A linguagem, de acordo com Martinet (1960), está dividida em duas articulações: a primeira articulação corresponde à morfologia e a segunda articulação à fonologia. São unidades de primeira articulação, ou unidades morfológicas, por exemplo, cada elemento de uma forma verbal flexionada que tenha valor significativo: a forma ‘falávamos’ pode ser morfologicamente escandida como fal+á+va+mos. Pode-se observar ainda que cada elemento – o que será melhor explicitado adiante – poderá ser dividido em unidades menores, sem significado, as quais se configuram como fonemas, as unidades de segunda articulação: /f/ /a/ /l/ /a/ /v/ /a/ /m/ /o/ /s/. O autor argumenta que a dupla articulação é fator responsável pela economia linguística, e sem ela seria preciso recorrer a morfemas e fonemas diferentes para representar cada nova experiência, pois é ela que permite uma economia de esforços na produção e compreensão da linguagem verbal. O morfema é, então, a unidade
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mínima indivisível da primeira articulação da linguagem, e a morfologia pode ser definida como a área da gramática que estuda as palavras a partir de sua estrutura e formação.
Os morfemas podem ser de dois tipos: lexicais ou gramaticais. Quando lexicais, segundo Camara Jr ([1970]2008), “são o cerne do vocábulo”, isto é, carregam a essência da palavra, seu significado. Quando gramaticais, se unem ao morfema lexical para mudar-lhe a significação ou a classe da palavra. Em ‘caseiro’, por exemplo, temos em cas– o morfema lexical e em –eir(o) o morfema gramatical. Os morfemas gramaticais podem, ainda, ser subdivididos em quatro tipos, a saber: classificatórios, flexionais, derivacionais e relacionais. A este trabalho interessam os morfemas flexionais, mais especificamente os flexionais aditivos, que podem ser definidos como aqueles que alteram os morfemas lexicais, acrescentando-lhes noções de gênero e número, no caso dos nomes, e modo-tempo e número-pessoa, no caso dos verbos.
O diagrama arbóreo proposto por Luft et al. (1991, p. 72), apresentado na Figura 1, ilustra a estrutura morfológica do português.
Figura 1 - Diagrama Arbóreo dos Morfemas da Língua Portuguesa Fonte: Luft et al. (1991, p. 72)
Os morfemas nuclear e periféricos apresentados na Figura 1 correspondem, respectivamente, àqueles morfemas lexicais e gramaticais já citados. Com base no diagrama arbóreo é importante discriminar os seguintes elementos: raiz, afixos, desinências e vogal temática.
A raiz é a parte irredutível das palavras que carrega a significação lexical. Ela é o elemento comum às palavras de uma mesma classe gramatical.
Os afixos se anexam à raiz com o propósito de mudar-lhe o sentido, acrescentar-lhe uma ideia secundária ou para mudar a classe gramatical da palavra. Se colocados antes do radical são denominados prefixos, se colocados depois, são denominados sufixos.
As desinências são os morfemas finais de palavras variáveis, sufixos, portanto. Elas indicam as flexões de gênero e número nos nomes e de modo-tempo e número-pessoa nos verbos.
As vogais temáticas estão anexadas à raiz para constituir uma base. Elas estão presentes nos nomes e nos verbos. Nesses últimos indicam a conjugação à qual pertencem, se primeira, segunda ou terceira.
Dentro da morfologia, uma classe de palavras se destaca das demais: é ela, segundo Camara Jr. ([1970]2008), a classe dos verbos. Suas flexões, predominantemente regulares, nos indicam noções gramaticais importantes. De acordo com o autor, os verbos são uma classe de palavras rica em possibilidades flexionais e estão distribuídos em três classes mórficas ou conjugações: a primeira apresenta a vogal temática –a, a segunda a vogal temática –e, e a terceira a vogal temática –i. A estrutura do vocábulo verbal descrita por Camara Jr. é composta pelo radical, vogal temática e sufixos flexionais, como mostra a Figura 2.
Figura 2 - Estrutura do Vocábulo Verbal Fonte: Camara Jr. ([1970] 2008, p. 104)
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para a estrutura do vocábulo verbal, T é o tema do verbo, constituído do radical e da vogal temática e SF é o sufixo flexional, constituído do sufixo modo-temporal e número-pessoal. Essa estrutura está presente em todos os verbos portugueses, sendo necessário considerar a possibilidade de alomorfia de cada um dos elementos ou ainda a possibilidade de um deles ou mais serem zero (ø), ou seja, fazerem-se significativos pela sua ausência, em oposição à outra forma em que estão presentes. Por exemplo, o morfema –s de casas, que representa o plural, em oposição ao morfema – ø de casa ø, que representa o singular.
A seguir, serão apresentados exemplos da estrutura do vocábulo verbal em verbos flexionados na terceira pessoa do pretérito perfeito do modo indicativo.
Figura 3 - Estrutura do Vocábulo Verbal Flexionado na Terceira Pessoa do Pretérito
Perfeito do Indicativo
Fonte: Camara Jr. ([1970] 2008, p. 105)
Nos exemplos apresentados na Figura 3, os quais ilustram as palavras analisadas neste estudo, pode-se observar que nos verbos flexionados na terceira pessoa do pretérito perfeito do indicativo o sufixo modo temporal é ø (CAMARA JR, [1970]2008, p. 109). Pode-se considerá-lo ø por estar em oposição a outras formas flexionadas em que tem representação, como nas formas flexionadas na terceira pessoa do plural dos verbos no mesmo tempo e modo, em que o morfema modo- temporal é –ra – , como em ‘comeram’. Em relação à forma ‘cantou’, Camara Jr. assume que a vogal temática –a apresenta uma forma alomórfica –o, como ilustrado no exemplo ‘cantou’.
Camara Jr. ([1970]2008) sintetiza as possibilidades para cada um dos morfemas verbais. Para os verbos flexionados na terceira pessoa do pretérito perfeito do indicativo, segundo ele, espera-se: em verbos de
primeira conjugação, um /a/ tônico como vogal temática, sendo que há a possibilidade de ocorrência de um alomorfe /o/. Em verbos de segunda conjugação, espera-se a marca /e/ tônico e, para verbos de terceira conjugação, a marca /i/ tônico. Em se tratando do sufixo modo-temporal, já se mencionou que ele é sempre ø nessas formas verbais. E, por fim, o sufixo número-pessoal, aquele que, de fato, interessa a este trabalho, é representado por um –u assilábico em todos os verbos regulares a que temos nos referido. É importante ressaltar que todos os verbos conjugados na terceira pessoa do singular, em todos os tempos e modos, apresentam a marca ø para sufixo número-pessoal, exceto aqueles conjugados na terceira pessoa do pretérito perfeito do indicativo.
Na sequência, busca-se apresentar breves considerações sobre consciência morfológica, estabelecendo-se uma relação com as questões de escrita.