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Mudanças na vida das mulheres: “como é bom participar da vida”

Parte 1.2 A emergência do ativismo de mulheres

1.2.2 Mudanças na vida das mulheres: “como é bom participar da vida”

As transformações promovidas pelo movimento na vida das mulheres são notáveis, como indicam a conquista do direito à aposentadoria em 1992, e ao salário-maternidade em 1993, bem como a organização de muitos mutirões para que mulheres tirassem seus documentos, materializando, assim, a possibilidade de acesso a esses direitos.

Neste processo, ao menos em teoria, abra-se caminho para que as mulheres agricultoras acessem renda, o que potencialmente muda as relações de gênero dentro do ambiente doméstico, diminuindo a dependência das mulheres aos homens (e assim, diminuindo também a importância do nome da família em classificá-las no espaço público). Tolhe, portanto, a extensividade da autoridade masculina. Por outro, a conquista desses direitos oferece reconhecimento à identidade coletiva das mulheres: elas passam a ser, institucionalmente, mulheres agricultoras, ou seja, mulheres que trabalham e que portanto têm direitos trabalhistas.

Além dessas mudanças, as mulheres militantes, aquelas mais diretamente ligadas ao movimento, citam duas transformações que parecem também transformar suas vidas: as viagens e os estudos que o movimento permite que elas realizem. Nota-se aqui os impactos que o ativismo e a participação mais engajados no movimento social têm na vida das mulheres, para além das conquistas de direitos que impactam as mulheres camponesas de modo geral.

As viagens, conforme narrada pelas mulheres militantes entrevistadas, parece que vai tornando o mundo maior, vai fazendo com que elas conheçam outras experiências, outros modos de viver, e também que reflitam sobre sua própria vida. Márcia por exemplo fala muito de como as viagens sempre trazem aprendizado, em especial sobre o plantio, de modo que ela gosta de sempre levar e trazer plantas e sementes nas viagens. Cida conta ainda, durante o aniversário de 35 anos, como as viagens, a saída das mulheres do espaço doméstico e circulação pelo espaço público, passa a ser entendido como uma dimensão fundamental da vida:

Então ainda nesses dias teve uma companheira, nós preparando pros trinta e cinco anos, que disse assim “gente, faz cinco anos que eu to participando do movimento, e vocês sabem que quando eu fui convidada e me desafiei a sair de casa, eu saía de casa chorando”, ela falou, “porque eu sabia que na volta o meu marido ia me bombardear de questionamentos, e eu já sabia o que me esperava depois lá”. E daí uma segunda companheira disse assim, “você saía chorando, mas você saía, você ia”. E ainda hoje nós temos muitas mulheres, por isso que eu digo que nós temos muito a fazer ainda, temos muitas mulheres que ainda não tiveram, não se desafiaram a sair de casa. Ficam só fazendo comida, lavando roupa, cuidando da casa. O mundinho delas é só ali. Se vocês soubessem como é bom participar da vida. Na política, na sociedade, os encontros de formação, essas coisas. (Cida, relato cedido

durante aniversário de 35 anos do MMC-SC, em 24 de novembro de 2018)

Ou seja, é importante perceber como o ativismo muda o que significa viver para as mulheres engajadas. A circulação no espaço público amplia o conhecimento da vida. Ana conta, também durante o aniversário de 35 anos, sobre uma viagem internacional que fez representando o movimento:

E em 2004, eu tive a oportunidade de ir pra Índia, no Fórum Social Mundial. E tive que ir sozinha. Porque nós fomos em quinze do Brasil, mas eu fiquei na lista de espera, e na lista de espera quer dizer que as vagas estão cheias, e tu só vai se abrir um espaço. E eu tinha perdido dois anos antes uma viagem para o exterior por esse mesmo motivo. Aí o movimento viabilizou outra passagem para mim, outro roteiro, eu tive que ir pelo hemisfério norte, os outros foram pelo sul. E eu tive que ir dois dias antes sozinha, sem ninguém. Lá me fui eu. E deu tudo certo. Só que cheguei uma hora da madrugada do avião, tinha um cara me esperando que me levou pro carro, e nós fomos andando, andando. Aí, era de noite, de repente, nós não podíamos conversar, Brasil e Índia, porque ele não sabia inglês e eu também não, mas eu me salvei pelo alemão gramatical que é idêntico ao inglês, e fomos andando. De repente ele pega uma rua escura, estaciona o carro, e lá estava eu, no assento de trás, com a minha bolsa agarrada. Porque eu to num país diferente, eu não sei como são as leis, o que esse cara vai fazer. E ele era baixinho e magrinho, e eu pensei “se ele atacar, esse eu acho que eu dou conta (risos). Mas eu parto com tudo”. Lá ele mexeu debaixo do assento, tirou uma garrafa de água, bebeu água a vontade, guardou a garrafa, ligou o carro e seguimos viagem, sem falar uma palavra. Isso eu fui entender depois, porque na Índia as leis funcionam, nem beber água no volante, nada, volante é volante. Então ele não podia se explicar e eu não podia perguntar. Então isso são histórias que a gente passou no Movimento das Mulheres Camponesas e que fazem a gente crescer. Você vê em 91, lá com medo de tudo, em 2004, fui sozinha pra Índia. Então o movimento me deu essa coragem de a gente acreditar na gente, de a gente ocupar os espaços, de a gente fazer os nossos trabalhos (Ana, relato cedido durante aniversário de 35 anos do MMC-SC, em 24 de novembro de 2018).

Também, elas dizem bastante sobre o acesso à cursos e formações, possibilitados pelo movimento. Leonor, por exemplo, narra, sobre o primeiro curso que ela participou convidada pelo movimento, um curso sobre agricultura de base ecológica:

Eu levei tão a sério aquele curso, que um dia eu deixei o meu marido no hospital e fui no curso. Eu disse olha, você ta aqui eles te cuidam, eu vou pro curso. Eu comecei a levar a sério. E daí eu sempre foi assim, uma pessoa que gosta de carinho, eu fui me envolver numa família que tem um outro sistema, que ninguém dá carinho pra ninguém, que ninguém pega numa mão pra caminhar, você tem que caminhar sozinha, e isso me machucava muito. Aí de repente no encerramento daquele curso, eu vi um buquê de flor lá em Chapecó lá naquele, uma cesta com três buquês dentro, eu achei lindo. Era só eu de mais velha

que não tinha, que tinha só primeiro grau. O resto era jovem que tinha segundo grau, tinha técnicos agrícolas, tinha até uns agrônomos de Concórdia, tudo naquele grupo. Só que tudo cheio de fricotezinho né, só que eu tinha sede. E aí, quando chegou na hora da formatura, que a gente se formou, um menino, o rapaizinho mais novo do grupo, foi lá na frente, porque daí quem nunca tinha faltado e quem tinha feito tudo, ficava em primeiro lugar né. Mas jamais eu imaginei que ia vim pra mim, porque tinha agrônomo lá dentro, tinha gente estudada. De repente aquele menino começou a falar, e eu distraí assim e de repente tava falando de mim. Eu ganhei o primeiro buquê de flor da minha vida, lá dentro. Eu vim pra casa naquele ônibus faceira. Segurando, o primeiro buquê da minha vida. Meu deus. E por aí foi, onde teve curso, economia de mulheres, lá pra Porto Alegre, onde teve fui, eu nunca mais parei (Leonor, entrevista cedida em 24 de setembro de 2019). O acesso aos estudos, bem como a possibilidade de estabelecer relações sociais fora da esfera familiar, importa na vida das mulheres, pois também é um modo de desvincular-se da vida confinada no espaço doméstico, onde a autoridade masculina é muito forte. Joana também conta sobre como o movimento possibilitou que ela continuasse seus estudos - que, cabe lembrar, era uma vontade que ela tinha desde criança, e cujo acesso foi barrado pelo pai:

E hoje, se você for ver, muitas dessas mulheres entraram para o estudo formal né, que nós fomos, eu pessoalmente com o avanço das políticas públicas, eu fiz o provão do ENSEJA, e daí eu consegui meu diploma do ensino. Aí eu fui pro SEJA, fiz quatro matérias, fiz o ENEM, eliminei quatro matérias menos matemática, pelos conhecimentos adquiridos, ali pra mim foi uma prova disso, os conhecimentos gerais que eu fui construindo com a participação no movimento me proporcionaram que no ENEM pra mim eu fui super bem na redação, nos conhecimentos gerais, e eu só não eliminei matemática né. Mas daí eu fui, e ai, nesse sentido, aí eu volto e faço matemático e faço ENEM novamente e me inscrevo na Universidade Federal da Fronteira Sul, que foi uma universidade consolidada na nossa região com a luta dos movimentos sociais, centralmente, e eu sou chamada pro curso, aí mais uma vez dentro da minha condição de agricultora, eu tive que avaliar qual a possibilidade que eu teria. porque seu fosse pra universidade frequentar eu teria problemas, porque eu tinha problemas de saúde na família, porque eu precisava garantir a nossa unidade de produção junto com o meu companheiro, porque eu não queria deixar a militância no Movimento de Mulheres Camponesas, então eu queria continuar contribuindo na direção, que eu estava na direção nacional na época, então essa avaliação, aí eu busquei outra alternativa, não fiz a universidade federal, e fiz na Unopar, que eu ia para a aula todas as quartas-feiras, que foi outro sistema que não teve o mesmo conteúdo do que frequentar a universidade da fronteira sul, mas foi a possibilidade que eu tive, e aí eu tive a minha formação em pedagogia. Eu fiz a minha formatura com sessenta anos. Mas como eu, tem muitas outras que fizeram esse processo. Então pra mim participar do movimento, ele vai tornando as mulheres mais preparadas, mais com condições de se colocarem em todos os espaços da sociedade, seja no campo do movimento sindical, da política partidária, da universidade,

das escolas, enfim, eu acho que o movimento, participar do movimento tem muito isso né (Joana, entrevista cedida em 23 de abril de 2019). Em suma, o ativismo muda a vida das mulheres militantes. Não só através da conquista dos direitos, que impactam diversas esferas da vida, mas também ao permitir que elas circulem pelo mundo fora da classificação dada pela família, através da identidade de mulheres agriculturas. Com os conhecimentos adquiridos, elas participam do mundo de modo mais qualificado, como Joana evidencia, sem a constante tutela masculina.

É importante notar a centralidade que o movimento ganha na vida de muitas mulheres. Leonor e Maria contam, por exemplo, como elas vão deixando de participar das atividades da igreja para se dedicarem ao movimento de mulheres. Quando perguntei a Leonor, por exemplo, por que ela não havia participado da chapa do sindicato rural, ela me respondeu:

F: Mas já formou chapa, disputou eleição?

L: Não, isso não, já fui convidada, mas nunca entrei, porque eu já estou no movimento e priorizei o movimento né. Também não fui mais em igreja assim, ainda vou na igreja, mas não assumi mais nenhuma pastoral

F: Mas por que?

L: Porque daí com o movimento, eu comecei a ver por trás dos bastidores das igrejas. Deus me livre, não, quem sou eu pra ficar aqui nessa, nessa loucuragem. não me enrolo mais. Porque daí também não né, exploração tem limite. Explorar leigo aí não é comigo, me exploraram muito tempo mas agora não (Leonor, entrevista cedida em 24 de setembro de 2019).

Ou seja, as mulheres passam a identificar-se com o movimento a ponto de deixarem de participar de outros espaços, inclusive das atividades religiosas. Isso ajuda a explicar a permanência das atividades do movimento durante tanto tempo: parece que elas passam a dedicar o tempo antes destinado à igreja na atuação junto ao MMA.