Di o g o Ma i n a r d i
C
onheci John Updike em 1992 durante uma festa em sua homenagem. Aterrissara no Brasil no dia anterior, abalado com o fuso horário, acalorado. Como se tratava do mais importante es critor dos Estados Unidos, diversas cele bridades nacionais acorreram. A sua vin- -da coincidia com o lançamento da série
Coelho (o nome do protagonista), as
divertidas sátiras sobre a classe média americana que confirmavam a sua invejá vel condição de autor de qualidade com grande sucesso comercial. Ninguém po dia imaginar que naquele momento ele já estivesse recolhendo material para um
romance ambientado entre nós, Brazil
(tradução de Marcos Santarrita: Compa-
distanciar-se inteiramente da realidade e que seus livros eram arraigados no dia-a- dia. referindo-se, em grande pane, a eventos que ele próprio vivenciara.
A m o r P r o i b i d o — Ao abrir Brazil. o
leitor deve recordar-se do diálogo acima. Porque, se a literatura de Updike se baseia na realidade, como ele mesmo disse, a ação de seu livro certamente corresponde a fatos genuínos que ele testemunhou durante a breve viagem pelo país. Algumas passagens do romance po dem até parecer um pouco inverossímeis, mas quem garante que não aconteceram? Afinal. Updike é Updike e, se ele diz que o Brasil é assim, não há por que duvidar.
nhia das Letras; 240 páginas;_9 600 cru- A trama, honestamente, não contém nada
I ~zeiros reais). -
j :3íA nossa conversa não durou 3 r.mais de cinco minutos, mas . - I " contém um elemento esclare- ' 1 vcedor .sobre o seu processo •- 3 - criativo. Como sempre acon- - lj itece quando me faliam argu-
- mentos, comecei, a falar mal -. . . » v i ~do Brasil. Coisas sèm sentido, ■■■ I -"fruto de um discutível gosto '/
" pelo 'insulto. • A certa altura, I ■ contei que morava em Vene- / - za. Manifestamos mútua ad-
.miração por Joseph Brodsky, o prêmio Nobel russo que acabara de escrever um -belíssimo livro sobre a cidade. Disse-lhe que a minha casa térrea era constante- '. - ' mente inundada pela água Iatrinária dos
canais; numa dessas' ocasiões, vi um /^caranguejo devorar um rato morto. Up- •
dike achou graça e sugeriu que eu apro-
ïgjCMjJFDrKEZ:
de muito absurdo. O amor proibido de ‘ Tristão e Isabel. Tristão é ne-
■ • gro, com o rosto bonito como “um sol eclipsado”. A loira Isabel penence à alta burgue sia carioca. Tristão assalta tu ristas americanos na Praia de Copacabana' ameaçando-os j_com uma gilete. - . - ■
. Como sempre ocorre nesses casos, a família. de Isabel opõe-se ao romance ' e tenta separá-los. O casal de amantes é obrigado a fugir para São Paulo. Algu mas semanas mais tarde, capangas con tratados pela família de Isabel conseguem resgatá-la. Tristão trabalha numa fábrica de Fusca por dois anos. Com o dinheiro acumulado no período, sai em busca de Isabel em Brasília, para onde" ela fora transferida. Os dois fogem através do Planalto Central. Tristão toma-se earim- - veitasse o episódio num livro. Com certo
■..pedantismo, respondi que a minha Iitera- -■ peiro, enquanto Isabel ganha a vida pros- l^tura ignorava os acontecimentos jneno^-itítuindp^se.'{A.seguir,.Tristão é escraviza-^
‘davida cotidiana' e qüé* èu^só "me v do por bándéirantès pãul istas. Os bandei- ‘ í/servia da realidade: para dor fundamento, /.rantes históricos, perdidos por séculos e-- .'. aos meus‘arroubos metafísicos. Não se i.. . séculosno meio do mato, ainda à procura "aò/ceito^o que queria dizer com isso," da mítica cidade de El Dorado. Isabel é
£.^mas\ovfato' é . que. Updike concordou/] forçada a casar-se com ô chefe dos ban-.’ '.afirmando'que essa’ era a verdadeira . deirantes e gera um filho retardado. A ■ ;~yocaçâo.da literatunC A.seguir, afirmou/-* fim ’de libertar o amado/- submete-se a ‘
;com sincero_pesar .que não conscgúia. Yuma pajelança que inverte a cor de sua
...
plausível, nada mais provável. O elo que Updike mantém com a realidade é fora de discussão. No Brasil, acontecem coisas semelhantes todos os dias. Pajelanças, bandeirantes.
“ O G u a r a n i- — Alguns leitores também poderão perceber fortes traços wagneria nos em Brazil. Não faltam indicações nesse sentido. Além da história de Tristão e Isolda. basta lembrar o anel mágico coin a inscrição DAR que desperta a reação libidinosa do casal de protagonis tas. Mas as referências épicas não se limitam aos libretos líricos de Wagner. A intenção de Updike é reunir num único épico todos os épicos do passado. Para facilitar a assimilação dessa difícil men sagem. ele inclusive confere nomes alusi vos aos seus personagens, como Virgílio, Aquiles, César. Afrodísia, Nestor. Ismael. O que se esconde atrás de tantos mitos? A resposta, surpreendente, é José de Alencar. Para mim, não restam dúvidas de que o autor de O Guarani é a verda deira inspiração de Updike. De Machado de Assis a Lima Barreto, os nossos me- ’ lhores escritores trataram de vilipendiar a sua memória, afirmando que esta não era uma nação épica, mas lamentavelmente prosaica, a ponto de parecer banal. Uma pobre nação em " que qualquer fantasia romântica é ridicularizada pelos fatos co-.'. tidianos. Com o seu Brazil, Updike pare ce querer reabilitar os romances indige- nistas de José' de Alencar e demonstrar' ' que os nossos maiores clássicos estavam " errados. De acordo cóm ele, á‘realidade' •'
brasileira não é uma confusa e aborrecida luta pela subsistência, mas sim o cenário~;': de uma magnífica epopéia. Updike e José de Alencar, Updike e Fenimore Cooper, eis o verdadeiro perfil nacional. Updike parte com Wagner e, ao término de suas perambulações, finalmente consegue al cançar o nosso Carlos Gomes. . . . - /
Os espíritos mais céticos irão procurar /: imperfeições no retrato que Updike faz ,/. do BraSil, mas não será fácil. Porque’, - como já vimos, cada detalhe é documen-' tado, cada gesto é derivado de uma atenta - observação da realidade. À medida q u e./'■
eu lia Brazil. vinham-me à mente inúme: /. ros episódios ocorridos na festa em quê’ ’ . fomos. apresentados' e que ele logo/soubê^
transformar em literatura/De fato, se_bem’ :’f me recordo, ele anotava tudo num cádeiv"rr ninho. Do chapéu de palha' sèmèlharite"á/:í um “disco voador tingido de jenipapò*V;; usado por uma jornalista às expressões "ï mais características danòssa ünguagèm,';/; como “suco", “vitamina”, -bodumV-^a-i/^ rinha”, “proprietiírio", *-“abraço"iè'.^eànja"; '
ÏS I I 'ü m f 0 '**’
Trecho
U 'Baixai aqui, coisa imunda', eie
d isse. Antes que o s joelhos trêmu los pudessem aceitar a ordem, sur giu atrás de José um homem alto e barbudo que enterrou uma ferra menta de cabo comprido no crânio do bandeirante. O branco salvador, de silhueta esguia, era-lhe um e s tranho. Ou não era? ‘Tristão’, ela gritou baixinho. ‘Como soube meu nome?*, perguntou ele. ‘Tristão, como pode você não me reconhe cer? Eu me tornei negra para que você pudesse ficar branco. Foi um
pajé que fez isso.
ff
O "homo brasiliensis”, segundo Updike: mirando em Richard Wagner e acertando em Carlos : Gomes $ . . . - N. de galinha", que despontam aqui e ali na edição original em inglês, dando-lhe um tom de autenticidade. Outro aspecto que o surpreendia é que nós brasileiros fôsse mos dotados de cabeça oval. Isabel é descrita como tendo uma “cabeça oval", da mesma maneira que a mãe de Tristão, outra “cabeça oval". Quanto à cabeça de Updike, pude notar uma ligeira confor mação helicoidal. Mais tarde, ainda na :-.’festa,"percebi q‘uè'.ele^tómãva^nõtaS^en-^
quanto conversava com uma empregada doméstica que servia salgadinhos. .Nada exclui que ela tenha proferido um discur- T so parecido com o de uma doméstica que’* aparece em Brazil. Surrada pelo patrão, * _cla o justifica dizendo que “se cie me r ..bate é porque se enfurece com a angústia"
de ser rico num país pobre". Quem disse que isso não é possível? Experimente. Bata em sua empregada. Pode ser que dentro dela se esconda uma doutoranda
em sociologia. .. ; •:
C a ju — Um importante elemento sobre
■ o Brasil que Updike tirou naquela cir- cunstância contou com a minha direta aColaboração.jComo.se sabe,1 o. seu: princi-.; SLpal arguméntò'è'o‘’se^.‘*que:èje trâta"séní ‘ J nenhuma inibição, de modo quase pomo- í-gnáfico.jNo caso de ..Tristão, a metáfora
•viJuc.Çfc descrever seus atributos
> masculinos não 'é muito lisonjeira para a ■ pátria, ou seja, “uma curva encolhida £cómo, ad.e,urna[castanha de çàju*VOfen-' /.dido, jurei que.de um momento.;para o
outro a pequena castanha de caju nacio nal podia transformar-se em banana, e depois num inhame”. Ele anotou minhas palavras e reproduziu-as fielmente em sua obra. inserindo inhames de quatro em quatro páginas, e não apenas o de Tristão. porque ele não é o único a usufruir a bela Isabel. Brasil, terra de
magia e sensualidade. Pode-se objetar
que a magia implica uma capacidade sobrenatural de resolver os problemas, como a pajelança que muda a cor da pele de Isabel, e todo mundo sabe que nunca conseguimos resolver nada. Mas quem se incomoda com isso?
A verdade é que Brazil é tão tolo, tão înverossi'mil. tão delirante que se toma um dos mais perfeitos retratos do país jamais feitos por um romancista estran-“ g geiro. Porque o Brasil é igualmente tolo, ... « inverossímil e delirante. Updike acenou "
no erro. Não entendeu absolutamente na da a nosso respeito, e isso só ajuda. Devia ' ser leitura obrigatória nas escolas. Para mostrar o que não somos, mas parecemos ser. Imagino que muita gente fique ofen dida com a imagem que ele dá do país. 'V porém não é o caso. Os lugares-comuns que definem as diversas nacionalidades costumam ser depreciativos. No nosso "V- caso, ocorre o contrário: os lugares-co- ... muns que nos atribuem são melhores que’f . a realidade. No final do romance, .num momento de desespero. Isabel lamenta-se *. . que . “as nossas vidas são .um ; ternyel
^.oçidei^eUNa^em^^
' fome, o desejo è o", medo . nos. Jevam*..^ “ adiante sem qualquer sentido" ,E .Tristãõ^S'
respon'dc, com convicção': “Acredito'ern^? ' espíritos e no destino...'.Fomos :unidòs'">«i
■ para r_dar ao mundo um exemplo'
amor”. Não seria nada mau, se noJ3rasü,S;:
'C não Brazil, realmente ^ouvesse èspaço_1p
1 áVEJK 9 DE FEVERELRO^l994