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VII. Políticas de Combate à Corrupção 1 Incentivos, Seleção e Desempenho

2. Motivadores Intrínsecos e Motivadores Extrínsecos

Ao falar sobre a Teoria da Agência, num dos capítulos iniciais deste trabalho, reconhecemos que uma visão restritiva do conceito de auto-interesse, de racionalidade ou de maximização do benefício pessoal, não é capaz de explicar de forma consistente a ação humana. Aqui, ao falarmos de incentivos, precisamos de fazer ressalva semelhante para reconhecer que os agentes não agem baseados somente em motivadores extrínsecos, mas também em motivadores intrínsecos. Ou seja, não agem apenas analisando racionalmente o

articulado de custos, benefícios, riscos e probabilidades, mas a forma como essas custos e benefícios se compatibilizam os seus valores e/ou preferências.

Bénabou & Tirole (2003) iniciam o seu artigo com uma belíssima ilustração do que dissemos acima com a ajuda de uma passagem das “Aventuras de Tom Sawyer”, em que o herói, obrigado a pintar uma cerca de jardim, elabora um requintado plano para convencer os seus amigos e vizinhos de que era muitíssimo divertido pintar cercas, pelo que o teriam de compensar para que ele os deixasse participar em tal tarefa. Recordam os autores:

“Tom said to himself that it was not such a hollow world, after all. He had discovered a great law of human action without knowing it, namely, that in order to make a man or a boy covet a thing, it is only necessary to make the thing difficult to attain. If he had been a great and wise philosopher, like the writer of this book, he would now have comprehended that Work consists of whatever a body is obliged to do, and that Play consists of whatever a body is not obliged to do” (Twain, 1876 apud Bénabou & Tirole, 2003: 489).

A forma como o agente entende a sua missão é fundamental para um bom desempenho, e alguns incentivos podem tanto chamar ao processo de seleção agentes menos intrinsecamente motivados, bem como alterar a forma como todos os agentes entendem a natureza das suas funções. Esta teoria tem sido profusamente estudada, tanto no contexto educacional — pelo menos desde Kruglanski, Friedman & Zeevi, 1971) — como no contexto laboral — pelo menos desde Deci & Ryan (1985) — tendo ganho projeção em trabalhos como os de Frey (1997). Estes estudos têm mostrado que em tarefas não mecânicas a

performance dos sujeitos podem mesmo sair prejudicada com um aumento dos incentivos; e

que, noutros casos, embora no curto prazo os incentivos possam influenciar positivamente os indivíduos no desempenho de certas tarefas, no longo prazo o efeito dos incentivos é muitas vezes nulo ou mesmo negativo (Bénabou & Tirole, 2003: 490). Pior ainda, parece existir um efeito crowding out da motivação intrínseca (Frey & Oberholzer-Gee, 1997). Assim, quando se paga a crianças para ler, ou a adultos para deixar de fumar, perder peso, ou ir buscar as crianças ao infantário a horas, em regra os resultados diluem-se com o tempo e pode haver mesmo piores resultados, especialmente quando os incentivos deixar de estar presentes (Levitt & Dubner, 2005: 31).

No estudo feito em Israel e mencionado por estes autores, os pais tinham de pagar uma taxa de cerca de 3 USD por se atrasarem a vir buscar os filhos ao infantário a horas. O resultado foi um aumento do número de atrasos, já que a penalização pecuniária substituiu o sentimento de culpa sentido pelos pais. A dimensão de imperativo categórico de “ir buscar os

filhos à hora combinada” — afinal pacta sunt servanta — é substituída por um imperativo hipotético com a reformulação dos termos do acordo — “deves ir buscar os filhos à hora combinada, se não queres pagar mais”.

A linha de pesquisa da Teoria da Auto-determinação (Deci & Ryan, 1985), acentua a os benefícios da auto regulação face à hetero regulação, bem como a necessidade de criar estruturas organizacionais que satisfaçam três necessidades psicológicas fundamentais capazes de promover a motivação intrínseca: competence, relatedness e autonomy. No entanto, a Teoria da Auto-Determinação não nega a valia dos motivadores extrínsecos, mas entende apenas que a sua eficácia depende em boa medida da internalização dos mesmos.

Assim, Deci & Ryan (2000: 72) dizem que a motivação extrínseca não é uma realidade homogénea, mas assume diferentes estilos, que existem em contínuo e não como classificações estanques. A primeira forma de regulação é a external regulation, assente numa observância das regras por via de recompensas e castigos. O paradigma do homo economicus assumiria apenas a existência deste tipo de motivadores. Podemos ver este tipo de atitude para com normas que não estão enraizadas na consciência axiológica da comunidade, ou de certas sub-comunidades.

Para a introjected regulation, a segunda forma de regulação mais externa, é baseada numa ideia de auto controlo em que, apesar das regras serem entendidas como externas, há um envolvimento em termos de auto estima associado ao cumprimento ou desrespeito pelas normas. O agente cumpre para evitar sentimentos de vergonha, culpa ou ansiedade.

Já a identified regulation é uma forma mais autónoma de regulação, em que o agente conscientemente reconhece valor à norma, pelo que esta assume importância para o sujeito e é recebida por este.

Por fim, a integrated regulation ocorre quando o agente não só assume a norma como constrói o seu quadro axiológico em coerência com a norma. Esta forma de regulação é ainda considerada extrínseca porque as ações realizadas com essa motivação são feitas para atingir determinados resultados tidos como positivos pelo agente e não apenas pelo prazer inerente à sua realização.

Este modelo apela a que qualquer sistema de incentivos implementado não deixe de colocar ênfase na internalização das normas, através de um equilíbrio entre controlo e autonomia, que tenha em consideração o grau de corrupção existente em dado país ou setor. Chandler & Connell (1987) mostram que a internalização das normas e passagem de uma motivação extrínseca para uma motivação intrínseca é não só possível como é o processo

natural de desenvolvimento natural observado em crianças e adolescentes. Parece-nos plausível que, ainda que possa ser mais difícil, o mesmo processo de internalização possa ocorrer em fase adulta.

Neste sentido, a OECD (2004) relembra politicas adotadas no combate à corrupção na Finlândia, onde se procurava que os funcionários públicos tomassem consciência dos valores que enquadram a sua ação. Na experiência finlandesa, a interiorização dos valores é conseguida através da sua definição coletiva no contexto de cada unidade de trabalho; pela incorporação dos valores nos processos de recrutamento, decisão e avaliação individual e coletiva; pela importância dada ao exemplo das chefias e pela avaliação do desempenho das chefias no que diz respeito aos valores; e na cristalização dos valores em códigos de conduta onde é plasmado o seu significado para a equipa e são listados procedimentos que dão aos valores uma dimensão prática.

Também em Hong-Kong, a agência responsável pelo combate à corrupção apostou, aparentemente com resultados positivos, em campanhas de consciencialização que lhes permitissem ganhar o apoio e respeito da opinião pública, alterando assim a postura tradicional de tolerância face ao fenómeno (De Speville, 1997).

Ainda que seja difícil a avaliação dos efeitos de políticas como estas, elas podem apontar o caminho para uma forma de combater a corrupção que evite o combate e a árdua tarefa de perseguição de todos os episódios de corrupção, impedindo que estes casos alguma vez ocorram. Como ensinava Sun Tzu, a suprema arte da guerra é vencer o inimigo sem combater e a própria vitória em combate se atinge antes do combate. Também aqui, a guerra só se vence verdadeiramente quando travada no espírito de cada um, quando este é tentado a corromper ou a deixar-se corromper.