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2. Instituições importam

2.3 Mudança das regras: entre constitucionalismo e democracia

Um dos principais pilares do Estado de Direito é assegurar às regras a capacidade de prover as ações dos atores políticos. Desta feita, as democracias modernas criaram Constituições a fim de limitar o comportamento de governantes e governados. Por isso, a missão dada à potencialidade da racionalidade humana foi explorar mecanismos normativos eficientes para firmar pré-compromisso e restrições, visando a conter os efeitos negativos das paixões. Elster em Ulysses and the Sirens (1984), tinha alertado para as fraquezas da condição humana e a busca de criar artifícios para se livrar das tentações do mundo exterior. Nesse sentido, Ulisses propõe aos seus companheiros que lhe imponham amarras para que possa continuar sóbrio, evitando qualquer deslize numa situação de embriaguez futura. Assim, se pôde compreender o papel do constitucionalismo no mundo moderno, tendo as Constituições políticas como “dispositivos de pré-compromisso ou auto-restrição, criados pelos políticos para se proteger de suas próprias tendências previsíveis a tomar decisões pouco sábias” (ELSTER, 2009, p. 119).

Não obstante, é a sua análise em “Ulisses Liberto” (2009) que retoma essa discussão, revendo seu ponto de vista com base no discernimento do historiador norueguês Jens Arup Seip, que elucidou a questão do pré-compromisso e restrições, enfatizando que na política se

dá uma razão bem específica. “No mundo político as pessoas nunca tentam restringir a si próprio, mas apenas aos outros”.

Outrossim, Elster (1984) já havia chamado a atenção no cenário moderno das Assembléias Constituintes para o „paradoxo da democracia‟, enfatizando que “cada geração quer ser livre para restringir suas sucessoras, mas não quer sofrer restrições por parte de suas predecessoras”(2009 p. 151). Para melhor compreensão desse argumento, conclui que:

Por um lado a Assembléia quer se libertar dos mandatos e restrições que as supra-autoridades tentam lhe impor. Por outro, quer estabelecer a lei para gerações futuras e dificultar a sua libertação (e tornar-lhes difícil restringir as gerações que, por sua vez, as sucederam) (Elster, 2009, p. 151). É nesse sentido que os debates em torno das mudanças constitucionais, através dos mecanismos de reformas e emendas, ganham evidência nos meandros das reflexões sobre a rigidez e flexibilidade das regras do jogo e a sua articulação com a racionalidade dos atores políticos. De acordo com esse prisma, Holmes (1988) levanta a discussão dos possíveis vieses antidemocráticos pertinentes à auto-sustentabilidade do constitucionalismo. O ponto de partida para levantar os argumentos que legitimam qualquer processo de mudança das regras deve-se a essa questão do controle democrático: “os mortos não podem governar os vivos, mas não se pode facilitar que os vivos governem a si mesmos” (Holmes, 1988 p. 26).

Para Holmes, as questões que envolvem o constitucionalismo terminam entrando em conflito com o cerne da democracia, quando esta expressa a autêntica vontade da comunidade ou da maioria. Se as Constituições celebram pré-compromisso e restrições, elas acabam afastando certas decisões do processo democrático, podendo, assim, funcionar como instrumentos para atar as mãos da comunidade. Dessa forma, aparecem as controvérsias em torno da rigidez ou flexibilidade do texto constitucional. Isso retoma aos princípios fundadores do contrato social, que deram margem à teoria política moderna de discutir até que ponto se pode aceitar que a democracia seja submetida à camisa de força constitucional. Por outro lado, há certa desconfiança quanto à capacidade de manutenção da democracia sem aparar arestas através do texto constitucional. Assim, Holmes resume as críticas de Shapiro e Hayek sobre os pontos e contrapontos do debate, chamando atenção para a possibilidade de uma tensão profunda entre democracia e constitucionalismo, pois esses autores concluíram que não se torna difícil que haja uma relação entre opostos, denominada assim de oximoro.

Não obstante, as questões em torno de um entendimento para a democracia constitucional vão sendo dadas por algumas vertentes da teoria republicana, que mesmo acenando à ideia de um pacto fundador realizado pelos pais, repelem qualquer possibilidade

de obstrução no futuro dos filhos. Nesse caso, as considerações sobre o direito do povo de alterar ou abolir qualquer forma de governo que viole as liberdades, deram forma à Declaração de Independência dos Estados Unidos na voz de Thomas Jefferson, que assim concluiu: “Nenhuma instituição, por mais importante que seja, é inalterável; nenhuma lei por mais fundamental que seja, é irrevogável” (JEFFERSON apud HOLMES, 1988 p. 03).

Por isso, a questão do pré-compromisso constitucional esteve sempre presente nas inúmeras reflexões de pensadores liberais clássicos. Para Locke, deve-se atentar para outra proibição muito mais significativa: aquela que determina o princípio de que nenhum pai pode atar seus filhos. O cerne dessa questão encontra-se na sua própria justificativa: certo é que qualquer compromisso ou promessa que alguém tenha feito por si mesmo se encontrará abaixo das obrigações de outros, pois não se pode, por nenhum pacto que seja, atar os seus filhos para posteridade (LOCKE apud HOLMES, 1988 p. 03). Essa consideração é o fundamento do individualismo liberal que se enquadra em defesa da ampla liberdade política, pois mesmo que exista um contrato fruto do consentimento para limitar o comportamento político, ele foi resultado de uma posição original que permite, aos sucessores, o livre arbítrio de poder mudar as decisões dos seus predecessores quando lhes convier. Nesse sentido, fica patente que a política seria uma atividade para garantir o exercício da liberdade do indivíduo por isso, mesmo havendo o pré-compromisso constitucional, Locke considera que não há razão para os pais quererem, de maneira idiossincrática, encadernar os filhos. Essa tem sido uma questão que justifica a defesa da flexibilidade constitucional e denota a importância do poder reformador, como representante legítimo da vontade política livre.

Assim se fizeram os questionamentos de Paine sobre a tensão insolúvel entre constitucionalismo e democracia. Tal tensão advém de um dilema entre a herança de um marco legal fixo e a onipotência de cidadãos atualmente vivos (HOLMES, p. 5). Paine não só foi capaz de perceber uma tensão entre as regras constitucionais e os infindáveis anseios expressos na vontade da comunidade de fazer da política sua imediata realização, mas considerou que, em toda comunidade, os vivos não podem ficar condenados pelas decisões e erros dos mortos. Nesses termos, a democracia requer o atendimento das necessidades da comunidade, por isso, seria plenamente justificável aos vivos romperem os pré-compromissos firmados pelos mortos, porque ninguém deve ser condenado a viver os erros do passado.

As questões sobre auto-suficiência das gerações foram debatidas por Jefferson ao longo do processo da Convenção Constitucional na Filadélfia. Seguindo Paine, Jefferson argumentou que as leis devem servir aos vivos, assim como a terra serve. E, de forma bem enfática, concluiu seu argumento, dizendo que não há como atribuir direito aos mortos, pois

não passam decomposição de matéria que em outro momento dão forma aos corpos de outros animais, vegetais e minerais (HOLMES, 1988 p. 5).

Essa foi uma defesa do pressuposto de que uma geração não tem o direito de criar obrigações para as gerações seguintes. Estava em Paine, bem como em Jefferson, o argumento que considera onerosa para uma geração viver sob responsabilidades do passado, pois não há motivos que justifiquem que as decisões de uma geração possam comprometer outras. Não se concebe, na vida e na política, que a geração do presente esteja sujeita a reduzir sua liberdade, porque está pagando as dívidas contraídas por seus predecessores. Esse argumento é uma questão central do liberalismo moderno que sintetiza uma das premissas de Kant (2007).

Nesse sentido, a discussão sobre as justificativas para mudar as regras dependem de como os atores interpretam os contextos políticos que criaram as necessidades de constituir impedimentos às mudanças. No que concerne ao objeto de análise da pesquisa, a mudança da regra que proibia a reeleição dos cargos do Poder Executivo e, especialmente, do cargo presidencial, devemos atentar às justificativas dos atores sobre as necessidades de revogação das decisões dos seus predecessores que buscaram limitar o poder dos sucessores, ou seja, de evitar que estes buscassem a perpetuação nos cargos. Daí, vai sendo possível conduzir os questionamentos sobre pré-compromisso e restrições às ações dos atores políticos no processo democrático.

Por outro lado, a questão do pré-compromisso constitucional foi alardeada por Madison (2003), que considerou as regras como freios necessários para evitar usurpação do poder e manter as condições favoráveis à atividade política republicana. No sistema de separação de poderes, tanto o Presidente quanto o Parlamento, estão sujeitos às regras, pois mesmo que possam alterá-las só o fazem sob condições constitucionais determinadas. As emendas à Constituição tornam-se possíveis, porque são reguladas por regras que buscam resguardar o poder majoritário do Parlamento. Assim, a indicação para defesa do constitucionalismo advém, não somente da criação de obstáculos para emendar o texto constitucional, mas de determinadas atribuições dadas à Suprema Corte de Justiça para manter o controle de constitucionalidade. Sendo assim, a preservação da rigidez do texto constitucional vai sendo defendida como meio para manter intactos os mecanismos de freios e contrapesos existentes no sistema de separação de poderes. Desse modo, a dinâmica da arena legislativa vai sendo também mediada por um novo ator, o Poder Judiciário, que passa a ter poder de veto no processo legislativo (CARVALHO e PERES, 2008)

qualificadas favorece a tese em defesa da prevalência do constitucionalismo sobre a democracia. Para Elster os maiores obstáculos às emendas constitucionais são:

 A petrificação absoluta das leis;

 A adoção de uma maioria qualificada no Parlamento:

 A exigência de um quórum maior do que para uma legislação ordinária;

 Os atrasos (típicos de sistemas bicamerais);  A ratificação do Estado (em sistemas federais);  A ratificação por referendo (ELSTER, 2009:135)

Nesses casos, os desenhos constitucionais resguardam mais ou menos a proeza de garantir fidelidade à assembléia constituinte. Não obstante, as possibilidades para alteração das regras vão sendo dadas pelos próprios mecanismos democráticos constituídos no processo constituinte. Por outro lado, a rigidez da Constituição pressupõe que qualquer mudança só pode ser efetivada por um processo mais complexo que o processo legislativo ordinário. Por isso, é dita como uma forma de assegurar a estabilidade da opção eleita em Assembléia Constituinte (COMELLA, 2000). Assim, a mudança constitucional em desenhos rígidos pressupõe um processo complexo e requer a formação de maiorias qualificadas. Isso traduz esforço exaustivo para conduzir estrutura de oportunidades à formação da ação coletiva rumo à mudança.

Por sua vez, conforme o desenho constitucional brasileiro, qualquer mudança no texto requer um amplo entendimento no Congresso, cuja exigência requer maioria qualificada de 3/5 das Casas Legislativas em votações de dois turnos em cada Casa. Portanto, a quebra do pré-compromisso constitucional e restrições têm alto custo na arena decisória. Por isso, para revogar tais restrições, permitindo a reeleição do chefe do Executivo, os atores políticos tiveram que desconstruir as justificativas postas na Assembléia Constituinte que legitimaram os limites impostos aos Executivos. Sem dúvida, o modelo institucional existente no sistema político brasileiro, segundo a vertente do institucionalismo histórico, e é resultado de contextos do passado que justificaram tais impedimentos e restrições. Nesse sentido, o problema da presente pesquisa traz à tona algumas questões sobre os mecanismos democráticos que criam e revogam impedimentos constitucionais para conter ações dos governantes em sistemas presidencialistas. No caso da proibição da reeleição do mandato subsequente dos cargos do poder Executivo foi o pré-compromisso e a restrição que os constituintes assumiram na confecção dos desenhos constitucionais do Brasil em diversos momentos de democracia. A principal questão tratada, nesse sentido, é fazer valer a discussão de como os mecanismos da própria democracia, como as regras do jogo permitem a mudança e quais efeitos constituem para esse próprio processo democrático.

Conclusão

Apresentamos uma síntese das questões teóricas e metodológicas sobre mudança institucional e as interações entre os atores políticos. Nas vertentes do chamando neoinstitucionalismo chamamos atenção para a importância das instituições, mas enfatizamos as condições em que as regras são criadas e alteradas, considerando a articulação de interesses dos atores. Nesse sentido, a racionalidade e as estratégias em arenas de negociações ganham centralidade. Por fim, abordamos alguns pontos sobre os fundamentos democráticos da mudança constitucional, apresentando os principais dilemas da relação entre democracia e constitucionalismo. Para isso, trazemos à tona a discussão sobre racionalidade, pré- compromisso e restrições como fundamentos para interpretar a capacidade de articulação dos atores, para construir as regras do jogo político e as possibilidades de alteração em arenas decisórias.

Capitulo III

3. Emenda da reeleição e arena política: discussão e