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Monitorado com tatuagem na perna esquerda Instalação tornozeleira

71 Outros elementos percebidos ao logo do trabalho de campo corroboraram para essa discussão, presentes também nas entrevistas com outros atores institucionais. Ilustro esse argumento por meio do trecho de fala transcrito abaixo, de uma gestora da SEDS:

“(...) tem algumas pessoas que chegam extremamente marcadas pelo sistema prisional; enquanto tem outras que passariam ali, por exemplo, na rua ninguém falaria que é egresso enquanto outros que já tem toda uma caracterização, seja por postura ou por tatuagem, marcas no corpo inclusive, que a gente percebe que é egresso”30.

O tom altamente explicativo e detalhista utilizado por meu interlocutor para caracterizar alguns monitorados demonstrava profundo conhecimento prático a partir de sua experiência como Agente de Segurança Prisional de carreira, de modo que se tornava inevitável e necessariamente objetivo qualquer tipo de analogia com os encarcerados em estabelecimentos prisionais comuns.

A partir daquela conversa, comecei a refletir sobre a questão dos possíveis estereótipos e estigmas conferidos socialmente àqueles sujeitos nos contextos ordinários e adversos de cumprimento da monitoração eletrônica; já que, estando submetidos à ‘arquitetura panóptica’ de uma ‘Unidade Prisional Virtual’, poderiam desenvolver formas próprias de vida, de significação do mundo e da realidade vivida, significativas, racionais e normais na medida em que tentasse me aproximar delas.

Entre tornozeleiras, escudos e desculpas

O segundo caso atendido na tarde do dia 7 de junho de 2013, sexta-feira, foi o de Cleusa, uma senhora de aproximadamente 35 anos, ex-companheira de Juraci. Tratava-se de um caso de acompanhamento apenas. Cleusa procurou a Central para entregar o comprovante de endereço de sua atual residência, trouxe uma conta de luz e um recibo de aluguel, porém nenhum dos dois estava em seu nome. Chegou bastante aflita, falando alto, disse que ainda estava com muito medo do ex-companheiro, que recebia ameaças com frequência e sofria uma pressão psicológica muito grande, que não se sentia segura uma vez que a porta da casa onde morava estava toda arrebentada. O cenário estava montado para a interpretação de Cleusa, não estou exagerando, o/a leitor/a compreenderá o porquê digo dessa forma.

72 Cleusa disse que havia se mudado para aquela residência recentemente e pediu à psicóloga para que fosse alterado no ‘sistema de monitoração’ seu endereço de modo a identificar o perímetro de exclusão no qual o agressor não poderia violar. A psicóloga verificou os comprovantes de endereço, mas como nenhum deles constava em nome de Cleusa, orientou que fosse ao atendimento da Companhia Energética de Minas Gerais – CEMIG, ali mesmo próximo à Praça Sete, e solicitasse uma segunda via da conta de luz, só que em seu nome. Cleusa insistiu para que a psicóloga aceitasse aqueles comprovantes tais como apresentados mas, na falta de concordância, agradeceu o atendimento (ironicamente), saiu dizendo que iria à CEMIG e que voltaria.

Nesse intervalo, a psicóloga pediu a um técnico da Central que consultasse o cadastro de Cleusa no ‘sistema de monitoração’, no que constataram que ela não era a agredida do caso e sim a monitorada. Tratava-se, na verdade, não de um caso de ‘Maria da Penha’, e sim de caso oriundo da Vara de Execuções Penais. Cleusa havia sido condenada à pena de três anos e seis meses de prisão por tráfico e porte ilegal de armas, cumpriu um ano e onze meses em regime fechado e cumpria atualmente pena em regime de prisão domiciliar.

Depois da excelente interpretação de Cleusa, a psicóloga me disse que a história do suposto ex-companheiro/agressor talvez até pudesse ser verdade. Porém, segundo um dos técnicos da Central que atendeu Cleusa em outra ocasião em que ela lá esteve, não era a primeira vez que ela tentava convencer um dos técnicos a alterar seu endereço residencial no sistema sem comprovação. A psicóloga supôs que Cleusa estaria sofrendo algum tipo de constrangimento onde reside.

Mais tarde Cleusa retornou com uma declaração da CEMIG. A psicóloga a estimulou a falar a verdade sobre o caso. Cleusa, então, contou do tempo que ficou presa, disse que se sente presa da mesma forma com a tornozeleira, que ‘a cadeia é disciplina, eu nunca tive problema de disciplina’. Confirmou, porém, as agressões que sofreu de seu ex-companheiro na cara e nos órgãos genitais e que continuava recebendo ameaças dele, por isso ela mudou de casa. Disse que percebe que a tornozeleira era um ‘escudo’ para protegê-la de novas agressões porque, sendo monitorada, visibiliza o uso do dispositivo e retruca as ameaças do ex- companheiro dizendo que teria como a Central saber imediatamente caso ele a agredisse novamente ou, até mesmo, localizar seu corpo (‘por causa da transmissão de sinais via satélite por meio da tornozeleira’) caso tentasse fazer alguma coisa contra ela.

Afirmou, porém, que se sentia constrangida em ter que usar o dispositivo e, por isso, evitava sair na rua de saia, vestido ou bermuda. Com relação à porta toda arrebentada, disse

73 que foi pelo fato de não ter pagado o aluguel, a proprietária quis despejá-la a força, houve enfrentamento e ela quebrou a porta nesse episódio.

Ao longo do desenvolvimento do trabalho de campo, diversas vezes me deparei com histórias, experiências e trajetórias que, por mais idiossincráticas que fossem, me pareciam, em alguns casos, apresentar algum grau de aproximação ou similitude, pois traziam um ou outro elemento comum. Por exemplo: motivações fúteis das agressões (com ‘desculpa’, na grande maioria das vezes, no consumo de álcool ou outro tipo de droga); o fato de que o agressor dificilmente assumia as agressões; ou de que muitas agredidas ainda gostavam de seus agressores/ex-companheiros ou dependiam deles de alguma forma (sentimental, psicológica, economicamente etc.); até mesmo os estigmas associados à tornozeleira e as explicações a terceiros sobre o porquê de sua utilização; ou, ainda, a desconfiança sempre constante com que eram tratados os monitorados pelos funcionários da Central de Monitoração; etc.

Ao mesmo tempo, a fertilidade do campo ia se descortinando nos detalhes caso a caso. Não me esqueço, por exemplo, do dia em que os agentes da Central começaram a relatar casos peculiares de monitorados que estavam ali porque ‘roubaram miojo’ até aqueles que ‘deceparam a cabeça de alguém e a colocaram sobre a mesa do bar para tomar cerveja com ela’. Ou seja, do ‘mais trivial e banal’ ao ‘mais cruel e espetacular’, as possibilidades etnográficas iam se revelando na pluralidade dos casos observados e nos relatos dos meus interlocutores.

Outro caso bastante emblemático nesse sentido foi o de Sidney, aproximadamente 28 anos, que havia saído do presídio naquele dia direto para a Central, após ficar dois meses e dez dias encarcerado. Na tarde do dia 12 de junho de 2013, quarta-feira, acompanhei a instalação da tornozeleira em seu corpo. Era amasiado de Mônica e disse que, apesar de gostar dela, não vislumbrava nenhuma expectativa de reconciliação.

Segundo ele, não havia feito nada de errado para estar naquela situação, nem teve qualquer tipo de culpa, que estava sendo tratado injustamente como um ‘Maria da Penha’, pois não era ‘batedor de mulher’. Disse que estava em casa bebendo com a ex-companheira quando se drogou (‘cheirou cocaína’), Mônica não gostou daquela atitude, passaram a trocar agressões verbais e, posteriormente, agressões físicas. Mônica registrou queixa na polícia e ele foi preso, sem ‘nem sequer ter sido ouvido pela polícia ou pelo juiz’, disse.

Sidney recebeu as orientações sobre o aparelho e um manual de uso. Perguntei como estava se sentindo, se a tornozeleira era desconfortável e/ou machucava seu pé. Então, me

74 relatou que, por estar de bermuda, estava incomodado não com o peso do aparelho ou a forma com que tinha sido ajustado em seu corpo, o preocupava muito mais a possível reação das pessoas na rua e em como poderia ser tratado, pois, no seu bairro, quem era ‘Maria da Penha’ não era ‘visto com bons olhos’ e tinha dificuldade até mesmo em se relacionar com outras mulheres. Disse que estava pensando em uma ‘desculpa’ para falar caso fosse abordado por alguém querendo saber as razões pelas quais estava monitorado. Sidney ainda não havia sido julgado, cumpria ‘medida cautelar de monitoração em liberdade provisória’.

Conforme pontuado anteriormente, tanto a categoria nativa ‘batedor de mulher’ quanto a categoria também êmica ‘Maria da Penha’ são chaves interpretativas importantes ao longo de todo o trabalho. Para que o/a leitor/a possa compreender melhor o relato, convém pontuar, de antemão, que, apesar de ambas fazerem referência ao homem autor de violência doméstica, a segunda se diferencia simbolicamente da primeira por ser socialmente atribuída ao agressor após a agressão ter sido registrada e estar em processamento no sistema de justiça, enquanto que a primeira é corriqueiramente usada para nomear homens que fazem da violência contra mulheres uma rotina em Belo Horizonte, remete à ideia de posse (bater na sua mulher), assim como também a ideia de redução e objetificação do corpo feminino (bater em mulher = ‘bater carteira’ (roubar uma carteira), p. ex.).

Vigilância, moralidade e emoção: deixando-se ‘ser afetado’ pela alteridade

No final da tarde do dia 13 de junho de 2013, acompanhei o atendimento de Jéssica, aproximadamente 25 anos, que havia chegado bastante debilitada à UGME, foi buscar seu aparelho de monitoração. Seus olhos estavam roxos e o corte no braço direito apresentava vários pontos, sinais de violência doméstica. Jéssica relatou que continuava recebendo ameaças constantes de Jonathan, com quem viveu uma relação estável durante quase sete anos.

As agressões começaram, segundo ela, a partir do momento que Jonathan começou a ‘se envolver com drogas’. A vida do casal não teve mais paz, pois as brigas viraram rotina. Disse que tentava aconselhá-lo a abandonar o vício, mas o companheiro chegou ao ponto de cometer pequenos furtos dentro e fora de casa para mantê-lo. Até o dia em que Jéssica tentou trancar Jonathan em casa para que não saísse para comprar droga e ele desferiu golpes de faca em seu braço. Estava sob o efeito de cocaína, disse alucinadamente que iria matá-la porque poderia tentar entregá-lo à polícia.

75 Apesar de ter passado por tudo aquilo e saber que teria que ficar um tempo sem se aproximar de Jonathan por conta da monitoração eletrônica, Jéssica disse que ainda o amava, que Jonathan não era um ‘batedor de mulher’, que dependia dela (psicologicamente) e que via alguma possibilidade de reconciliação futura.

Todavia, a questão do uso de drogas (ilícitas), apesar de frequente, não era o principal vilão de todos os casos, como se verificará. Diversas outras razões concorrem para a perpetuação da violência intrafamiliar e doméstica em Belo Horizonte, obviamente. Contudo, por hora, gostaria de me deter a duas questões incipientes a partir do campo: a dimensão do afeto e os estigmas no contexto da vigilância eletrônica. A observação de outros tipos de casos, que não somente de violência intrafamiliar e doméstica, será fundamental para esta análise.

Na manhã do dia 23 de agosto de 2013, sexta-feira, fui à UGME acompanhar mais casos de ‘sensibilização de monitorados’ ou de atendimento psicossocial, como quiser o/a leitor/a. O primeiro ‘atendimento’ foi o de Ednaldo, 29 anos, solto após quatro dias preso no Centro de Remanejamento do Sistema Prisional – CERESP Gameleira. Chegou à Central acompanhado de Jussara, sua companheira, com quem estava amasiado há um ano, tinha dois filhos com outro homem. Segundo relatou à assistente social, estava ali porque cometeu o delito previsto no artigo 155 do Código Penal (crime contra o patrimônio; ‘subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel’)31, ou seja, não se tratava de um caso de violência doméstica. Disse que era réu primário, ‘nunca mexeu com drogas’, que era evangélico.

Todavia, Jussara parecia desacreditá-lo no que dizia, olhando para a assistente social e para mim com um sorriso no canto direito da boca, como que querendo nos dizer que Ednaldo estava, na verdade, se passando por ‘bom moço’. Ednaldo sempre olhava para mim enquanto respondia às perguntas que a assistente social lhe fazia, como se buscasse, talvez, alguma cumplicidade ou ‘ética masculina’.

Então, a assistente social me deu abertura para que pudesse conversar com ele. Perguntei qual era sua percepção com relação à determinação judicial da medida cautelar de monitoração eletrônica. Ednaldo mostrou estar aparentemente satisfeito com o aparelho no pé, porém constrangido com os sinais luminosos e sonoros que o mesmo emitia. Perguntei se sentia algum tipo de desconforto em usar a tornolezeira e me disse que sim, pois era ‘pesado’ e o ‘incomodava’. Perguntei se a tornozeleira mudaria, de alguma forma, sua rotina. Para minha surpresa, Ednaldo me disse que não, mas que o preocupava o fato da restrição de

31 Era bastante frequente os monitorados se referirem ao ato ilícito/crime praticado apenas citando o número do

76 localização e horário (só poderia estar ausente dos locais determinados pelo juiz – sua casa, principalmente – entre 7h e 19h). Disse, ainda, que não gostava de usar bermuda e que, por isso, conseguiria ‘esconder a tornozeleira’. Todavia, caso alguém a ‘descobrisse’ e perguntasse algo, falaria a verdade (que ‘errou e estava cumprindo uma sanção por isso’) para que servisse de ‘exemplo para os outros’.

Após nossa rápida conversa, Ednaldo recebeu as orientações da assistente social sobre a utilização do dispositivo. A assistente social basicamente leu as informações contidas na apresentação em power point, em tom prescritivo/recomendativo (para não dizer impositivo). A UGME foi, mais uma vez, apresentada como ‘Unidade Prisional Virtual’. Ednaldo parecia impaciente. Logo em seguida, foi embora junto com Jussara.

No final da tarde do dia 21 de agosto de 2013, havia assistido também ao atendimento conferido à Tarcísio, 30 anos aproximadamente, ex-companheiro de Gorete, com quem teve um filho. Compareceu à UGME para instalar a tornozeleira eletrônica, após um longo histórico de cometimento de crimes e delitos e algumas experiências de encarceramento, por diversos motivos: ‘homicídio’, ‘furto’, ‘assalto a mão armada’, ‘agressões e ameaças’ etc. Sua última prisão tinha se dado em razão do descumprimento da medida protetiva de afastamento de Gorete, nem tanto por causa da ex (quem não queria ‘nem olhar a cara’), mas por causa da saudade do filho. Entre ficar encarcerado e ser monitorado, preferia a segunda opção. Disse que “tornozeleira é um benefício, graças a Deus. Cadeia é escola pra capeta”. Foi orientado pela psicóloga sobre como utilizar o equipamento. Despediu-se e foi embora satisfeito.

Outro caso emblemático foi o de Augusto, 37 anos aproximadamente, procurou a UGME na quarta-feira, dia 14 de agosto de 2013, para relatar que Fernanda, sua ex- companheira, tinha ido até sua residência para pedir que reatassem o relacionamento, ao que sempre se seguiam ameaças direcionadas a ele. Conforme foi orientado na última vez que esteve na Central, registrou o momento em que se aproximou dele e outras dela correndo quando percebeu que estava sendo fotografada. Augusto me mostrou as fotos. Segundo a psicóloga, Fernanda havia violado duplamente a monitoração eletrônica: 1) porque deixou sua UPR em casa; e 2) porque foi ao encontro do agressor. Augusto disse que cuidava dos três filhos do casal, após terem sido abandonados por Fernanda. Foi até a UGME em busca de orientações sobre como proceder naquela situação. Imediatamente, a pedido da psicóloga, um monitor da Central fez contato por telefone com Fernanda e solicitou para que comparecesse àquela Unidade na segunda-feira, dia 19 de agosto. Como tive aceso apenas à versão de Augusto, qualquer conclusão sobre o caso mostraria-se parcial e até mesmo leviana. Cito esse

77 caso, apenas pela questão dos afetos perceptivelmente em jogo, digo, em disputa.

Outro caso me chamou a atenção por essa mesma razão. No dia 22 de novembro de 2013, logo cedo, assim que cheguei à UGME, percebi que perto da porta da antessala havia um moço sentado no chão chorando, mas como teria que me dirigir à sala da coordenação e, posteriormente, à sala do ‘Psicossocial’, não parei para observar o que estava acontecendo. Mais tarde, porém, quando retornei do almoço, por volta das 15h, percebi que o moço se encontrava naquele mesmo local e cabiscaixo. Antes de ir até ele, passei na Central para conversar com uma das monitoras. Segundo me relatou, até aquele momento haviam: 200 monitorados/as de ‘Maria da Penha’ e 672 monitorados/as a partir de casos oriundos das Varas de Execuções Penais – VEPs (601 réus do sexo masculino e 71 do sexo feminino).

Voltei à antessala para conversar com o moço que ainda chorava sentado no chão. Seu nome era Carlos Henrique, tinha aproximadamente 25 anos, havia sido ‘recapturado’ por um policial e encaminhado à UGME porque tinha se esquecido de recarregar a tornozeleira e, por isso, ficado algum tempo sem comunicação com a Central. Era um caso de VEP. Desde o períoda da manhã, aguardava alguma definição com relação ao albergue para onde seria mandado. Ficou ali ‘jogado no canto’ da sala entre 10h e 18h esperando uma resposta e, como ‘medida pedagógica’, teve que carregar a tornozeleira na UGME ‘para aprender a não deixar mais descarregar’, disse um dos técnicos. Pedi a Carlos Henrique se poderia registrar aquela cena. Ele me autorizou a fazer a foto ilustrativa a seguir.