longe daqui”, em que a distância se torna nítida. É também o espaço em que atua um outro actante, aquele que atualiza a presença do objeto, a ponto de iludir o sujeito: os seus sonhos.

A harmonia da canção também sofre a mesma ruptura: nesta passagem temos a modulação para o tom de D maior. Trata-se de uma mudança do centro tonal: a harmonia vai para “outro lugar”, longe do Am inicial. A voz que fala na quinta estrofe já não pisa mais o mesmo chão harmônico. No final da estrofe, observamos uma ponte - termo que em música designa uma estrutura de ligação - estabelecida pelos acordes F e E, preparando o retorno da tonalidade original. Podemos observar aqui mais uma vez a recorrência da metáfora espacial: “ponte” é a estrutura que nos permite transpor espaços.

Para finalizar, salientamos que todos os efeitos de sentido, produzidos em qualquer discurso (verbal, musical, visual, etc.) são sempre produzidos dentro de uma determinada cultura. Como vimos, a associação entre a maior energia física de uma nota mais aguda com um sentido de tensionamento, não se sustenta por si só. Esta ligação é feita pela cultura, e é essencialmente arbitrária. O mesmo acontece no caso das modulações: a associação do centro tonal com um determinado espaço faz sentido apenas em uma cultura que desenvolveu o sistema tonal. Essa aproximação não é pertinente - pois sequer é possível - em um sistema musical modal ou atonal. A idéia de que a música constituiria uma “linguagem universal” não se sustenta. Ela é, como todas as outras linguagens, um sistema de significação construído pela cultura.