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CAPÍTULO IV O PROCESSO AINDA NÃO ACABOU

4.2 Monumentos no meio do Sertão?

Procuramos, em vários momentos, a partir de questões colocadas pelos gestores relativas a reações negativas ou de incompreensão do que seria um instituto, chamar a atenção para os processos psicossociais de construção de representações sociais, um conhecimento de senso comum socialmente construído e compartilhado. Como diz Jodelet, as representações sociais são construídas porque precisamos saber como nos comportar no mundo, física e intelectualmente, e saber como dominá-lo, identificando e resolvendo os problemas que se apresentam:

[...] é por isso que criamos representações. Frente a esse mundo de objetos, pessoas e acontecimentos ou ideias, não somos (apenas) automatismos, nem estamos isolados num vazio social: partilhamos esse mundo com os outros, que nos servem de apoio, às vezes de forma convergente, outras pelo conflito, para compreendê-lo, administrá- lo ou enfrentá-lo. Eis por que as representações sociais são tão importantes na vida cotidiana. Elas nos guiam no modo de nomear e definir conjuntamente os diferentes aspectos da realidade diária, no modo de interpretar aspectos, tomar decisões e, eventualmente, posicionar-se frente a eles de forma defensiva. (JODELET, 2001, p. 46)

A teoria das representações sociais construída por Serge Moscovici defende que, na construção desse tipo de conhecimento de senso comum, realizada no cotidiano de nossas interações, acontecem dois processos básicos: a objetivação e a ancoragem, os quais não ocorrem em momentos distintos, mas simultaneamente. A objetivação, segundo Moscovici (2012), está relacionada com a construção da face imagética da representação, ou seja, o processo pelo qual o que é abstrato, distante, passa a assumir uma “presença” quase tangível para os sujeitos. O mesmo acontece com a ancoragem, processo através do qual o desconhecido torna-se familiar porque passa a ser significado com base nos referentes culturais, históricos e identitários do grupo.

Na frase que serve de título para este item, a objetivação explicita-se quando a gestora toma como imagem (o abstrato transformado em concreto) dos IFs, o que nos seus referentes linguísticos e culturais, portanto no nível dos significados, ela entende como “monumento” e, ao fazê-lo, dá visibilidade aos dois processos formativos que levam à produção da estrutura de uma representação social, composta por figura/significado, elementos tão unidos entre si, como enfatiza Moscovici, como a frente e o verso de uma folha de papel19. Afirmava a Gestora 5: “Não precisa, não precisava de monumentos para dar eficiência”.

Para outros gestores, a representação social que compartilhavam da proposta da SETEC estava objetivada e ancorada na figura da Universidade e, consequentemente, no seu

significado socialmente construído:

[...] E isso já em 2006 já era o segundo mandato do presidente Lula, Haddad então apostou assim num modelo de PDI [Plano de Desenvolvimento Institucional] (...) um modelo que a princípio, era algo, assim... que não foi voltado para todas as

intuições... Enquanto todos pensavam em ser universidade tecnológica, o Haddad veio com aquela proposta de ser instituto. (G2, grifos nossos).

Observe-se a ênfase dada pelos grifos: “Enquanto todos pensavam em ser universidade tecnológica, o Haddad veio com aquela proposta de ser instituto”. Este depoimento demonstra que uma outra novidade de configuração jurídico-institucional, a Universidade Tecnológica, já não era mais um objeto estranho que precisasse se tornar familiar para os indivíduos, embora a ideia de Universidade Tecnológica não fosse tão antiga, mas, a diferença é que havia um referente concreto: a experiência da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), formalizada em 2005. A construção do significado para essa instituição envolveu significados já comuns na cultura da rede consolidados com as experiências das Universidades, das Escolas Técnicas e os CEFETs.

Então talvez essa maior ansiedade... e também temperada com as formas de gestão

tradicional da instituição, elas foram muito calcadas no período militar. Então a

gente tinha diretores que viveram 30 anos como diretores da instituição e que criaram aqui verdadeiros quartéis, vamos dizer assim, da ordem organizacional da instituição.

E derrubar esses muros não é fácil (...)

A crítica maior que eu faço, talvez, é que no primeiro momento da criação dessa instituição, os reitores, eles foram indicados pelo Ministro a partir dos diretores dos institutos, dos CEFETs e eles tiveram todo esse procedimento. Mas o conselho lá dos

reitores, a união de todos eles, talvez não tinha força para discutir com o MEC,

19 A propósito, é bem ilustrativo o exemplo dado por Moscovici (2012), no seu estudo clássico sobre a representação social da Psicanálise construída pela população parisiense. Ele constatou que, no processo de objetivação, o psicanalista era associado à imagem de um padre. Era a forma pela qual, para os parisienses, o abstrato assumia um formato quase tangível, quase palpável. E no processo de ancoragem, a terapia psicanalítica era entendida como uma confissão, à semelhança do que se faz na igreja católica.

sentar na mesa e discutir o andamento de todo esse processo. Eles eram a parte mais... eles não eram reativos ao processo, eles só levavam a missão para casa para implementar. Então não cabia a eles discutir, cabia a eles apenas a implantação

e a cobrança dos resultados. (G3, grifos nossos).

O que queremos destacar neste relato, como já alertamos anteriormente, não é a crítica ao processo inicial pelo fato de ter sido “imposto”, no sentido de centralizado por Brasília, o que foi abordado no capítulo anterior. Interessa-nos chamar a atenção para as dificuldades de incorporação de uma novidade sobre a qual pouco ou nada se sabia. Nem mesmo Brasília tinha toda clareza a respeito, por isso a constatação: “eles não eram reativos ao processo, eles só levavam a missão para casa para implementar. Então não cabia a eles discutir, cabia a eles apenas a implantação e a cobrança dos resultados”. Mas, como reagir, se não se tinha clareza sobre algo “imposto”, cuja forma não se podia ainda vislumbrar?

Estas últimas observações pretendem destacar o entrelaçamento dos processos cognitivos com os emocionais e alertar para as análises que pretendem reduzir a compreensão desse período da história da educação profissional à sua dimensão econômica, político- ideológica ou exclusivamente racional. Por isso o apoio na teoria de Serge Moscovici (e não uma análise ampla das representações sociais aí envolvidas) faz-se necessário para demarcar nossas preocupações analíticas. Denise Jodelet, também considerada como a mãe da teoria, assim explica essa imbricação entre social-cognitivo-emocional.

Concebe-se, portanto, que a representação preenche algumas funções de manutenção da identidade social e de equilíbrio sociocognitivo, os quais se encontram ligados. Isto se relaciona às defesas mobilizadas pela irrupção da novidade. Quando a psicanálise apareceu, foi sentida como uma ameaça porque infringia os valores e modelos de pensamento em vigor nos diferentes grupos religiosos e políticos. Igualmente viu-se famílias políticas considerarem como perigoso o fato de se informar ou falar sobre a teoria marxista, com se isto arriscasse subverter seus quadros mentais. Quando, entretanto, a novidade pareceu incontornável, em lugar do evitar, fez-se um trabalho de ancoragem visando familiarizá-la, transformá-la para a integrar no universo do pensamento pré-existente, trabalho que corresponde a uma função cognitiva essencial da representação e pode, assim, incluir todo elemento estranho ou desconhecido no ambiente social e ideacional. (JODELET, 2001, p. 57)

A constatação da carga emocional de todos os envolvidos na construção dos Institutos, como sabemos, faz parte do humano, e foi destacada pelos depoimentos. Expressiva a forma de falar do Gestor 3: “Então talvez essa maior ansiedade...”; ou em outros depoimentos: “Então, assim, havia um saudosismo de alguns por não viver novamente aqueles momentos mais... que você conhecia todo mundo, praticamente, na instituição, para uma instituição nova, culturalmente diferenciada” (G2); “Eu estou um pouco eufórico. Eu fico no embargo quando eu falo sobre a nossa Rede” (G4); “Eu quero muito bem a essa escola e toda a vida primei pela

qualidade dela (voz embargada). É tanto que eu estou aqui emocionada porque toda vez que eu falo na escola, eu me emociono” (G6). Como, então, desconsiderar, no processo de construção dos Institutos e das representações da novidade, esse componente muitas vezes deixado de lado pelos reducionismos economicistas ou de caráter político-ideológico? Para concluir este item, vejamos mais uma passagem do texto de Jodelet aqui citado, no qual ela faz referência à sua tese de doutorado sobre as representações sociais da loucura em uma comunidade rural da França:

Já mostrei (1985) que numa comunidade rural onde vivem em liberdade os doentes mentais, a população construiu um sistema de representação da loucura que lhe permite não apenas administrar sua interação cotidiana com estes últimos, mas também se defender da presença que julga perigosa para sua imagem e sua integridade. Temendo ser assimilada aos doentes e não podendo aceitar que sejam integrados como parte do tecido social, desenvolve-se uma representação da loucura postulando uma insuficiência no controle cerebral, no funcionamento orgânico e mental, criando um obstáculo que impede a retomada de uma atividade e de um lugar social normais. (JODELET, 2001, p. 16)