• Nenhum resultado encontrado

More no Henrique VIII de Shakespeare & Fletcher

No documento Sir Thomas More : estudo e tradução (páginas 85-91)

1. RECORDANDO THOMAS MORE

1.5 More no Henrique VIII de Shakespeare & Fletcher

Quando Henrique VIII – Tudo é Verdade (1613) foi escrita e encenada, os temas relacionados aos Tudor e ao seu período não eram mais um tabu no drama. Peças retratando Elizabeth I foram publicadas poucos anos após a coroação de James. Entre elas estão If You

Know Not Me You Know Nobody (1605-6), uma peça em duas partes escrita por Thomas

Heywood. Entretanto, o pai de Elizabeth é uma personagem silenciosa, geralmente ausente e retratada indiretamente nas peças sobre os políticos mais importantes do reinado dele, escritas todas inicialmente ainda no período elisabetano; trata-se de um grupo formado por Sir

Thomas More (1600;1603-4), Cromwell (1602) e as duas peças perdidas sobre o Cardeal

Thomas Wolsey. Porém, Henrique VIII seria personificado pela primeira vez somente na peça chamada When You See Me, You Know Me (1605), escrita por Samuel Rowley. Esta peça reapareceu em 1613, na época em que a obra colaborativa de Shakespeare e Fletcher foi escrita. Ambas retratam a maturidade de Henrique VIII, especialmente no período em que seus problemas com Catarina de Aragão e o rompimento com Roma eram iminentes ou aconteceriam ao longo do tempo abarcado na ação. Nem a peça de Rowley nem a de Shakespeare com Fletcher colocam Sir Thomas More no palco. No entanto, elas tomam posturas distintas em relação ao fato e à ficção, sendo ou mais flexível, ou mais rígida quanto à ordem cronológica dos fatos, respectivamente.

Wolsey é uma personagem notável nas duas peças. A liberdade dramática de Rowley o deixa vivo e ativo na corte até a sexta esposa do seu Rei. A peça histórica de Shakespeare e Fletcher é bem mais próxima da realidade histórica145 do que sua predecessora, e isso está evidente em seu título alternativo: All is True (Tudo é verdade). Wolsey, em

Henrique VIII, é a única conexão entre a peça e a recordação de Thomas More. A maior parte

145

Como a maioria das peças desse gênero, o tempo é geralmente reduzido e comprimido devido à unidade dramática.

da ação envolve uma sequência de quedas trágicas. O duque de Buckingham é o primeiro a encontrar um destino desgraçado, Wolsey é o seguinte e, então, a rainha Catarina de Aragão enfrenta uma sorte semelhante.

O momento em que Wolsey é destituído de seus cargos é a ocasião em que More é mencionado. A sequência, em uma cena geralmente atribuída à mão de Fletcher,146 contrasta Wolsey em seu momento introspectivo e paciente frente às adversidades com a curiosidade dele pelo que acontece no mundo afora. Cromwell, seu secretário, é aquele que traz as novidades,147 entre elas a nomeação de More como o próximo a ocupar o lugar de Wolsey como Lorde Chanceler.

CROMWELL

The next is that Sir Thomas More is chosen Lord Chancellor in your place.

WOLSEY

That’s somewhat sudden. But he’s a learned man. May he continue

Long in his highness’ favour, and do justice For truth’s sake and his conscience, that his bones, When he has run his course and sleeps in blessings, May have a tomb of orphans’ tears wept on him. What more?

(Henry VIII, Ato III, cena ii, versos 393-400)

Wolsey é preciso nessas linhas.148 Ele não parece irônico de imediato, ao desejar um longo relacionamento com o Rei, especialmente quando alude claramente à consciência de More. Ele acabara de passar por um momento de reconciliação interna. Porém, no palco, essas palavras podem ser encenadas149 de maneira irônica ou ser removidas. O fato, como observado por McMullan, de que a peça contrasta diferentes “verdades” sobre as personagens é relevante nessa passagem.150 Apenas Wolsey fala de More, quando a maioria das personagens oferece versões distintas de fatos históricos, em especial para os motivos pelos quais eles caem. O fato de More estar apenas presente aqui pode ser visto como algo positivo, porque não há ninguém que o contradiga ou levante a possibilidade de uma ironia por parte de

146

Ver o ‘Appendix 3 – Attibution and Composition’, na edição de Henry VIII de Gordon McMullan (2000, p. 448-449) para uma síntese das atribuições de cada cena.

147

As novidades comprimem eventos entre 1529 e 1533.

148

A produção do The Globe (2010) omitiu as linhas a respeito de More (versos 395-400).

149

De acordo com McMullan, “The audience would, of course, hear heavy irony in these lines, knowing as they did of More’s martyrdom in 1535” (McMULLAN (Ed.), 2000, p. 358, n. 395-6).

150

Wolsey ter acabado de ser substituído. O conteúdo dessas linhas, todavia, traz consigo a dimensão memorial.

As bênçãos e a tumba podem apontar para o culto ou a tradição de evocar More, que, como discutido aqui, tem muitas e distintas representações. A menção da morte de More pode solucionar o problema que a peça coloca nas cenas seguintes, as quais precisam ser consideradas. Algo semelhante é apresentado quando, na cena posterior, Catarina de Aragão relata as virtudes de sua filha Maria, que iria ser conhecida posteriormente pelas execuções que promoveu em seu reinado. Ambos são dois ícones católicos fortes, retratados em uma luz favorável; eles nunca são dramatizados na peça e são mencionados apenas uma vez, mas quem os relata oferece uma boa oportunidade para ironia,151 entre o que está sendo dito sobre eles e o que de fato aconteceu com eles. Uma audiência ou leitor não muito favorável a algum deles não iria falhar em observar esse tom.

Além disso, a fala incorpora alguns preciosos símbolos de preservação da memória, do período anterior à Reforma, tais como “ossos” que poderiam ser transformados em relíquias e a “tumba” que possui uma imagem semelhante a uma capela, onde, de acordo com Wolsey, os pobres poderiam lamentar a morte de More. Ironicamente, nenhuma dessas formas de recordação pré-Reforma é vinculada a ele, pelo menos não publicamente. Não existe uma capela ou relíquia baseada em seus restos mortais, assim como o seu local152 de sepultamento não foi nomeado. Juntas, essas ideias oferecem ao espectador uma noção breve de recordação dos mortos no tempo da Reforma, isto é, uma retomada de um tempo no qual essas práticas eram comuns, mas estavam distantes do cotidiano. Assim, mesmo que sua morte não seja mencionada, mas apenas aludida em termos como “consciência” e “relacionamento com o Rei”, a ideia de martírio está em torno da expressão de Wolsey, ironicamente ou não.

O avanço político de More cria uma situação incômoda dentro da peça. Em Cromwell, já existia uma situação não usual, com More como Lorde Chanceler, mas não referido como tal. Em Henrique VIII, após a mensagem a respeito de More, que é seguida da notícia sobre o avanço de Cranmer e a apresentação de Ana Bolena como rainha, o Lorde Chanceler aparece em duas cenas, mas não é identificado como More. Todas essas cenas, incluindo o comentário de Wolsey a More, provêm da mesma mão, no caso, de Fletcher.153 Portanto, a possibilidade de que Shakespeare ou Fletcher tenham trabalhado de forma

151

Ver McMULLAN. Op. cit., p. 119-20.

152

Curiosamente, a localização precisa de sua cela na Torre de Londres não é sabida e visitas do público a esta parte do local turístico são restritas.

153

diferente em cenas envolvendo More pode ser descartada com segurança. Na verdade, eles parecem ter trabalhado na peça sabendo bem o que o outro estava fazendo. Isso cria a dificuldade de saber precisamente se o anúncio feito por Wolsey é relevante, em termos de quem irá ocupar o lugar de Chanceler nas cenas seguintes, ou se se trata de um caso de recordação em um momento muito específico. Ambas as posições, todavia, não são excludentes entre si. Se a peça está informando quem é o Lorde Chanceler, ela contradiz a unidade histórica da obra. Mesmo o gênero histórico tendendo a ser abrangente, as fontes não têm More como o Lorde Chanceler nos eventos históricos narrados após a queda de Wolsey. Além disso, a maior parte das personagens, mesmo quando representada por seus títulos de nobreza, corresponde, em níveis variáveis, a uma pessoa específica e identificável.

A primeira dessas ocasiões é uma rubrica muito detalhada (IV.i), que segue imediatamente a cena citada de Wolsey. Uma longa procissão de pessoas ocorre devido à coroação da nova rainha, Ana Bolena. O Lorde Chanceler é o primeiro a entrar. Após a procissão, dois cavalheiros comentam quem é quem na cerimônia; no entanto, eles não mencionam More nem quem o Lorde Chanceler é. Historicamente, o Lorde Chanceler, nessa ocasião, era Sir Thomas Audley.154 Esse é, portanto, uma personagem formal, presente, mas não identificada, fato que também se repete em Holinshed, em algumas ocasiões.

THE ORDER OF THE CORONATION 1 A lively flourish of Trumpets.

2 Then, two Judges.

3 Lord CHANCELLOR, with purse and mace before him. 4 Choristers, singing. Music

5 Mayor of London, bearing the mace. Then GARTER, in his coat of arms, and on his head a gilt copper crown.

6 Marquess Dorset, bearing a sceptre of gold,on his head a demi-coronal of gold. With him the Earl of SURREY, bearing the rod of silver with the dove, crowned with an earl's coronet. Collars of esses.

7 Duke of SUFFOLK, in his robe of estate, his coronet on his head, bearing a long white wand, as High-Steward. With him, the Duke of NORFOLK, with the rod of marshalship, a coronet on his head.Collars of esses.

8 A canopy borne by four of the Cinque Ports; under it, the QUEEN [ANNE] in her robe; in her hair, richly adorned with pearl; crowned. On each side her, the Bishops of London and Winchester.

9 The old Duchess of Norfolk, in a coronal of gold, wrought with flowers, bearing the Queen’s train.

154

10 Certain Ladies or Countesses, with plain circlets of gold without flowers.

Exeunt, first passing over the stage in order and state, and then a great flourish of trumpets.

(King Henry VIII, Ato IV, cena i, verso 36.1-25)

A próxima aparição do Lorde Chanceler acontece no último ato da peça. Entre esta e a cena mencionada acima está a morte de Catarina de Aragão (IV.ii), – que ocorreu em 1536, um ano após a morte de Thomas More – e o nascimento de Elizabeth I (V.i), que aconteceu em 1533. O ano da cena na qual o Chanceler aparece novamente (V.ii) é mais de dez anos posterior à data de nascimento de Elizabeth. Mesmo que o tempo seja geralmente comprimido e expandido nas peças históricas, ambos os eventos e a sequência de julgamento já não podem referenciar mais a Thomas More, nem mesmo a Thomas Audley. Os bispos católicos, um grupo no qual Gardiner reaparece, desenvolvem um plano para se livrar de Thomas Cranmer, que é o homem poderoso do momento na peça. Seus motivos estão vinculados às afinidades luteranas de Cranmer. No entanto, este possui proteção real, simbolizada pelo anel do Rei, e pelo fato de que o próprio Henrique VIII intervém no julgamento para ajudar o seu favorito.

À parte dessa sequência de eventos, existe outra indicação de que o Lorde Chanceler nesse ponto da peça é apenas outra personagem formal. Primeiro, ele somente fala para conduzir o julgamento, isto é, ele é aquele que carrega autoridade em meio aos litigantes. Durante as acusações, relacionadas às discussões teológicas, ele permanece em silêncio. Ele é aquele que identifica o anel do Rei quando Cranmer não possui nenhum outro recurso para escapar de ser preso e levado à Torre. Foakes, um dos editores da peça, propôs que o Chanceler não é nomeado para evitar “intrusion of personality”,155

algo que faz sentido, pois seria natural pensar em Thomas More como a peça havia sugerido anteriormente, com Wolsey. Porém, não faria muita diferença se o chanceler fosse corretamente identificado como Henry Wriothesley, porque suas falas são puramente formais. A falta de personalidade talvez seja o motivo por que os prefixos de enunciadores do Lorde Chanceler (Chan.) e Lord Chamberlain (Cham.)156 são algumas vezes intercambiáveis no texto do Fólio nesta cena;

155

FOAKES, R. A. (Ed.). Henry VIII, 1996 [1957], p. 157.

156

A abreviação de Cranmer também poderia ser um problema (Cran.) ao lado de Chanceler (Chan.) e Chamberlain (Cham.), todos na mesma sequência, especialmente pelo fato de a peça não ter sido publicada em formato impresso e, consequentemente, o texto base para os compositores do fólio provavelmente ter sido um manuscrito ou uma cópia manual feita por algum escriba.

todavia, eles são corretamente identificáveis, de acordo com McMullan, com o nível de autoridade esperado em termos de quem diz o que.157

O fato de que esses chanceleres são mudos ou privados de qualquer caracterização leva a uma personagem histórica qualquer, que não é More. A peça, como mencionado acima, geralmente define papéis e identidades, mas isso não é verdade para todas as personagens, especialmente para aquelas encontradas nas últimas cenas. Trata-se de muitas personagens comuns, tais como “porteiro”, “homem”, “Chamberlain”, “pajem”, “senhora idosa”, “vigilante” e três “cavalheiros distintos”, especialmente localizadas no último ato. Entretanto, a peça em muitas ocasiões dá nome a suas personagens, mesmo que elas apareçam apenas uma vez.

Mas, e se o chanceler fosse Thomas More? Esta seria uma cena diferente, especialmente quando ele fala no julgamento de Cranmer.158 Sendo uma personagem opaca, como Fletcher o elaborou, ele parece imparcial durante o julgamento, especialmente quanto à discussão que envolve a promoção de “heresias”. A tradição dramática, se considerarmos

Cromwell e When You See Me juntas, é de representar a “personagem católica perversa” como

Gardiner e/ou Wolsey. More nunca ocupa esse papel dramático de forma explícita; ainda que Wager seja incluído na discussão, por meio de sua transcriação indireta em Moros, como discutido acima, o tipo de drama entre The Longer Thou Livest e Henrique VIII é completamente diferente.

Portanto, a única referência a More na peça é aquela mencionada por Wolsey. Dentro desse contexto, Wolsey, o Lorde Chanceler caído em desgraça, apenas comenta brevemente as notícias trazidas por Cromwell, mas ele faz uma fala relativamente laudatória quanto a More, enquanto ideias de memória aparecem de forma abundante em todos aqueles versos. O Henrique VIII de Fletcher e Shakespeare apresenta apenas uma recordação de More, mas invoca quatro pessoas distintas como Lorde Chanceler. No palco, a presença de alguém carregando a maça e símbolos do Estado, condizentes na cerimônia de coroamento ou no julgamento, não evoca precisamente a memória do próprio Thomas More. Isso seria diferente se ele já tivesse aparecido entre a cena da queda de Wolsey e a coroação da rainha Ana. Vale lembrar que a queda de Wolsey acontece antes dos conflitos entre grupos político-religiosos.

A ideia de que More não deve estar relacionado ao partido católico – do fim da peça –, em uma peça com um viés protestante, é sugestiva. Sua memória é aquela de um

157

McMULLAN, Gordon (Ed.). Op. cit., 2000, p. 412, n.119, 121.

158

Susannah Monta (2009), discutindo o martírio no período do Início da Idade Moderna, explora essa possibilidade, ao interpretar que Cranmer está de frente para More, uma leitura que funciona relativamente bem dentro do argumento específico de seu livro.

cidadão, um bom homem e o amigo dos pobres. Existe uma menção oblíqua de sua reação nos eventos que circundaram a queda de Wolsey e Catarina. Ambos caíram pelo mesmo problema que levou More à sua própria destruição – o divórcio do Rei –, aludido discretamente na fala de Wolsey. O nome de More é mencionado exatamente entre as quedas dessas duas personagens, e talvez a menção a sua morte e seu túmulo já encerre ali mesmo o alcance de seu envolvimento na peça.

Para concluir esta última recordação, em Henrique VIII, como na descrição de Nashe, More é apenas recordado por meio da memória de outra personagem. Da mesma forma que na obra de Heywood, ele é representado em um viés positivo, evitando discussões que estão presentes em Cromwell, ainda que elas não envolvam More. O problema com o cargo de Lorde Chanceler já estava presente em Cromwell e, de alguma forma, em Il Moro, pois a ação acontece após sua resignação; aqui o verso de Wolsey apenas transita pela vida de More em poucas linhas. Apesar de a dramatização de Henrique VIII no palco não ser mais uma questão delicada em 1613, a presença de More ou a implicação direta de que uma personagem sem nome seja ele parece mais complicada, especialmente devido ao contexto político e religioso com o qual ele é frequentemente associado e ao seu comportamento dentro dele. Essa é uma circunstância que mesmo o relato ficcional de Heywood – escrito em italiano e publicado fora da Inglaterra – precisou enfrentar também. Esse pano de fundo, como fica claro na acumulação de exemplos, é a Reforma Inglesa e a expressão da consciência pessoal contra ela.

No documento Sir Thomas More : estudo e tradução (páginas 85-91)