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1. INSTRUMENTAL TEÓRICO

1.4 Movimentos quebradistas

Em sua principal obra, A formação da classe operária inglesa, E. P. Thompson dedica boa parte do terceiro volume aos movimentos operários de destruição de máquinas, deflagrados nos séculos XVIII e XIX na Inglaterra. Definirá essas ações diretas violentas como “A destruição de materiais, teares, debulhadoras, o inundamento de minas ou estragos na boca de minas, o saque ou o ateamento de fogo à casa ou aos bens de patrões impopulares” (THOMPSON, 1987, p. 124). Deve-se ressaltar que Thompson faz uma diferenciação entre o movimento de destruição de máquinas propriamente dito e o luddismo. Segundo ele, há uma diferença entre estes dois movimentos tendo em vista que o segundo possuía elevado grau de organização e politicamente havia uma feição insurrecional.

Neste momento, Thompson parece estar em um dialogo com Marx, Engels e Lênin, pois é notório que este grupo de autores compartilhava a ideia de que o movimento luddista foi um momento anterior à tomada de consciência da classe operária acerca de seu antagonismo irreconciliável com a burguesia (ENGELS, 1986, p.243 e MARX, 2013, p.501). Enquanto Thompson afirma que o luddismo beirava objetivos revolucionários ulteriores, mesmo que não fosse ainda totalmente consciente, “tinha uma tendência a se transformar num movimento desses, e é esta tendência que é subestimada com excessiva freqüência.” (THOMPSON, 1987, p.125). Contudo, em nenhum momento o autor inglês abre um debate especifico citando textos ou posicionamentos de Marx e Engels sobre o movimento luddista e quebradista de maneira geral.

O que nos interessa é discutir o caráter desses confrontos políticos. Por utilizarem a violência, estes trabalhadores seriam mais radicais ou teriam maior propensão insurrecional do que aqueles que se organizam e manifestam por meios pacíficos? Por que estes trabalhadores escolhem este repertório para expressar o conflito? Seriam estas formas mais eficientes do que as ditas “normais”? Para tanto, retomamos o debate entre os fundadores do materialismo histórico e dialético, Marx e Engels, e Lênin no Que fazer? (1978) e introduziremos a abordagem de Hobsbawm em The Machine Breakers(1952).

Como Thompson descreve, baseado em vários relatos históricos dos acontecimentos nos séculos XVIII e XIX, de modo geral os confrontos luddistas aconteciam quando pequenos grupos de trabalhadores se organizavam para ameaçar ou destruir fábricas, minas de carvão e tecelagens, para que não houvesse a implementação de máquinas que acabassem por diminuir a necessidade de trabalhadores. Ocorreram também alguns ataques para exigir aumentos salariais embasados no crescimento da produção34.

Marx e Engels entendiam que se tratava de movimentos isolados, limitados geograficamente e que não percebiam a origem e o alcance do problema. Segundo eles, enquanto os operários deveriam se organizar para a tomada do poder, em movimentos massivos nos quais os trabalhadores pudessem perceber que lutam contra todo um sistema, o movimento luddista estava fazendo exatamente ao contrário: dedicava toda sua força para a destruição de uma fábrica ou apenas para evitar que máquinas fossem instaladas. Este trecho sintetiza todo o posicionamento de Marx e Engels sobre o luddismo e outros movimentos quebradistas na Inglaterra e em toda Europa:

Esta forma de oposição, também ela, não existia senão isolada, limitada a certas localidades e não visava senão um só aspecto do regime atual. (...) Era preciso encontrar uma nova forma de oposição. (ENGELS, 1986, p.243)

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Thompson realiza um vivo relato sobre um desses ataques para exemplificar como eles aconteciam: “O ataque a Rawfolds se tornou lendário. Participaram talvez 150 luddisstas (disse-se que aguardavam

mais e que os contingentes de Leeds ou Halifax não conseguiram chegar em tempo). Conduzidos por George Mellor, um jovem aparador de tecido de uma pequena oficina de acabamento na Longroyd Bridge, perto de Huddersfield, os luddistas trocaram um vivo tiroteio, por vinte minutos, com as defesas fortificadas. Sob a proteção desse fogo, um pequeno grupo de malhadores e homens com machadinhas tentaram repetidamente derrubar as pesadas portas da fábrica. Esse grupo sofreu grandes baixas, sendo que pelo menos cinco foram feridos, dois dos quais – mortalmente atingidos – ficaram para trás quando os luddistas se retiraram abruptamente. Disse-se que seu comandante, Mellor, foi o último a ser deixado em campo, e que não conseguiu ajudar os feridos, visto que estava ajudando a pôr a salvo um outro (seu primo). Pelo terreno em torno “da fábrica, espalhavam-se desordenadamente mosquetes, machados, lanças e ferramentas de metal.” (THOMPSON, 1987, p.133)

Ainda que o repertório apresentado por estes trabalhadores fosse radicalizado pela violência, suas pautas eram tão imediatas e econômicas como a maioria das greves que precederam ou se seguiram a esse movimento. Contudo, os luddistas expressavam seu descontentamento nas máquinas e instalações fabris e, como percebe Marx ao abordar este tema:

Foi preciso tempo e experiência até que o trabalhador distinguisse entre a maquinaria e sua aplicação capitalista, e com isso, aprendesse a transferir seus ataques, antes dirigidos contra o próprio meio material de produção, para a forma social de exploração desse meio. (MARX, 2013, p.501)

A partir disso podemos perceber que o caráter de um conflito político não se dá apenas pelo repertório utilizado pelos seus agentes políticos, mas sim pelos objetivos, ou seja, por aquilo que se pretende com o movimento. Desta forma, se utilizamos a distinção leninista entre consciência espontânea35 e consciência social-democrata trabalhada em Que fazer?, poderíamos dizer que o movimento quebradista, como relatado por ele, pertence à consciência espontânea, e por isso, forma anterior e ainda embrionária de consciência da classe operária. E é isto que Lênin faz ao abordar as greves operárias da década de 1870 e 1880 na Rússia. Chamando-as de tumultos, o autor descreve que houve “destruição ‘espontânea’ de máquinas” e acrescenta em seguida:

Os tumultos primitivos já traduziam certo despertar da consciência: os operários perdiam sua crença costumeira na perenidade do regime que os oprimia; começavam... não direi a compreender, mas a sentir a necessidade de uma resistência coletiva, e rompiam deliberadamente com a submissão servil às autoridades. Era, portanto, mais uma manifestação de desespero e de vingança que de luta. (LÊNIN, 1978, p.24)

Lênin identifica dois estágios da consciência de classe do proletariado, a espontânea e a social-democrata. Para ele o sindicalismo está preso ao espontâneo, pois limita-se ao econômico36; é uma forma embrionária da luta de classes, que se organiza numa perspectiva tradeunionista. Neste estágio, a classe trabalhadora percebe que deve lutar pela sua própria sobrevivência contra os patrões e o Estado, isto é, contra demissões, por aumentos salariais e por melhores condições de trabalho e vida. Contudo, quando percebe que seus interesses são irreconciliáveis com os interesses da

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Não confundir consciência espontânea com o caráter espontâneo das greves; ainda que possam estar relacionadas, neste momento, são coisas distintas.

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Para Lênin, o economicista é aquele que prega “a luta econômica como o meio mais amplamente

aplicável para integrar as massas ao movimento político, realizam um trabalho profundamente prejudicial e reacionário em seus resultados práticos.” (LÊNIN, 1978, p.55).

burguesia e que sua emancipação é a libertação de toda a sociedade, o proletariado atinge a consciência social-democrata37.

Devemos perceber que para Lênin tanto os “tumultos” das décadas de 1870 e 1880, nos quais houve destruição de máquinas, quanto as greves operárias de 1890 da Rússia, são ainda expressões da consciência espontânea da classe trabalhadora, isto é, a percepção da sua exploração e opressão, o que nos demonstra que o caráter de um conflito político se dá exatamente pelo que se almeja, isto é, pelos seus objetivos. Contudo, os “tumultos” eram mais “uma manifestação de desespero e de vingança que de luta” (LÊNIN, 1978, p.24). Os movimentos quebradistas, inclusive o luddismo, podem ser compreendidos dessa forma, ao contrário do que sugere Thompson, que atribui a esses movimentos uma feição insurrecional. Assim, percebemos que são explosões de fúria destes trabalhadores contra as condições de vida e trabalho que lhes são impostas pelos patrões e pelo Estado.

As greves de 1890 são para Lênin ainda greves meramente sindicais, sem consciência social-democrata. Contudo, se aqui retomamos a dicotomia marxiana de classe em si e classe para si, poderíamos dizer que estas greves seriam expressão da consciência da classe em si, isto é, já se percebe a necessidade da sua unidade para lutar por suas necessidades. Isto ocorre devido ao fato de que nessas greves “formulavam-se reivindicações precisas, procura-se prever o momento favorável, discutem-se certos casos e exemplos de outras localidades etc.” (LÊNIN, 1978, p.24).

Portanto, é necessário neste momento entender o caráter que esses confrontos políticos possuíram, para que assim possamos compreender se são capazes de promover o rompimento com a ordem. Ainda que possuam um repertório de confronto altamente radicalizado, com a utilização da violência como meio de tensionar a seu favor38, estes acontecimentos, na perspectiva de Lênin, devem ser considerados como espontâneos e iniciais. Ao longo deste trabalho dividiremos as greves nas obras do PAC em dois grupos, entendendo o primeiro como greves com rebeliões operárias e o segundo como greves tradicionais, consideramos que o primeiro grupo promove explosões súbitas contra situações que escancaram a situação de subsunção na qual vivem aqueles trabalhadores; desta forma as greves com rebeliões seriam comparáveis aos tumultos de 1870 e 1880 na Rússia ou aos movimentos quebradistas na Inglaterra do século XVIII e

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Os conceitos de “consciência espontânea” e “consciência social-democrata” são complementares às categorias marxianas de “classe em si” e “classe para si” trabalhadas n’A miséria da filosofia por Marx. 38

XIX. Esta divisão tem por objetivo ajudar-nos a compreender nosso objeto de pesquisa, e trata-se de um conceito diferente de “greves selvagens”, afinal este é um conceito utilizado pelas ciências sociais norte-americanas pra entender acontecimentos específicos e com características distintas dos confrontos políticos que estudamos nesta dissertação.