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CAPÍTULO IV – A NATUREZA DA ALMA

4.4 MORTALIDADE DA ALMA

A análise da morte é um meio utilizado por Epicuro para inferir quais são as faculdades e características principais da alma. Assim, um dos critérios de conhecimento da natureza anímica está relacionando com o processo que envolve o fim da vida, principalmente as mudanças que podem ser verificadas na transição do animado. Já vimos que a alma e corpo são congênitos, todavia a separação entre eles determina o perecimento de ambos, com isso uma série de capacidades desaparecem conjuntamente. O calor da respiração, a atividade da mente, a habilidade de gerar movimento, a sensibilidade, a fala entre outras características

112 estão associadas à vida, consequentemente a presença da participação da alma no organismo. Tudo isso fica mais evidente quando comparamos o organismo vivo e o cadáver, Epicuro sustentou que a diferença entre eles é que a alma está presente no primeiro e ausente no segundo. Os átomos da alma por serem mais sutis e leves são os primeiros a abandonarem o athroísma, desassociam-se e espalham-se restando apenas o corpo-carne. Esse corpo, preserva no momento seguinte à morte, todos os traços físicos anteriores, todavia a observação não mostra evidências de atividade motora, respiração, fala e paulatinamente o calor do corpo se perde e o cadáver se torna frio e rígido. Epicuro destaca que a observação desses fenômenos produz evidências naturais que possibilitam reconhecer as faculdades anímicas: “Tudo isso é evidenciado pelas faculdades da alma e pelos sentimentos, pela mobilidade da mente e pelos pensamentos e por tudo aquilo cuja perda causa morte” (Vidas, X, 63)88.

E ainda:

Consequentemente, a alma enquanto permanece no organismo nunca perde a faculdade de sentir, mesmo com a perda de alguma parte do organismo. E se a alma também devesse perder alguma parte na sua dissolução total ou parcial daquilo que a contém, enquanto permanece e continua a sobreviver não perderá jamais a faculdade da sensação. O organismo remanescente, ao contrário, embora continuando a permanecer total ou parcialmente, já não tem sensações, quando abandona aquele número de átomos, embora pequeno, necessário a constituição da natureza da alma. Além disso, quando todo o organismo se dissolve, a alma se dissolve e não tem mais as mesmas faculdades, e já não é móvel nem possui a faculdade de sentir (Vidas, X, 65) 89.

No trecho acima é possível identificar aspectos importantes da relação corpo- alma, ainda que uma parte do corpo seja amputada o restante sobrevive, o membro perdido ao sofrer separação, perde gradativamente suas características, não sente, nem se move, esfria e entra em decomposição. Por analogia o mesmo acontece com o homem quando morre, através de uma via negativa, a morte revela as 88 Tradução do grego: “ ὲ πᾶ α υ υ αὶ ὰ π αὶ α α αὶ α α αὶ έ” 89 Tradução do grego: “ ὸ ὴ αὶ υπ υ α υ ὴ π υ ὸ υ π α υ α ῖ· ' αὶ α υ απ α υ ' υ αὶ υ , π α , ὴ α έ ὸ ὲ πὸ α α αὶ αὶ α ὰ ὴ α υ π α υ, π ὸ υ ῖ π ὴ υ φ έ αὶ ὴ αὶ α υ υ υ α υ ὴ α π α αὶ ὰ α ὰ υ ὲ ῖ α , ' α α έ”

113 principais faculdades anímicas, as quais devemos acrescentar o pensamento, memória e fala, entre outros. Lucrécio também criticou a crença de que a alma poderia sobreviver ao processo de separação do corpo, já que existia a crença que a alma poderia passar a habitar um outro corpo, ainda que fosse de uma animal. Lucrécio acreditou ser inaceitável tal hipótese (Da Natureza, III, 740-765), segundo ele cada espécie possuía traços constitutivos muito específicos, se tal raciocínio fosse verdadeiro, certos fatores psicológicos seriam transmitidos pela alma que preservando sua natureza original apenas habitaria um novo corpo e manifestaria seus caracteres fundamentais. Todavia a observação da natureza apontou para outra compreensão: o corpo e a alma nascem, crescem e morrem, é impossível que um consiga persistir sem o outro.

Epicuro e Lucrécio conceberam a alma como um composto de átomos, sujeitos aos princípios de agregação e desagregação, com isso negaram completamente qualquer concepção de imortalidade, por outro lado uma questão diferente surgiu: poderiam os átomos que compõem a alma se encontrarem novamente e renascer aquilo que foi destruído no passado? Em um momento de reflexão Lucrécio afirmou:

Também, se o tempo depois de morrermos juntar toda nossa matéria e de novo a dispuser onde agora está situada e outra vez nos for dada a luz da vida, nada nos importará o que se tiver feito, visto que foi interrompido uma vez o curso de nossa memória (Da Natureza, III, 845-850).

A resposta indicou que aquela alma que desapareceu tinha em sua constituição lembranças, impressões, emoções e experiências típicas de sua vida em conexão com o organismo. Depois de eras, se todos os componentes físicos voltarem a ter a mesma disposição darão luz a uma outra alma, pois o curso da memória e modo de existir do ente não se repetirão. É possível concluir que a alma possui uma estrutura plástica que acumula vivências, sua mortalidade significa o fim de um modo único de viver, que jamais voltará a ser recuperado.

O pensamento epicurista defende que todos os entes estão sujeitos ao devir, nascimento e morte são processos entrelaçados, não existe no homem qualquer característica que o torne especial ou superior ontologicamente aos outros animais. Pelo contrário, a physiologia revela para o investigador que só é possível sentir e

114 pensar graças ao equilíbrio entre alma e corpo, essa vida é única e nada somos fora de seus limites. É possível traçar uma analogia entre os seres vivos e os outros agregados que formam a diversidade no mundo, todos estão sob a sombra da “mὁὄtἷ”, ἵὁmὂὄἷἷὀἶiἶa ἵὁmὁ iὀἷxὁὄὠvἷl tὄajἷtóὄia ἷm ἶiὄἷὦãὁ aὁ fim ὂἷla ἶiὅὅὁluὦãὁ de suas partículas fundamentais: “a ὂὁὄta ἶa mὁὄtἷ ὀãὁ ἷὅtὠ ἶἷ mὁἶὁ algum ἵἷὄὄaἶa para o céu ou para o sol ou para a terra ou para as altas ondas do mar: mas permanece aberta, imensa e espera com sua vasta faceέ” (Da Natureza, V, 370- 375).

O movimento eterno dos átomos pelo espaço gera tudo aquilo que existe, as coisas e seres assumem limites e configurações temporárias, logo a dinâmica cósmica transfigura os corpos em outros corpos. Essa dança dos átomos revela que o movimento é o elemento central para compreensão da physis, a natureza vibra incessante (Vidas, X, 50). Nesse sentido a própria alma pode ser pensada como uma estrutura dinâmica, com faculdades que refletem seu dinamismo como pensamento, sensação, memória e linguagem. O homem epicurista produziu em sua alma mortal um reflexo das coisas que são e não se alteram: o todo, o vazio e os átomos. Com esse saber foi possível montar uma imagem de si e do mundo natural, como sistemas organizados e complexos com qualidades e propriedades diversas. O homem como sistema ordenado cedo ou tarde entrará em colapso e morrerá, para Epicuro aguardamos a chegada da morte do mesmo modo que uma cidade sem muralhas espera o momento de ser invadida pelo exército estrangeiro, diante do fim estamos sem defesas90. A filosofia epicúrea se propôs a reconhecer esse limite

natural sem ser perturbada, a isso se deve acrescentar a atitude de buscar o prazer em conformidade com a natureza. É possível concluir que conhecer a physis da alma é um passo fundamental que todo filósofo necessariamente deve dar.

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