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No limiar dessa existência conflitante entremeada por construções e desconstruções, o ser-humano se plagia. “Aceita a programação ditada pela sua cultura, que lhe diz para onde ele deva olhar; o resultado é que ele passa a existir na imaginada infalibilidade do mundo que o cerca”(BECKER, 1995, p. 36). O “ser”é impulsionado pelo social a se aproximar do humano. Nesta aproximação o “ser- humano” se desequilibra e torna a equilibrar-se, mas quase sempre unicamente na esfera humana porque é o que o caracteriza como existência, como “ser” vivente. E a vida é tão cobradora de atitudes humanas que em determinado ponto passamos do concreto ao abstrato. A abstração contorna a existência humana concreta, é latente a ela. Conveniente é ao ser humano manter-se concreto, mesmo errante, limitado pelo sempre esperado. Mantém-se aquém da abstração que é a fonte de compreensão entre o ser humano e o ser humano atento. Esta atenção diz respeito ao essencial, ao comprazer-se de ser tão somente o que de melhor podemos “ser” a nós mesmos, aos outros, pelos outros e para os outros.

Esta abstração enquadra-se num processo de fertilização. Quando nos permitimos à abstração, é quando nos sentimos capazes de sermos férteis de amor e tão somente contagiar de amor. A expressão do amor se faz em meio à complexidade, unicidade, singularidade e capacidade do ser em voltar-se para si e desdobrar-se no outro. É uma viagem intencional em nossa descoberta, vivemos morrendo, num processo de morte- renascimento. Para tanto, necessitamos compreender este processo para vivermos intensamente a morte.

Não é a morte a maior das abstrações conferidas ao ser-humano? Por este motivo ter desenvolvido um processo de cuidado que fizesse da morte um ponto de tangência, de imanência, de transcendência pareceu-me essencial. Silva (1997a, p. 127) ao dizer que “a morte pode ser visualizada enquanto um processo vital na vida em si e no contexto de uma dada situação, procurando tornar-se através da interiorização e permanência”, descortina a possibilidade do renascimento, da mudança e da expansão na expressividade da interiorização. Boff (2000) revela que estamos em tempo de

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transcendência, é a dimensão da liberdade em nos proporcionarmos um olhar atento ao que nos rodeia e ir além do que está posto. Neste pensar, a morte vivida inclui-se em experienciar a transcendência do que é esperado e vai acontecer, contudo absorver ensinamentos que encaminhem o ser humano para uma boa morte.

Becker (1995, p.94) referencia Kierkegaard no tocante ao ser humano saudável, “que a pessoa saudável, o verdadeiro indivíduo, a alma auto-realizada, o homem de verdade, é aquele que transcendeu a si próprio”. É quando o ser humano encontra a capacidade de compreensão da sua condição, da sua situação, sem mascarar seu caráter. Evidenciado nos diálogos com as clientes e suas famílias, quando compreendem a sua condição final neste espaço da existência.

Ela sabia que era o fim! Voltei para Brasília acabada (FILHA de SOL).

Vais escrever para mim o meu testemunho (SOL para Mª Lígia).

A única coisa que eu não queria era sentir mal-estar. Acho que a qualidade de vida é mais importante. Tem que se ter dignidade até o fim, sempre até o fim (LUA).

Eu nunca senti que a mãe me abandonasse! Chegou a hora dela, é uma questão de tempo, mas não tem como fugir disso (FILHA de LUA).

O absorvido da experiência com as clientes e suas famílias no processo da morte e do morrer evidenciou esta transparência, quando aceitaram a condição final e suas limitações em decorrência da situação vivida.No entanto, sutilmente vem se instaurando durante todo o processo saúde-doença uma descaracterização no “ser” dessas pessoas. Comportamentos são incorporados pelas clientes em conseqüência do processo doentio como resposta à falência gradual de suas habilidades, suas motivações, suas reais capacidades de atuarem na esfera social.

Estas clientes ao apresentarem o perfil pessoal destoante do construído durante todo o processo existencial possibilitaram à família visualizar a proximidade da morte. É o que identifiquei como sendo o momento em que a família apreende a face da

morte. Que face este renascimento tem então? Estar diante dessas transformações e

percebê-las faz com que a família encaminhe de maneira mais tranqüila os momentos que seguem a proximidade da morte. Ao se conscientizar desta transformação, a

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família passa a esperar e organizar a passagem de seu ente. Este reconhecimento produz um desprendimento ameno e compreensível do ciclo nascimento-morte- renascimento.

O renascimento tem a face da experiência interior descrito por Silva (1997a, p.150) como sendo “vivenciada pelos seres envolvidos no cuidado, e em seu contexto pode caracterizar-se pela diversidade de expressão, na medida em que destaca a ênfase da informação para os significados”. O vigor da análise diz respeito à atenção que damos ao que nos é apresentado e a partir da nossa compreensão intuitiva estabelecemos significados.

Olho para ela e não vejo mais aquela “SOL” que eu conhecia. É outra pessoa (NORA de SOL).

Agora eu vejo que aquela pessoa que está ali, não é mais aquele ser humano que eu conhecia como mãe. Ela é outra pessoa (FILHA de LUA).

Um novo modelo de relação com o mundo se inicia com o avanço da vida à morte. Apesar da intimidade e espontaneidade do convívio familiar a despersonalização das clientes concorre para um auxílio ao desprendimento, ao desapego das relações. Kübler-Ross (1998) identifica este desprendimento como necessário para um morrer mais sereno e compreensível. Refere-se ao desprendimento paulatino do/da cliente do seu meio-ambiente, de sua família e aos poucos da realidade repleta de sentido. Confere às pessoas que têm esta clareza, o aceite da morte.

Muito significativo este momento em que o ser tão humano inicie a descaracterização “humana” dada pelo social. Recai no concreto individual, do abstrato cultural da morte. É quando a ruptura das participações se instala na espera da caminhada solitária, corajosa e resignada.

Eu abençôo vocês, agradeço a Deus, estou morrendo, estou sentindo (SOL minutos próximos da passagem).

Eu vim preparada para ajudá-la a morrer (FILHA de SOL).

Acredito não ser tão solitária, mas ainda assim solitária por depender unicamente do ser que vive o processo da morte. O nível de introspecção nesta etapa é intenso, o

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silêncio é preciso, o agradecimento contínuo, a verbalização do amor ao próximo e o olhar contemplativo, são sinais vitais da morte. Neste caminhar, abre-se o espaço para as despedidas. Espaço este em que os que ali se encontram participam pelo amor e pela amizade e pela relação de co-responsabilidade que se estabelece no decorrer da necessidade de apoio. E, vivenciam novas experiências, criam rituais, aprendem, ensinam e crescem com tanta vida que flui da morte.

O que ela me deixou mesmo de essência foi a força de vida! A experiência de vida de uma pessoa que lutou até o final pela vida e conseguiu reunir a família dentro de uma festa (NORA de SOL).

A festa foi para ela morrer (FILHA de SOL).

Não houve o horror da morte em momento algum. Se juntam o começo e o fim! (FILHA de LUA).

Esta experiência é sempre única, pois envolve seres com histórias e reações diferentes nas violências do cotidiano rotinizado ou não. “A compatibilidade estética e amorosa entre os seres que cuidam e seres cuidados”(SILVA, 1997a, p. 197), garante a lucidez durante o processo da morte e do morrer. Esta lucidez emerge do movimento, da dinâmica de um cuidado que privilegia o respeito, as particularidades, as vontades do ser a caminho de suas verdades.

Despedidas! Rituais construídos! Festa para a morte ou para a vida? Serenidade e paz para uma “boa morte”. Há uma força crescente que toma todos os que compartilham do momento sagrado de despedida desta existência. Uma força que abriga, que acolhe, que até encanta os expectadores mais duros de sentimento. As atitudes são tão verdadeiras que emocionam e enobrecem o adeus breve. A caminhada é valida, porém melhor quando a fizemos “descalços”. Caminhar descalço na vida é abrir-se, é se expor com o coração é não ter medo de mostrar, nem culpa de viver e assumir o “ser” que esculpimos em nós.

A despedida reafirma a consciência e a lucidez de que o morrer é um transpor a comunicação dinâmica da vida em direção a mais vida, é o movimento de paz ao encontro da verdade.

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