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A morte como coroação vida

4.2 A morte do crédito com o Príncipe.

Para Lopes Sierra, embora Afonso Furtado já estivesse padecendo há algum tempo com febres e mal-estar causados pela erisipela da qual sofria, a verdadeira causa da sua morte foi a imensa angústia que este sentia em virtude do fracasso das minas, “que não há duvida se engendrou o Cancro que cortou o fio de sua galharda vida373”.

Segundo o autor, “todos sabem que, em empenhos dos Príncipes, corre por conta de seus vassalos vê-los desempenhados, ou seja, em casos Militares, Ou políticos, o que muitos têm feito sacrificando por isso suas vidas, verdade de consta nos anais do Tempo”374

. Como uma de suas principais missões, o regente de Portugal havia encarregado d. Afonso da diligência para encontrar minas, portanto, o descobrimento destas era uma obrigação do governador como vassalo do monarca. De acordo com os

370

ALVARADO, op. cit., 1-2.

371 Ibidem, 2-3. 372 Ibidem, p. 3. 373

LOPES SIERRA, op. cit., p. 114.

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preceitos da sociedade corporativa, o cumprimento do dever estava acima até da própria vida, por ter caráter natural, que remetia a uma tradição imemorial. Dessa forma, a tristeza foi a verdadeira responsável pela morte do governado, causada pela “infeliz linha”, que havia abalado sua reputação junto ao monarca, assim como informa Lopes Sierra ao seu público:

Considere agora o sábio e o discreto Qual ficaria o coração de Nosso Herói com a fatalidade de um sucesso, em que estava jurada não uma, mas muitas esperanças; a do crédito para seu Príncipe, para como reino e os vizinhos, a quem a voz de quatro anos de repetidas novas haviam chegado, por seu escoadouro e fique com o sentimento375.

Apesar de Lopes Sierra ter atribuído o fracasso no negócio das minas aos “maus ministros” que assessoraram Afonso Furtado na empreitada, era ele quem oficialmente responderia pelo seu fracasso. O governador, enquanto cabeça política da América portuguesa era oficialmente a pessoa responsável pela empresa, não somente perante a coroa portuguesa, mas também perante os demais reinos, pois havia quatro anos que tal função era anunciada na Europa. Segundo Lopes Sierra, embora esta não houvesse sido estimulada por d. Afonso, ela passou pelo seu “escoadouro”, e ele não teria outra opção senão a de tomar a responsabilidade para si, perdendo “o crédito para com o Príncipe, o reino e os reinos vizinhos”. Assim, a angústia que Afonso Furtado sentiu em virtude do fracasso em uma matéria tão importante para o bem-comum da coroa agravou sua doença, levando-o à morte, pois “não há morte mais pesada que a do crédito”, e “as feridas do corpo têm remédio, mas para as da Alma não há Galeno”376

.

No tratado de bem-morrer de António Alvarado, este afirma que uma enfermidade é um aviso de Deus para que a pessoa inicie os preceitos relacionados à boa morte, e, segundo ele, “la enfermedad del cuerpo nafce de la del alma377”. De

acordo com esta ideia, a doença de Afonso Furtado, que já era um anúncio divino para que ele procurasse cumprir as doutrinas da boa morte, se agravou com as “feridas da alma”, refletidas em seu corpo.

De acordo com o que escreveu o autor, o desgosto de Afonso Furtado foi ainda maior devido à grande difusão que as notícias acerca dos ensaios das minas tiveram na Europa, antes de se constatar que elas não existiam. Acerca disto, o autor diz:

375 Ibidem, p. 115. 376

Ibidem, p. 213.

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O Empenho de Sua Alteza, neste negócio das minas, se não era militar era político, Não só para o seu reino mas para todos da Europa, Pois lhes foi Público haver mandado armas e oficiais pelo tempo de quatro anos e por esta razão muito pundonoroso. O mesmo era para Nosso Herói que se não entro nisso como Motor, entrou como Canal por onde se terminavam umas e outras funções, as Quais podiam delirar antes de publicados os ensaios, Mas depois de haver saído à luz com uma Tão grande demonstração, como haver mandado seu filho com eles, Matéria que confirmou haver Minas, acharem-se depois incertas, Quem há de soldar Tal empenho, senão quebrando-se a corda pelo mais delgado?378.

Pela passagem, nota-se que além da desilusão de “Sua Alteza”, o fracasso no “negócio das minas” também comprometeu a imagem externa da coroa portuguesa e do governo de Afonso Furtado, criando a impressão de falta de coesão e harmonia no reino, devido à imprecisão das notícias acerca das minas, para as quais Afonso Furtado serviu como “canal”. Assim, o fato de d. Afonso ter enviado seu filho para avisar “Sua Alteza” da existência de minas comprovou sua boa fé em relação à empresa, pois de acordo com Lopes Sierra, ele não arriscaria imprudentemente sua reputação e a de seu filho se soubesse que os ensaios eram inconclusivos. Ao mesmo tempo, o fato pôs em risco o crédito de Portugal perante os reinos vizinhos.

Embora o governador não tivesse sido o “motor” do desígnio, mas apenas o meio de comunicação entre os “maus ministros” e o reino, enquanto cabeça política ele era o responsável pelo desfecho da empresa das minas. Por outro lado, segundo Lopes Sierra, ao receber e enviar os ensaios e prosseguir com o descobrimento das minas, Afonso Furtado estava cumprindo uma obrigação vassálica e mítica que ele tinha em relação ao monarca, realizando o “empenho político” de “Sua Alteza”. O monarca havia encarregado o governador de dois empenhos igualmente importantes, a “conquista do gentio bárbaro” e a descoberta das minas. Porém, “não basta para o mérito a igualdade quando há oposição de estrelas379”. Isto é, o governador obteve sucesso na primeira e “feliz linha”, porém, na “infeliz linha” houve “oposição de estrelas”, ou seja, houve a divergência dos “maus ministros” e as más resoluções do conselho real, ao qual Afonso Furtado não poderia contrariar, pois “seria coisa arriscada opor-se a um voto, Não sendo consultado, a muitos consultado”380

. Apesar da verdadeira causa do fracasso das minas ter sido a falta de prudência de alguns ministros e não do Governador, este morreu pelo

378 LOPES SIERRA, op. cit., p. 213. 379

Ibidem, p. 44.

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“amor que tinha ao crédito de seu príncipe e seu Real conselho por que todos estavam empenhados381”.

Analisando a parte do discurso de Lopes Sierra acerca das verdadeiras razões da morte de Afonso Furtado por um viés político, evidencia-se o caráter corporativo do Império português. Quando o autor declara que o Governador morreu em virtude da “perda do crédito com o príncipe” devido à má resolução na questão das minas, ele expõe a natureza compósita da sociedade, evidenciando que decisões políticas que ocorrem no ultramar podem tomar proporções grandes o suficiente para influir na imagem de Portugal perante outros reinos europeus.

Lopes Sierra concluiu suas considerações acerca da causa da morte do Governador da seguinte maneira:

Considere agora o político mais oposto a nosso Herói, se por ele houvesse passado Quatro anos de assistência, Sendo trama da urdidura desta tela, Negócio em que o crédito de seu príncipe estava interessado, Pois havia mandado Armas e gente para Defender o Pleito e minas que não havia, Se o sentira ou não no grau que sentiu Nosso Herói em grau Tão superior que quebrou a trama, a tela e o tear de sua vida382.

Mesmo os adversários de Afonso Furtado deveriam concordar que o peso de se perder o crédito com o monarca em virtude do fracasso de um empenho tão importante seria suficiente para causar a morte de um governante, pois como governador- geral, d. Afonso estava “à altura da cabeça do Príncipe”. Nesse sentido, falhar em um empenho de interesse comum do reino era falhar com o próprio monarca, ou não estar a sua altura.

Tal ideia é evidenciada por Lopes Sierra:

Não haveis visto que Quanto mais alto o edifício que se fabrica, maiores são os aprestos com que se conduzem os Materiais, e que, se se desconcerta algum, é Notável sua ruína, Não tanto por seu peso Quanto pela violência da altura donde vem; pois julgue por estas vistas quem disto fizer ascensão e verá o peso que tais conseqüências Acaudilharam no peito do Nosso Herói uns e outros sentimentos Quando seu grande talento assim os sabia reconhecer como sentir 383.

Ao prosseguir com o “negócio das minas”, Afonso Furtado estava cumprindo o empenho de “Sua Alteza”, construindo um “edifício” cuja causa era o monarca, e,

381 Ibidem, p. 214. 382

Ibidem, p.213-214.

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portanto, o fracasso na empresa gerou no Governador “uns e outros sentimentos”, que em virtude de sua honra e virtude, ele soube reconhecer e sentir, o que agravou a doença que o acometia.

Seguindo essa mesma lógica, Lopes Sierra retoma seu discurso acerca do que considerava as verdadeiras razões que originaram a angústia de Afonso Furtado, e como conseqüência disso, a causa da sua morte:

Tocava o edifício que fabricava nosso Herói não em Menos altura que aquela em que Sua Alteza era a Matéria, Não só pública no Reino, mas em toda a Europa. Conhecia-se em toda a parte ser ele o instrumento por onde se havia dado a conhecer, por cuja razão haviam criado raízes as esperanças dos mais incrédulos. Verificando esta verdade, Quatro anos de contínuos aprestos, o indeciso das obras e efeitos a que tanta Máquina se havia dirigido! Mostrava- se nessa perplexidade arruinar-se a grandeza de tão grande edifício e que, arruinado, não havia de fazer tanto dano o seu peso, Quanto a violência de tombar de tão grande altura, Qual era da cabeça do Príncipe, que havendo dado crédito aos avisos, fez-se dono de sua certeza. Esta consideração trazia nosso Herói suspenso, mas não de sorte que o desse a entender, a presumir- se. Sirva esse aforismo de razões e de conceitos Para que o discreto e o político vejam Quão agigantados se formavam na idéia do claro juízo de nosso Herói, os fantasmas de tal consideração, Porque só quem os conhecer saberá avaliar o Mérito e gravidade de tão intolerável peso384.

Neste trecho, retomam-se os tópicos acerca do que se consideravam as verdadeiras causas da morte de Afonso Furtado, evidenciando o conflito emocional do Governador ocasionado pelas considerações feitas acerca do fracasso das minas e da postura que era coerente com seu status social. Como dito anteriormente, d. Afonso levava a cabo a descoberta das minas por ordens do monarca, que era a “matéria” da empresa, sendo o governador apenas o “instrumento que deu a conhecer” a possível existência de minas. No entanto, o que mais contribuiu para agravar a doença de Afonso Furtado foi ele ter “caído da altura da cabeça do Príncipe”, ou seja, foi ele ter que suportar o fracasso em um assunto de extrema importância para o monarca e para o corpo político do reino. Para Lopes Sierra, essa situação se agrava ainda mais, quando se conhece o foro íntimo do Governador, que se encontrava perturbado devido à sua consciência acerca do ocorrido. Em virtude de ter falhado, ainda que indiretamente, no empenho “da cabeça do Príncipe”, sua imagem como governante encontrava-se abalada, porém, em seu íntimo, o Governador sabia da contribuição do monarca para aquele problema ao qual ele tinha que responder, pois “Sua Alteza” havia “dado crédito aos avisos” dos “maus ministros”, “fazendo-se dono de sua certeza”. No entanto, em razão

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de sua honra, Afonso Furtado não poderia externar suas convicções; não poderia afetar a honra do monarca. Por isso, o governador preferiu manter-se discreto, sem “dar a presumir” suas considerações acerca da responsabilidade do monarca na referida questão.

Absorto em seus pensamentos, o estado de saúde de Afonso Furtado piorou, uma vez que “o exame de tristes conferências sói fazer o que maligna febre em humanas veias385”. Lopes Sierra concluiu que “por fim, a consideração de umas e outras coisas agravaram de Nosso Herói os achaques, e eles, sua tristeza, fazendo-a maior Não ter com quem dividir sua pena386”. É interessante ressaltar que, como cabeça política, o governador não tinha “com quem dividir sua pena”, isto é, enquanto autoridade maior da sociedade da América portuguesa, Afonso Furtado deveria assumir sozinho a plena responsabilidade do fracasso, não havendo a possibilidade da transferência de culpa para outras instâncias, ainda que, segundo Lopes Sierra, ele não tivesse sido o “motor” da empresa.

Sobre este tema, o historiador Rocha Pitta, cujas intenções eram relatar cronologicamente a história da América portuguesa, e não traçar um discurso propriamente honorífico, acaba por compartilhar, em sua obra, algumas das idéias de Lopes Sierra acerca das causas da morte de Afonso Furtado. Para ele,

o pouco efeito das diligências que para o descobrimento das minas de prata fez Afonso Furtado, lhe imprimiu na imaginação o erro de não haver pesado aquela matéria na balança da prudência, e o receio do desaire que lhe granjeava a sua demasiada credulidade, em negócio de que fizera tanto apreço e segurara com tanta certeza. A esta nociva apreensão sobreveio uma profunda melancolia, que passando a perigosa e dilatada enfermidade, lhe acabou a vida387.

Confrontando o Panegírico de Lopes Sierra, com o livro de Rocha Pitta, nota-se que ambos acreditavam que a morte de Afonso Furtado estava diretamente ligada à melancolia advinda da vergonha pública que ele sentiu em virtude do fracasso na empresa das minas. No entanto, o autor de “História da América Portuguesa” admite sem maiores constrangimentos que o governador havia agido imprudentemente ao conferir demasiado crédito ao suposto “descobridor das minas”, e que, por reconhecer isto, morreu de uma enfermidade originária da inquietação que sentia.

385 Ibidem, p.108. 386 Ibidem, p. 117. 387

PITTA, Rocha. História da América Portuguesa. Rio de Janeiro/ São Paulo/ Porto Alegre: W. M. Jackson Inc., 1950, p. 298- 299.

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