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O motivo da viagem como estetização do encontro do Eu com o Outro:

2. A Literatura de Viagens – estado de arte teórico

2.3 O motivo da viagem como estetização do encontro do Eu com o Outro:

O conceito do Outro, do estranho [fremd], entendido atualmente como um “conceito basilar” da Ciência Literária Intercultural, tal como Ortrud Gutjahr sublinha,31

encontra- -se assim intimamente ligado ao tema da viagem: na literatura de viagens, como vimos, mas também noutras formas literárias, como na literatura do exílio, na literatura da

29 Mantenho o original alemão, por não me parecer correto traduzir para português tal conceito proposto por Ottmar Ette.

30 No original, Ette afirma: “Die Faszination des Reiseberichts – so meine These – beruht in grundlegender Weise auf den in der Reiseliteratur allgegenwärtigen Verstehensbewegungen, verstanden als Bewegungen des Verstehens im Raum, das die Dinamik zwischen menschlichem Wissen und Handeln, zwischen Vor-gewusstem und Nicht-gewussten, zwischen den Orten des Lesens, den Orten des Schreibens und den Orten des Berichteten räumlich konkretisiert […]. Verstehen wird als abgeschlossener und dennoch für den Leser offener Vorgang […] vorgeführt. Jeder Reisebericht präsentiert damit seinen Lesern anschauliche Modelle des Verstehens, die in ihrer raum- zeitlichen Dimension entfaltet werden. Der Reisebericht ist ein inszeniertes Erfahrungsmodell, das auf die Aneignung von Wahrnehmungsformen fremdkultureller Elemente […] zugeschitten ist.” (Ette 2001: 25).

31 A este respeito, consulte-se Ortrud Gutjahr “Alterität und Interkulturalität” (Cf. Bibliografia, aqui: 357).

45 emigração, na literatura colonial, bem como na literatura pós-colonial. A estrutura e o motivo da viagem servem a estetização do encontro consigo próprio e com o outro. O sentimento de estranho, seja entendido no interior do próprio sujeito, seja no interior da família ou do grupo social, leva a problemas de delimitação das fronteiras de si para consigo, ou de si para o Outro, conduzindo ainda quer à figura do exilado, ou em busca de exílio, quer àquele que volta à pátria (cf. Esselborn 2004: 290) e também, eu acrescentaria, ao apátrida.

Parece-me importante, neste contexto, referir a contribuição de Andrea Polaschegg quando distingue entre “alteridade” [Alterität] e “o Outro/o Estranho” [Fremdheit]. Polaschegg defende que geralmente a “alteridade” é colocada no eixo da diferença que levará à constituição da identidade, e o “Outro” no eixo que vai do familiar ao “estranho”. Daí decorrem os pares de oposições: Identidade vs Alteridade e Familiar vs. Estranho. Ora, segundo Polaschegg, esta oposição não pode ser feita de forma tão maniqueísta, devendo antes ter-se em conta a existência de uma escala gradativa em que surgem o Eu familiar/conhecido, o Eu estranho/desconhecido, o Outro estranho/desconhecido e o Outro familiar/conhecido. De salientar ainda que as fronteiras entre estas quatro gradações são fluidas e permutáveis (apud Sofie Decock/Uta Schaffers 2011: 188, nota 4).

Aliás, o conceito de fronteira surge-nos como ideia central quando se teoriza acerca da identidade e dos perigos de se “resguardar” a nossa identidade através da construção de um “muro”, tão compacto e defensivo que se torna também potencialmente agressivo. Seguindo a ideia de Aleida Assmann e Heidrun Friese, as identidades são tanto mais “elásticas” e “diferenciadas” quanto mais tornarem estas fronteiras o próprio objeto reflexivo de uma construção da identidade cada vez mais aberta. Isso significa que o conceito oposto a identidade, nomeadamente a “diferença”, não será doravante determinado como o Outro da identidade, constituído através do critério de fronteira e da criação de opostos. Logo que a diferença se incorpore no interior da identidade, o conceito perde as suas conotações problemáticas de homogeneidade e totalidade, substância e organicidade. Daí decorre que o conceito de identidade já não seria o oposto de alteridade, mas uma prática da diferença (cf. Assmann/Friese 1999: 23). Friese, no seu estudo dedicado à identidade, explicita este sentido na seguinte afirmação (1999: 42-43):

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“Eu”, portanto, como desejo não de uma unidade completa e coerente na aguardada síntese, mas sim um “Eu” que constantemente se movimenta e se expõe no local da cisão e do Ser Outro, como o espaço da Identidade; “Eu”, portanto, como fronteira e passagem, simultaneamente sobreposição de presença e distância: “Eu”, um Eu, a morte diante dos olhos, num devir constante, não se esgotando no nome. “Eu” como fala de uma língua, como redação de um escrito, que não tenta dominar as diferenças criando um único conceito e um sentido definitivo […].32

A fronteira assim entendida como local da diferença, ou différance no sentido de Derrida,33 tem as suas próprias leis, as leis da periferia, que se distinguem das do centro. A fronteira é, por isso, também um local de encontro com o Outro, contudo, pode separar dois territórios com sistemas políticos, sociais, culturais ou linguísticos diversos. Na fronteira encontram-se o diferente e o diverso num duplo sentido, pois cada um é atingido e verifica-se uma interpenetração. Neste âmbito, a fronteira não é unicamente lugar da diferença e da delimitação, mas também da passagem, da aproximação e da mistura. Simultaneamente princípio e fim, daí nasce a sua dialética especial: não existe fronteira sem passagem de fronteira (cf. Lamping 2001: 12-13).

Para a caracterização da literatura de Rilke e de Celan, Jürgen Lehmann (aqui citado por Lamping) afirma que o conceito de passagem de fronteiras se deve entender “primeiro completamente no sentido literal, ou seja, como um voluntário ou coercivo ‘estar ao

32 No original: “’Ich’ also, als Begehren nicht nach einer vollständigen und kohärenten Einheit in der gedachten Synthese, sondern ein “Ich”, das sich beständig am Ort der Spaltung und der Andersheit als dem Raum der Identität bewegt und exponiert, “Ich” also, als Grenze und Überschreitung, zugleich Überschneidung von Präsenz und Distanz; “Ich” ein Ich, den Tod vor Augen, beständig werdend und sich nicht im Namen erschöpfend, “Ich” als Sprechen einer Sprache, als Schreiben einer Schrift, die nicht versucht, die Differenzen in einem Begriff und in einem definitiven Sinn zu meistern […].” (Friese 1999: 42-43).

33 Jacques Derrida explica a necessidade de criar a sua différance, pegando no verbo “diferir” que significa duas coisas: não ser idêntico e remeter para mais tarde. Ora, a palavra “différence” não evoca o atraso, o diferido. Différance, pelo contrário, deveria compensar este desperdício de sentido, pois provém do particípio presente (différant, em francês), aproximando a ação em curso da diferida, mesmo antes de ela produzir um efeito constituído em diferente ou diferença (différent ou différence, em francês). Derrida precisa então os conceitos de signo e escrita, afirmando: “la structure classiquement déterminée du signe […] présuppose que le signe, différant la présence, n’est pensable qu’ à partir de la présence qu’il diffère et en vue de la présence différée, qu’on vise à se réapproprier”. Portanto, Derrida pega no signo e opõe-lhe uma différance original que lhe volta a pôr a autoridade da presença ou do seu simples contrário simétrico, a ausência ou a falta [l’autorité de la présence ou de son simple contraire symétrique, l’absence ou le manque]. A arbitrariedade do signo bem como o seu caráter diferencial – os dois motivos que Saussure via inseparáveis e correlativos – são aqui postos em causa: “le concept signifié n’est jamais présent en lui-même, dans une présence suffisante qui ne renverrait qu’à elle-même”. Todo o conceito se inscreve necessariamente numa cadeia, num jogo de diferenças. “La différance [est] le mouvement du jeu qui ‘produit’ […] ces différences, ces effets de différence” (1972b: 8-11).

47 caminho’”, ao qual corresponde uma “inquietude interna, uma movimentação espiritual invulgar, um não querer estar fixo por princípio” (apud Lamping 2001: 14).34

Sumariando, para Dieter Lamping, a passagem de fronteiras dá-se para o sujeito “ultrapassar as suas próprias limitações, experimentar novas experiências de vida ou ganhar liberdade” [eigene Befangenheiten überwinden, neue Möglichkeiten des Lebens erproben oder Freiheit gewinnen] (ibid.). Porque as fronteiras, as passagens, são um sinal de um “estar entre”, em que o “Eu” vive na dúvida e nesse “estar entre”, como Rüdiger Görner afirma, “coloca-se a questão do lugar do Eu, que metáforas escolhe para descrever a sua posição, se acentua o lado transitório da sua existência, se o lado de exposição das suas fronteiras individuais, tudo isto são indicadores de uma tentativa de autodeterminação.” (cf. Görner 2001: 11)35

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Para clarificar a sua ideia, Lamping serve-se da antropologia de Georg Simmel, afirmando que as referidas experiências mostram o indivíduo na sua contradição, como “ser de fronteira que não tem fronteiras” [das Grenzwesen, das keine Grenze hat], visto o desafio do sujeito consistir nesse constante ímpeto de busca de liberdade, através da passagem da fronteira, pois, afinal, só através do limite da separação se dá a ligação e a possibilidade de realização da liberdade individual, tal como uma ponte e o movimento de uma porta no-lo simbolicamente presentificam (cf. Lamping 2001: 15).36

Este aparente paradoxo constante entre a busca de liberdade, traduzida pela fuga e evasão, por um lado, e o “eterno retorno” às origens, às “fronteiras” europeias,

34 No original: “[Der Begriff] ist zunächst ganz wörtlich zu verstehen – als freiwilliges oder erzwungenes ‘Unterwegssein’, dem eine innere Unruhe, eine ungemeine geistige Beweglichkeit, ein grundsätzliches Nichtfixiertseinwollen entspricht” (apud Lamping 2001:14).

35 No original: “Wenn von Grenzen, Schwellen und Übergängen die Rede ist, dann stellt sich damit stets die Frage nach dem Ort des Ichs. Welche Metaphern es wählt, um seinen Standpunkt zu beschreiben, ob es das Transitorische seiner Daseinnsumstände betont oder das Ausgesetztsein auf den Grenzen seiner Möglichkeiten, es sind allemal Indikatoren eines Selbstbestimmungsversuches.” (Görner 2001:11).

36 Em Das Individuum und seine Freiheit. Essais (1993), Georg Simmel, no ensaio intitulado “Brücke und Tür (1993: 7-11), diz textualmente: “Und ebenso ist der Mensch das Grenzwesen, das keine Grenze hat. Der Abschluβ unseres Zuhauseseins durch die Tür bedeutet zwar, dass er aus der ununterbrochenen Einheit des natürlichen Seins ein Stück heraustrennt. Aber […] seine Begrenztheit [findet] ihren Sinn und ihre Würde erst an dem, was die Beweglichkeit der Tür versinnlicht: an der Möglichkeit, aus dieser Begrenzung in jedem Augenblick in die Freiheit hinauszutreten.” [E do mesmo modo o indivíduo é o ser de fronteira que não tem fronteiras. O encerrar do nosso estar em casa através da porta significa que o indivíduo está, na verdade, separado de uma parte da unidade ininterrupta do Ser natural. Mas […] a sua limitação [encontra] o seu sentido e a sua dignidade unicamente naquilo que o movimento da porta simboliza: na possibilidade de sair a qualquer momento desta limitação, rumo à liberdade.] (Simmel 1993:11).

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encontra-se paradigmaticamente patente na vida e consequente obra literária de Annemarie Schwarzenbach.

2.4 Espaço masculino vs espaço feminino na literatura de viagens – conceito