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CAPÍTULO 1: uma Modernidade e seus fins últimos: como a tradição das Postrimerías se

1.4 Mudanças na percepção da Morte

Nosso objetivo inicial era entendermos como a Morte era pensada no contexto das séries das pinturas. No decorrer da pesquisa encontramos outras questões que julgamos mais necessárias para analisarmos as Postrimerías, como expusemos nos tópicos anteriores. Contudo apresentaremos uma pequena discussão sobre estudos clássicos que se dedicaram a entender a mentalidade em relação à morte no âmbito das pinturas selecionadas.

O destino fisiológico Morte pode ser considerado uma das únicas coisas universais entre os seres vivos. Mesmo seres que nem chegaram a se formar completamente em sua gestação morrem. O que faz com que esse acontecimento inevitável na vida de qualquer um de nós seja objeto de estudo da História é que, dependendo da época, sua localização geográfica ou extrato

40 MARTINEZ-GIL. Muerte y… p. 491

39 social, as pessoas morrem por causas diferentes, idades diferentes e encaram seu destino de maneiras múltiplas.

Temos na clássica obra de Johan Huizinga, O outono da Idade Média41, uma inovadora pesquisa para a época sobre a cultura Medieval tardia, abordando a construção das história das formas de vida e de pensamento presentes na Borgonha, na França e nos Países Baixos durante os séculos XIV e XV, a partir de fontes literárias e imagéticas dos referidos séculos. Huizinga encontra nas suas fontes elementos para caracterizar a época como mesquinha, cruel e miserável e por isso seus autores encontravam formas de expressar a sua resignação perante a Morte. Como não havia forma de fugir da Morte (ainda não há, por sinal), os homens buscavam artifícios para aceitá-la. Uma forma reconhecida por Huizinga foi a de mitigar as fronteiras entre o sentimento religioso e o erótico. Ele vê, contudo, a mescla do erótico com o religioso como irreverência blasfema para com o sagrado tornada possível graças às incoerências do espírito Medieval. Para o autor, apenas uma sociedade totalmente permeada pelo sentimento religioso, e que aceita a fé como algo óbvio, conhece todos esses excessos e degenerações. Sua abordagem sobre como a Morte é encarada nos séculos XIV e XV é decorrência de como a cultura da época entendia a vida.

Phillipe Ariés, um grande estudioso sobre as percepções das reações em relação a morte do século XII ao século XVIII, faz questão de marcar a distinção entre sua obra História da

Morte no Ocidente42 e a de Huizinga. Ariés, mesmo reconhecendo o trabalho de Huizinga como

pioneiro no esforço em reconhecer que a cultura é uma categoria de análise tão merecedora de atenção por parte dos historiadores para entender o passado como são os dados econômicos ou os documentos oficiais, critica o resultado da análise de Huizinga por reduzir a reação perante a Morte da sociedade da época que ele estudou como “dramática ou patética”43.

Além dessa crítica, Ariés também ressalta as diferenças metodológicas, tanto com a obra de Huizinga quanto com a obra de Alberto Tenenti Il Senso Della Morte E l'Amore Della Vita

Nel Rinascimento. Sobre a obra de Tenenti, que é contemporâneo do próprio Ariés, ele comenta

a grande contribuição do historiador italiano para o assunto. O historiador francês percebe em Tenenti dois caminhos para explicar a relação do homem renascentista com a Morte: ele percebe em seu contemporâneo italiano uma oposição entre um fim da Idade Média, no qual a vida terrena é considerada a antecâmara da eternidade, e um Renascimento no qual a Morte não é

41 HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo, SP: Cosac & Naify, 2010.

42 ARIÉS, Philippe. Historia de la muerte en occidente: desde la edade media hasta nuestros días. Barcelona:

Acantilado, 2011.

40 mais a prova que deve ser superada a todo custo. Por outro lado, também percebe a oposição entre o amor apaixonado do homem renascentista pelo mundo terreno e o sentimento amargo e desesperado de sua fragilidade, evidenciada pelos sinais da morte física.

Ariés encontra em Huizinga e Tenenti a elaboração de sistemas de pensamento em que os dados macabros estão localizados em seu tempo e conectados aos outros dados de seu tempo, a fim de obter uma melhor compreensão deles. O autor francês se diferencia dos autores referidos por ele pela sua metodologia, ele se dedica a reorganizar os dados macabros de outra forma. A série de Huizinga era síncrona. As de Ariés são diacrônicas, ou seja, são compostas por dados semelhantes aos macabros do século XVI, mas antes e após o outro. Seu objetivo é delinear uma história comparativa de temas macabros em uma perspectiva da longa duração, dos séculos XII a XVIII. Apesar de advertir que as questões macabras são usualmente remetidas ao século XV, mas ele utiliza um tempo maior de análise para identificar e interpretar vestígios do macabro na longa duração.

As sementes da História das Mentalidades lançadas por Phillipe Ariés e seus conterrâneos como Michel Vovelle e Pierre Chaunu foram bem cultivadas por Fernando Martinez-Gil e florescem no seu livro Muerte y sociedad en la España de los Austrias44.

Martinez-Gil aborda a morte como fenômeno social e, como tal, estruturada e pensável. Para isso, reúne, sistematiza e ordena toda uma série de informações derivadas de fontes múltiplas e heterogêneas (testamentos, registros paroquiais, artes da Boa Morte, sínodos, hagiografias, iconografia, literatura, etnologia) com a intenção de compreender e explicar a relação de diversos segmentos sociais com a Morte. Seu conhecimento exaustivo da produção bibliográfica relacionada ao assunto permite enriquecer sua análise com a aplicação escrupulosa do método comparativo, mostrando, ao mesmo tempo, certas semelhanças, a dificuldade de associar os esquemas de outros países europeus à realidade social espanhola. Todavia o autor consegue captar bem aspectos como medo ou angústia pelo pecado na Espanha dos Habsburgos para além de suas sensibilidades. A suposta irracionalidade de comportamentos que, em teoria, eram derivados do inconsciente coletivo ou imaginário tinha sua própria lógica histórica. Sua principal questão, tal qual a do nosso projeto, é como algo absolutamente biológico e natural se torna uma construção cultural? Sua conclusão é que a necessidade humana de explicar tudo o que não é controlado propicia o ser humano a recorrer ao domínio das forças superiores e, portanto, meta-históricas. É aqui que todo discurso religioso tem sua justificativa.

44 MARTINEZ-GIL, Fernando. Muerte y…

41 Com esse objetivo, Martínez Gil, diante da crença normalmente assumida de autonomia e imobilidade do mental, aborda o problema desde seu próprio processo de gênese e configuração até sua transformação gradual, com os marcos mais importantes a esse respeito. O resultado é um trabalho que não é restrito a periodização tradicional do que é academicamente chamado de Idade Moderna. Na sua obra o autor rompe com os cortes temporais e inicia sua análise nos séculos XIV e XV, altura em que é delineada uma série de características que culminariam nos séculos XVI e XVII, período estudado amiúde em sua análise.

O estudo de Fernando Martinez-Gil desenvolve não apenas o ambiente sociocultural, tão ligado a fatores econômicos e políticos, mas também a maneira de agir de instituições como a Igreja e sua relação com o poder. Imagens (esqueleto da Morte), espaços (Purgatório como ponto intermediário entre Céu e Inferno), objetos (cerimonialismo e ritualização) e sujeitos agentes (o padre como especialista em ajudar a morrer bem) se reúnem no novo paradigma na morte legitimada do Concílio de Trento, o maior expoente da colaboração entre a Monarquia e a Igreja contra um inimigo comum, a Reforma Protestante. É na configuração desse paradigma ao longo de quatro séculos que o autor captura sutilmente certos mecanismos de permanência e mudança.

Outro autor que se interessou, mesmo que brevemente, pelas relações entre uma sociedade europeia e a morte foi o historiador espanhol José Antonio Maravall. Em sua obra clássica A cultura do Barroco45 Maravall nos demonstra a relação estreita que a sociedade

barroca tinha com a Morte. Concentrando seus esforços em entender de que forma a cultura interage com o homem nesse período, focando na Espanha, o autor consegue nos dar algumas pistas do fascínio dessa sociedade pela Morte. Acostumados com a ideia de rapidez que as pinceladas dos seus contemporâneos costumavam desferir nas telas, a sensação do efêmero caminhou de mãos dadas com o gosto pelo macabro.

Destas características depreendem-se formas de lidar com o mundo, de acordo com Maravall, e estão estritamente baseadas nas fontes literárias e visuais. Das visuais, ele empresta as técnicas artísticas em voga na época para explicar a sociedade e confirma suas hipóteses sobre a sociedade na literatura. Para ele o século XVII era um lugar sombrio, melancólico, um lugar onde o chiaroescuro reinava por excelência. Dos temas dos livros e das pinturas, inferiu um gosto pela Morte desta sociedade.

45 MARAVALL, Jose Antonio. A cultura do barroco: análise de uma estrutura histórica. São Paulo, SP: Edusp;

42 Mesmo sabendo e indicando que o século XVII é o século de ouro, não há como fugir do sentimento de crise ao lermos o texto de Maravall. E, mesmo as inovações que essa época possam ter trazido, estas sempre remetiam a uma manutenção do poder, uma permanência do

status quo. Nesse sentido a análise de Maravall comunga as de Huizinga e Tenenti ao relacionar

o macabro com o sentimento de crise.

1.5 Modernidades, arcaísmos e anacronismos: uma breve apresentação sobre as pinturas