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Momentos de Rodez

No documento O corpo em cena e o corpo fora da cena (páginas 67-69)

Foram meses de assobios, cantos, escarros, gesticulações insólitas, espelho de uma agitação incontrolável, aquela que o levou a ser submetido a eletrochoques. Essa experiência vai, posteriormente, ser traduzida nas cartas, quando retorna à escrita. O horror à violência desses choques está descrito em muitas dessas produções e também em poemas. O período de Rodez é essencialmente preenchido por cartas. Artaud sente-se ―em outro lugar‖, e sua comunicação escrita passa a funcionar como mensagem a seres distantes, só alcançáveis através de mecanismos postais.

A seguir, um poema de Artaud em que faz referência ao eletrochoque:

Passei nove anos em um asilo de alienados ali me fizeram uma medicina que nunca deixou de me revoltar.

Essa medicina chama-se eletrochoque, consiste em meter o paciente num banho de eletricidade, fulminá-lo

E pô-lo bem esfolado a nu

E expor-lhe o corpo tanto externo como interno a passagem de uma corrente Que vem do lugar onde se não está e nem deveria estar para lá de estar.

O eletrochoque é uma corrente que eles arranjam sei lá como, que deixa o corpo, O corpo sonâmbulo interno,

Estacionário,

Para ficar sob a alçada da lei Arbitrária do ser,

Em estado de morte

―Por paragem do coração‖ (Artaud, 1946/2007, p.97).

O período de internação consta como sendo o de maior sofrimento para o artista, a parte mais dolorosa de sua trajetória, o próprio calvário. Ele, que sempre abominara os psiquiatras e os hospícios, passa nove anos seguidos internado de hospício em hospício: Saint- Anne, Quatre-mares, Ville-Évrard, Chézal-Bénoit; isso se passa durante a guerra com a França ocupada, é uma época difícil e pouco se sabe sobre o que Artaud sofreu durante essas internações. Não há notícias dele nesse período. Em 1943, é transferido para Rodez com ajuda do poeta Robert Denos. Aí é mais bem tratado, seu psiquiatra, Dr. Gaston Ferdiére, o estimula a escrever e a desenhar, tem uma postura paternalista para com ele, mas, no entanto, aplica-

lhe eletrochoques. Jean-Michel Rey (2002) definiu esse período como importante no processo de produção de Artaud. No seu livro O nascimento da poesia, nomeia-o como sendo o ―momento de Rodez‖ e descreve uma ―estranha circularidade que faz coincidir o título de uma obra‖ (Rey, 2002, p. 14), marcada por um silêncio. O tempo é essencial na constituição de um espaço, ―a juntar signos esparsos disparatados, mantê-los todos juntos apostando que eles produzam um sentido‖ (Rey, 2002, p. 18). O escritor observa uma renúncia de Artaud entre o período de silêncio e o de retomar a escrita como um ser que se queria escritor, como forma de novamente retomar uma filiação e nomeação. Pode-se verificar, nesse retorno à escrita, o importante ponto de partida trazido pelo encontro com a linguagem, sendo que a retirada e o silêncio parecem ter sido usados como modo de operar com o excesso do Outro.

O Ser representa tanto o princípio como o lugar, há um preço a se pagar a renúncia ao nome e à assinatura, o sacrifício mesmo da linguagem. Por se sentir pressionado a expor o Ser a partir de suas Revelações, Antonin Artaud exilou-se do lugar do dizer; obrigando-se também a acusar o exílio (Rey, 2002, p. 15).

Em relação à moderação de gozo no campo da linguagem, Lacan explica que há um encontro do gozo com a linguagem, ocasião em que, no circuito pulsional, resta algo fora do contexto das significações, algo que não está imerso no campo do sentido. Lacan define como efeito de La langue,39 que produz enigma, uma afetação de gozo que permanece como núcleo traumático fora de sentido. Em relação às posições de Lacan, Lídia Lopez Schavelzon, no artigo ―Os nomes do Pai: uma pontuação na perspectiva do real, simbólico, imaginário‖,40

publicado na revista Virtuália, diz o seguinte: ―Todo o esforço antiedípico de Lacan foi o de distinguir duas castrações, a original, que surge da confrontação do gozo com a linguagem, e a edípica, onde a castração se situa como simbólica e imaginária esta última é derivada, subordinada à primeira‖ (Schavelzon, 2006, p.8).

Essa passagem de Artaud do silêncio à escrita mostra que, se, por um lado, ele preserva a lucidez, mantendo uma posição crítica no uso da linguagem, por outro, impõe a desconstrução da linguagem, revelada em uma escrita de um corpo aos pedaços, só podendo retomá-lo em um confronto destrutivo. O curto-circuito no campo da linguagem, no qual aparece a desmontagem do corpo, fica como matéria para se pôr a trabalho a letra e a carne. O resto desse corpo, montagem de Deus, cheira mal e está em inconformidade com o homem. Artaud se volta em busca de um corpo sem órgãos, como se o fato de esvaziar o corpo dos

39 Não-senso, linguagem como elucubração: Seminário 20 (Lacan, 1975/1985, pp. 180-201).

40 ―Los nombres del padre: una puntuación en la perspectiva de real, simbólico e imaginário‖ (Virtuália, n.15.

órgãos fornecesse apaziguamento ao ser. No escrito de 1947, Artaud prossegue na escrita de um corpo sem órgãos. Perante a arbitrariedade que a lei impõe ao ser e ostentando uma ordem, um julgamento vindo de um lugar em que os seres estão inseridos nas simbolizações, Artaud, não se reconhecendo nesse lugar, em seu texto ―Para acabar com o julgamento de Deus‖ (1947/2003), esbraveja contra a ordem que compõe um corpo desarticulado com a sociedade. Ele instaura, assim, a sua procura por um corpo sem órgãos através do qual ele se extrairia desse campo de intervenções. Em relação ao corpo e seus órgãos, Artaud, no texto ―O pesa-nervos‖ (1925/1968), faz referência à escrita como porcaria, a escrita que almeja o pensamento pela organização orgânica. Nesse texto, antes de chegar ao poema ―Para acabar com o julgamento de Deus‖, Artaud diz o seguinte:

[...] Toda escrita é porcaria. Todos aqueles que saem de um lugar qualquer, para tentar explicar seja o que lhes passa no pensamento, são porcos. Toda gente literária é porca, especialmente essa do nosso tempo. Todos os que possuem pontos de referência no espírito, quero dizer, de um lado certo da cabeça, sobre lugares bem demarcados do cérebro, todos aqueles que são mestres da linguagem, todos aqueles para quem as palavras têm sentido, todos aqueles para quem existem elevações da alma e correntes do pensamento, eu penso nos seus trabalhos enfadonhos precisos, a esse ranger do automático que torna a todos os ventos seu espírito, são porcos41 (Artaud, 1968/2012 p.106 ).

No documento O corpo em cena e o corpo fora da cena (páginas 67-69)

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