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CAPÍTULO I O ENFRENTAMENTO DO ESTADO FACE À TRAJETÓRIA DA

1.5 Movimentos Reformistas em Psiquiatria e o contexto Brasileiro

O pensamento reformador da psiquiatria italiana atravessará fronteiras e chegará ao Brasil na década de 1970. A partir daqui expõem-se as modificações que o Brasil vem trilhando, tendo como base teórica as propostas reformistas iniciadas por Basaglia.

Os primeiros questionamentos a respeito da assistência psiquiátrica instaurada no país dizem respeito basicamente às críticas direcionadas ao modelo privatista vigente e a sua incapacidade de promover um tratamento que atendesse as necessidades dos usuários. Até então, a reclusão dos loucos, indigentes, abandonados ou pobres, seguia por regra, os mesmos motivos pelos quais foi aberto o primeiro hospício brasileiro. Durante décadas, a loucura brasileira trilhou caminhos segregadores, tendo por base a regulação e a manutenção da ordem social. Tem-se, pois, a necessidade de historicizar aqui o processo de instauração dos hospitais psiquiátricos brasileiros.

Tundis e Costa (2007) apontam que as primeiras instalações da loucura no Brasil foram assumidas pelas Santas Casas de Misericórdia – tipo de irmandade importada pela colonização portuguesa, em meados do século XVI. Sua herança é quase tão antiga quanto à carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel (JORGE, 1997 p. 05). A primeira Santa Casa de Misericórdia que se tem registro no mundo foi fundada em Lisboa, no ano de 1498,

idealizada pelo Frei Miguel de Contreiras18 com o apoio da rainha Leonor de Lencastre e tinha como principal preocupação resolver a situação dos enjeitados e marginalizados que vagavam pelas ruas. Tais instituições foram Instaladas com uma função puramente assistencial, lá eram acolhidos os pobres, os doentes, os órfãos ou abandonados, os velhos, os excluídos do convívio social, os criminosos e os doentes mentais.

No Brasil, registra-se a primeira Santa Casa de Misericórdia em 1539, na cidade de Olinda, Pernambuco. Essas instituições eram regidas pelos estatutos das instituições portuguesas, desempenhando o mesmo papel de cunho assistencial. Sua atuação apresentou duas fases: a primeira compreendeu o período de meados do século XVIII até 1837, desenvolvendo ações de natureza caritativa; a segunda ocorreu entre 1838 a 1940, com preocupações de cunho filantrópico.

O pesquisador Marco Aurélio Soares Jorge (1997 conta que a idéia de criação do primeiro asilo destinado aos loucos no Brasil surgiu na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do Século XIX, como necessidade de resolver a situação das Santas Casas de Misericórdia:

[...] a idéia de se criar um espaço de recolhimento mais adequado aos loucos que se encontravam nas dependências da Santa Casa de Misericórdia ou nas ruas, fazia parte de uma cadeia de transferência de responsabilidades que se iniciou com a necessidade de se retirá-los do espaço urbano. [...] Era dada como necessária a construção de um local específico, que ficasse afastado do centro urbano da cidade do Rio de Janeiro, para abrigar os loucos recolhidos pela Santa Casa, que lá ficavam internados em locais vistos como impróprios e custosos (JORGE, 1997, p. 35).

Assim, foi inaugurado em 05 de dezembro de 1852 o Hospício Pedro II, o primeiro do país, criado através do Decreto n° 82 em 18 de julho de 1841. Dotado de 350 leitos, já abre suas portas com 144 internos, atingindo sua capacidade completa em pouco mais de um ano (JORGE, 1997). A superlotação se perpetuará nos séculos seguintes e será caracterizada como uma forma exclusão social, visto que, nem toda população existente nos asilos terá diagnósticos previamente definidos, sendo em sua grande maioria vítimas do abandono e das condições sociais a eles inerentes.

Para o mesmo autor, a prática asilar no Brasil desde o início apresentou características de cunho excludente. O Hospício Pedro II, por exemplo, foi construído afastado do centro

18 Frade Trinitário evangelizador, conhecido como missionário dos pobres, vindo da Espanha para Portugal com a missão de resgatar os cativos, do domínio da mouraria, que representava uma ameaça às terras da Península Ibérica.

urbano, propiciando, assim, um duplo afastamento do louco do meio urbano e do convívio social. Situação, essa, favorecida principalmente pelo distanciamento, seja pela necessidade justificada de tranquilizar e ocupar o insano, seja pelas formas de ocultar a reclusão que se adotava no interior dos manicômios.

Com a instauração da República, em 1890, o Hospício Pedro II passou a ser chamado de Hospício Nacional de Alienados e desvincula-se da Santa Casa de Misericórdia, ficando subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Nessa fase, as instituições asilares implantadas sofria com a superlotação dos internos, fato que incentivou e expandiu a idéia de construção das Colônias que conduziam o objetivo de promover junto aos internos trabalhos voltados para a agricultura e agropecuária, como também para atividades de confecção artesanal.

Jorge (1997) nos conta que no Rio de Janeiro, ainda no ano de 1890, são anexadas ao Hospício Nacional as Colônias de São Bento e a Colônia de Conde de Mesquita. Estas serão as primeiras que se ter registro, tendo surgido como estratégia para diminuir a superlotação nos hospícios. A esse respeito Resende nos dirá:

Hospícios que, uma vez abertos, se viam, em curto espaço de tempo, assoberbados pela demanda, justificando o clamor por mais verbas e mais hospitais. Está foi uma tendência constante ao longo de toda a história da assistência psiquiátrica até os tempos recentes (RESENDE, 2007, p. 37. Grifo nosso).

Vale ressaltar, que até o final do século XVIII as cidades brasileiras eram muito pouco povoadas, sendo a distribuição populacional determinada pela economia rural, não havia ainda uma organização industrial urbana que justificasse a intolerância da Corte ao louco ocioso e andarilho pelas ruas.

Acrescenta Resende (2007) que as características impressas pela vida econômica do Brasil Colônia proporcionarão os meios de exclusão que perpassarão a ordem psiquiátrica adotada como meio de organização das vilas e cidades a partir do advento da República. Tal ordem se cristalizará de maneira inversa à ocorrida na Europa, pois não advêm de um momento propiciado pela era das grandes revoluções, e sim pela forma como o país foi colonizado. Assim, afirma que será “o trabalho baseado na atividade servil – que condicionará a situação social do período, moldará preconceitos e determinará transformações e consequências que terminarão por exigir providências e ações concretas” (RESENDE, 2007, p. 33).

A mesma linha de pensamento segue Lucia Rosa (2008) – esta autora considera que a institucionalização da loucura no Brasil está diretamente ligada à ordem social que se instaura no país desde os primórdios da colonização, tendo como princípio básico uma economia rural e escravocrata, regida pelas grandes oligarquias rurais que dominavam o comércio agroexportador. Dirá, ainda, que as formas de exclusão ocultavam as faces da questão social, onde a mesma era tratada como “caso de polícia”, expondo que,

[...] a assistência psiquiátrica do país – surge como resposta à loucura e ao louco, alçado a problema social, no bojo das ameaças à ordem pública e a paz social, desencadeadas pelo crescimento do número de pessoas livres e ociosas que circulavam pelas cidades mais importantes do Império e principalmente na sede da corte (ROSA, 2008, p. 86).

Nesse sentido, adianta justificar que o trabalho escravo exercido tanto no meio rural como no meio urbano maculava o exercício do trabalho livre, tornando-se alvo de preconceitos e pouco exercido por homens e mulheres brancas (os) da corte e das grandes oligarquias que se formavam. A esse respeito, ainda, Resende nos faz uma observação:

A utilização universal do negro nos vários misteres da vida econômica e social terminará por estigmatizar o próprio conceito de trabalho em geral como atividade pejorativa e desabonadora e poucos serão os homens livres, mestiços, mulatos e mesmo brancos que se disporão a se engajar em qualquer atividade laborativa sem se considerar, e ser considerado por isso mesmo, pessoas indignas (RESENDE, 2007, p. 33).

O mesmo autor nos aponta que será aberto outras diversas instituições asilares em todo território nacional, a exemplo de São Paulo, Pernambuco, Bahia e Pará. Tais edificações se expandem rapidamente, à medida que crescem e se desenvolvem as cidades, principalmente as que apresentam tendências de edificarem-se como metrópoles no cerne da industrialização, o que marcará sem dúvida a fase da “grande internação asilar” à moda brasileira.

Os motivos pra se estabelecer a “grande internação” no Brasil, segundo Resende (2007) são basicamente três: internar porque “os loucos” ameaçam a paz e a ordem social; internar devido a denúncias de caráter humanitário contra maus tratos; e por último, internar mediante a intenção clínica da recente Sociedade de Medicina que a si resguardava o dever de curá-los.

Para Rosa, os motivos são fundamentalmente os mesmos, porém a autora enfatiza a necessidade estatal de tomar providências em relação à loucura e cita três motivos que justificavam a internação,

Social – pela intranquilidade provocada apela loucura solta na rua, que ganha maior visibilidade em meio aos riscos e tumultos urbanos, gerados pelo crescimento do contingente de homens livres e desocupados; Clínica – pois os médicos [...] em nome de princípios humanitários e da higiene pública, passam a denunciar os maus tratos a que são submetidos os loucos [...], já reivindicando para si, desde 1830, por intermédio da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, o monopólio da cura e do tratamento; E, Caritativa – pois as irmandades religiosas pleiteavam uma ação sobre a loucura, a fim de atenuar os sofrimentos humanos dela decorrentes (ROSA, 2008, p. 87).

Assim, a loucura passa a ser medicalizada e o hospício instituído como o local de cura, lugar onde a ciência apodera-se do campo psiquiátrico guiada pela luz positivista, rompendo com a ação puramente assistencial-caritativa e ganhando características de cunho científico. Dessa forma, a prática asilar brasileira irá se revestir de uma metodologia disciplinar, que irá contribuir para a organização do meio urbano, auxiliar no aparelhamento interno das instituições e cristalizar-se como um dispositivo de controle político e social, além de incidir sobre as formas como serão estruturadas as políticas de saúde brasileira (AMARANTE, 1995), inclusive, como influenciou para a implantação da política de saúde mental vigente. Ambas, serão tratadas no capítulo a seguir.

CAPÍTULO II - PROCESSOS DE REFORMAS E O SERVIÇO SOCIAL NA SAÚDE