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o monopólio da ação coercitiva (especialmente o uso da violência) pelo grupo

Capítulo I – As visões tradicionais do Estado faraônico

1.1 As bases teóricas idealistas do Estado e a Egiptologia

1.1.3 o monopólio da ação coercitiva (especialmente o uso da violência) pelo grupo

Assman vai além da associação de Maat ao Estado e à política. A partir da definição grega de política como gerenciamento da pólis, o autor afirma que, paralelamente ao conceito de zoon politikon (homem como animal político), no Antigo Egito, as pessoas eram políticas no sentido em que poderiam viver em comunidade. Desta forma, Maat torna-se, também, política, algo dependente do Estado e da coerção:

Eles também atuavam em cima da suposição de que maat não poderia agir sobre a humanidade sem o Estado e seu poder coercitivo. O Estado estava lá para fazer cumprir maat na terra, para garantir os parâmetros com os quais maat poderia ser ensinada e lembrada em primeiro lugar. (...) um sistema que tinha que ser imposto de fora, ou melhor, de cima e que só poderia ser mantido pelo poder do Estado72.

Neste trecho, o egiptólogo alemão faz uma associação bastante recorrente nos cientistas sociais que trabalham com o conceito de Estado, aquela entre Estado e poder de coerção. Em nosso esquema da visão liberal de Estado, a coerção aparece representada pelos elementos ligados ao Exército e às forças policiais, responsáveis, respectivamente, pela segurança externa e interna da comunidade.

Mais direto que Assman é Edgerton ao afirmar que o direito de governar do monarca, teoricamente proveniente de seu caráter de herdeiro divino, provinha, na realidade, do controle sobre a máquina de governo, o Exército e a polícia. Desta forma, a divindade do faraó é que repousava sobre seu poder de governar, invertendo a explicação tradicional73.

A principal força policial no Egito, os medjayw, guerreiros mercenários núbios de elite, era também a guarda real. Assim, estava sob o comando direto do faraó e, portanto, funcionando como elemento de coerção interna a serviço do Estado institucional. Em especial a partir da XVIIᵃ Dinastia, o faraó era cada vez mais próximo do Exército e representado como seu comandante fosse em iconografias, fosse em textos. As virtudes guerreiras dos faraós eram ressaltadas, bem como seus feitos em batalha. Se o Estado era diretamente associado ao monarca e a coerção é uma das principais funções do Estado, logo, a coerção estava diretamente ligada à figura do faraó.

A estrutura teórica liberal, todavia, enfatiza, como visto, a perspectiva de uma harmonia interna à “sociedade civil”, que aceita a submissão ao governante em troca do domínio sobre o “estado de natureza” ou da manutenção dos “direitos naturais”. Desta maneira, a segurança interna resumir-se-ia ao controle das anomias voltado para manter o bem estar dos indivíduos e seus “direitos naturais” à vida e propriedade. Por outro lado, a principal ameaça a ser contida pelas forças coercitivas em uma realidade em que há um consenso sobre a comunidade acerca do governo seriam os elementos externos.

GRANDET, The Ramessid State, p. 846. 72 ASSMANN, The Mind of Egypt, p. 130.

73 EDGERTON, William F., El Govierno y los gobernadores en el Imperio Egipcio, Revista de

Como visto, Warburton joga para fora da sociedade egípcia o principal elemento de conflito. Além disto, ele deixa clara a importância do papel militar para o surgimento do Estado. Segundo o autor,

Como regra, a conquista militar precede a criação do Estado, então o surgimento do Estado é determinado pelo ambiente militar e não o inverso. Costume, como observado pelas populações locais anteriores à conquista, na lei, religião, tradição, hierarquia social e outras características comuns à vida humana decidem o nível social que prevalece antes da conquista militar74.

Em geral, a perspectiva do uso da violência na formação do Estado territorial unificado no antigo Egito é consensual, ainda que diferentes autores deem distintos pesos para a guerra de conquista no processo75. De qualquer forma, as representações iconográficas do período são muito claras ao demonstrar o ímpeto de conquista dos monarcas do período pré-dinástico e seu papel na unificação da monarquia, partindo do Alto Egito.

A associação entre Estado e monopólio da violência é tradicional na teoria política moderna, como visto, desde Hobbes, o “contrato social” é tido como uma seção do direito de violência característico do “estado de natureza” ao Estado encarnado no soberano. Tal monopólio da coerção é exercido pelos representantes da instituição estatal, a partir de um consenso estabelecido com base nas regras aceitas pela sociedade. Neste sentido, o Exército e a polícia seriam agentes estatais que usam a violência de forma legítima. Outros exemplos disto no antigo Egito seriam os indivíduos que acompanhavam os cobradores de impostos com vistas a agredir aqueles que não fossem capazes de pagar o exigido, como veremos mais tarde.

Ao contrário da ação para defesa de ameaças externas, Ciro Cardoso preferiu demonstrar a violência estatal no antigo Egito por meio de um documento da XXᵃ Dinastia hoje conservado no Museu Egípcio de Berlim76. Neste documento, traduzido por Cardoso, o autor era Piankhy, filho e sucessor do Sumo-Sacerdote de Tebas, Herihor, ilustra um processo sumário seguido de execução secreta.

A respeito disso, ouvi todas as palavras sobre as quais me enviaste (uma comunicação): as palavras dos dois policiais núbios; o que eles disseram. Deves reunir-te com Nedjemet (e) com o escriba Tjery igualmente e fazer

74 WARBURTON, State and economy in ancient Egypt, p. 39.

75 Esta discussão, em linhas gerais, está presente em BARD, The Emergence of Egyptian State (c. 3200- 2686 BC).

com que os policiais venham à minha casa. Traze uma testemunha das palavras (ditas pelos núbios) na verdade, na verdade. Faze (então) com que matem os policiais e os joguem no rio durante a noite. Não deixes que algum homem do país o saiba77.

Piankhy afirma ter ouvido as acusações sobre dois policiais núbios (medjayw), que teriam pronunciado dizeres considerados perigosos pelas autoridades. Logo, o autor, que além de Sumo-Sacerdote foi general, enviou o portador da carta junto com um escriba (Tjery) e a esposa de seu pai (Nedjemet) para conduzir os dois acusados à sua casa, onde seriam confrontados com testemunhas e, posteriormente, executados de forma secreta.

1.1.4 a existência de um corpo de funcionários administrativos