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Ao refletir em suas caminhadas, Rousseau dedica-se a escrever uma espécie de tratado sobre a mentira. Desta vez, segue explicando acerca das regras de sua própria consciência e, nesse percurso, percebemos que o filósofo vê o homem enquanto um ser que é dotado de instinto moral. Tal instinto possibilitou o aparecimento de uma consciência, que foi construída por preceitos que estão ligados por dois elos: o que vem do coração e os construídos pela razão.

Todavia, para que se faça surgir nos homens uma consciência moral, que é inata, faz-se necessária a construção de uma orientação, a fim de enfrentar as contingências que a vida oferece. E nesse contexto, a bondade natural deverá ser atualizada em virtude, no âmbito individual, para que aprenda a lidar com o meio em que vive.

Rousseau afirma que o conhece-te a ti mesmo do Templo de Delfos não é uma máxima tão fácil de seguir, como julgara em suas Confissões14. Ao direcionar seu

pensamento à juventude, o filósofo relembra das primeiras mentiras que proferiu. O fato dessa lembrança vir à mente depois de tantos anos explica-se porque as conseqüências desse ato foram terríveis e nunca saíram de seu pensamento. Esse episódio rendeu um ensinamento para o genebrino, pois:

A lembrança desse ato infeliz e os remorsos inextinguíveis que ele me deixou, inspiraram-me um horror pela mentira que preservou o meu coração desse vício para o resto de minha vida. (...) Nunca me deixei endurecer perante as minhas faltas; o instinto moral conduziu-me sempre corretamente, a minha consciência conservou a sua integridade original e, ainda que possa ter-se alterado ao vergar-se aos meus interesses, como é possível que, conservando em toda retidão, nas ocasiões em que o homem, levado pelas suas paixões, pode pelo menos desculpar-se com a sua fraqueza, perca essa retidão só em coisas indiferentes em que o vício não tem culpa? (Rousseau, 2007. p.48).

Percebemos nesse parágrafo como Rousseau acredita ser necessário falar sempre a verdade. Segundo ele, sem a verdade o homem não enxerga seus sentimentos e vai apenas refletir à luz da razão. É através dela que o ser humano aprende a comportar-se, a fim de direcionar sua verdadeira finalidade em busca da felicidade. Assim, quando a verdade é ocultada, os homens cometem o mais iníquo de todos os atos, pois se trata de um bem que é comum a todos os seres humanos.

Mas, ainda existem algumas verdades que não possuem nenhum sentido, para instrução ou prática. O filósofo afirma que “na ordem da moral nada é inútil”, ou seja, a verdade é sempre obrigatória para quem se interessa pela justiça. Segundo Rousseau (2007, p. 51), “não dizer o que é verdadeiro e dizer o que é falso são duas coisas muito

14 Obra publicada postumamente. Para Fortes (1996.p.26), esta obra é um estudo autobiográfico ou auto- analítico.

diferentes, mas que podem produzir o mesmo efeito, porque o resultado é seguramente o mesmo sempre que o efeito seja nulo”.

O cidadão de Genebra nos alerta que poderíamos evitar muitos problemas se falássemos a nós próprios, para agirmos sempre de acordo com a verdade. A mentira é sempre malévola; é por isso que temos que crer sempre na verdade, fazendo dela um princípio, para que se torne parte de nossas ações em sociedade. Com efeito, em que parâmetro poderíamos buscar a prova de que os argumentos rousseaunianos sejam infalíveis em nossa conduta no dia-a-dia? Acerca dessa questão, utilizamos as palavras do próprio Rousseau quando afirma que:

Em todas as questões de moral difíceis como esta, sempre fui capaz de as resolver melhor aplicando os ditames de minha consciência do que recorrendo à minha razão. O instinto moral nunca me enganou: conservou até agora a pureza suficiente para que nele possa confiar e, se por vezes se cala perante as paixões que regem a minha conduta, depressa readquire o seu poder sobre elas a minha memória. É aí que julgo a mim próprio, com severidade talvez igual aquela com que ao deixar esta vida, serei julgado pelo juiz soberano (Rousseau, 2007. p. 53).

Dessa forma, Rousseau afirma que; através de um ensinamento que está baseado em buscar nossa consciência, diante do autoconhecimento, permitimos que nossas faculdades naturais aflorem, e como conseqüência deste ato, não deixamos que as más ações nos modifiquem. Nesse contexto, ir em busca de boas ações é um ato de nossa natureza, que prima sempre pelo caminho mais reto em nossas ações.

Ao refletir acerca de seu comportamento, Rousseau observa a si mesmo. E o filósofo encontra-se dividido: um que está sob o efeito dos homens e o outro sob o efeito da natureza. Ele então opta pelo segundo; por isso escolhe a solidão e os encantos da natureza; e é um caminho que ele escolhe a fim de encontrar sua estabilidade, podendo para ele ser até difícil, mas não impossível.

Dessa forma, segue meditando sobre as questões de sua alma, em busca de um encontro consigo mesmo. Rousseau vê-se impressionado ao perceber as oscilações entre

seus sentimentos. É a este retorno, percebe, “que não tem nada a censurar-se senão erros e, acusa sua própria fraqueza pelos erros. E com isso se consola, na certeza de que o mal premeditado nunca se aproximou de seu coração” (Rousseau, 2007. p.119).

Diante das reflexões anteriores surgem questionamentos: como Rousseau chegou a fazer essa mudança? Ele afirma que nunca teve propensão ao amor-próprio, mas essa paixão cresceu nele porque era um homem da sociedade e, nesse caso, reconhece ser difícil controlar os excessos impostos pelo convívio com os homens.

Rousseau utilizou-se de suas próprias fraquezas para refletir seus comportamentos; essa reflexão serviu de incentivo para que buscasse suas verdadeiras faculdades, pois vivia de forma descontente contra tudo e contra todos. E esse foi o motivo que o levou a voltar-se ao seu íntimo, e nesse instante, reentrou na ordem natural das coisas, libertando-se das opiniões dos outros, que já não mais lhe interessavam. Desde então, Rousseau afirma ter encontrado a paz de espírito e quase a felicidade. Assim, o genebrino reflete:

(...) seja qual for a situação em que nos encontremos, é ele, o amor-próprio, que nos torna infelizes. Quando ele se cala, a razão fala e consola-nos por fim de todos os males que não pudemos evitar. Anula-os, na medida em que deixam imediatamente de agir sobre nós, porque temos então a certeza de que, para evitar os seus pungentes golpes, o melhor é não nos preocuparmos com eles. Nada são para quem não pensa neles (Rousseau, 2007.p.124).

Rousseau admite que, mesmo irremediavelmente dominado pelos seus sentidos, não foi capaz de resistir às suas impressões. Mesmo que seu coração estivesse infectado pelo amor-próprio, tinha consciência de que essas emoções eram passageiras. Nesse caminho, o genebrino acredita que a felicidade é um estado permanente, que parece ter nascido não para os que vivem na Terra. Nela as coisas vivem em um fluxo contínuo, mas não constante. E tudo vai mudando em nossa volta.

Ao anunciar a sua busca pela integridade moral, que passa pela reflexão acerca da mentira, ele passa pelos valores que adota quando se afasta da vida social por meio

da autoreflexão e, é quando busca na natureza física o seu consolo, o encontro consigo mesmo. Destarte, Rousseau finaliza suas reflexões afirmando que os próprios homens vivem em constante mudança, e não há nenhuma certeza de que os acontecimentos de hoje sejam iguais aos de amanhã. Por essa razão, a felicidade não se detecta através do exterior dos homens e, por isso, seria necessário vermos no coração dos que são felizes, para chegar a vê-la.

Não obstante, o filósofo genebrino enfatiza a importância de conhecermos através da auto-reflexão os valores que estão em nossa essência e diferenciá-los dos que foram moralmente construídos. A partir dessa análise, os homens poderão seguir por caminhos que estejam ligados à sua felicidade e à do grupo a que pertence. Mas, torna- se necessário que eles tenham a capacidade de distingui-los, senão o esforço dessa ponderação não terá sentido. Contudo, um elemento em seu pensamento é primordial para concretizar essa transformação, a saber, o conhecimento real da liberdade em suas ações. Nesse percurso, o filósofo vai pensar acerca de como os homens poderão exercê- la e, a partir desse momento, poderão agir através das ações dignas de um verdadeiro cidadão.