Logo na primeira parte de seu livro, Azevedo Sampaio traz um longo relato de sua participação na tentativa de provar a condição de livre de um “mulato branco” chamado Benedicto João Manuel, preso na cadeia de Socorro como escravo “de um tal coronel Bueno, de Ouro Fino”, no ano de 1880. Ao longo da narrativa dos esforços empreendidos por ele e outros dois indivíduos que buscavam provar a condição daquele
homem livre que vivia como cativo, o farmacêutico denuncia as dificuldades de ser abolicionista em Jacareí. Sobre isso, diz: “Em Jacareí era até um crime professar doutrinas contrárias às dos senhores de escravos.”10 Nesse momento, desvia-se brevemente da história do “mulato branco” escravizado injustamente, e relata o que considera uma confissão indiscreta, e que talvez possa ser o registro das primeiras ações
de abolicionistas em Jacareí no início da década de 1880: o cônego José Bento de
Andrade, vigário da cidade, que conseguira a certidão de batismo para provar a
condição de livre do preso da cadeia de Socorro, teria sido “mais ou menos um LADRÃO DE ESCRAVOS”.11 Azevedo Sampaio conta-nos que diante do livro de assentos em que constava o batismo de Benedicto, prova material da sua condição de nascido livre, o vigário exultava: “- Está aqui! Exatamente! dizia ele – filho de João Manuel da Rocha! livre e de ventre livre nascido!...”. E complementa: “É fácil de
10 Sampaio, Abolicionismo..., p. 17.
compreender a minha transformação para fazer coro com o meu velho amigo, que diga- se a verdade, sempre teve o NEGRO PECADO DE SER ABOLICIONISTA.”12
Este homem que escreve sobre os perigos de ser abolicionista em Jacareí,
referindo-se ao início da década de 1880, o faz do alto da década. Seu livro, conforme já
dito, foi publicado em 1890, e como podemos constatar no trecho abaixo, quando de sua
publicação, seu autor já não vivia mais na cidade:
“... por ali deixei correr, descuidados, os meus melhores dias de moço. Amei aquela terra sinceramente, como ainda venero muitas cousas que lá existem. Nela constituí família. Não me arrependi ainda um só momento de lhe haver consagrado todo o esforço de minha atividade, e se não pude ser útil a todas as aspirações de seus membros, tenho consciência de que não fui de todos os forasteiros que por lá passaram o que menos curou de seus males e o que mais cuidou de a explorar em seu favor.”13
Azevedo Sampaio ficou sabendo do caso do “mulato branco” preso como escravo na cadeia de Socorro através de seu amigo Wenceslau Guimarães, que naquela
cidade vivia. De acordo com este último, que vivera em Jacareí na década de 1850, o
caso da venda dos mulatinhos livres como escravos, entre os quais estaria aquele por
quem reclamavam a condição de livre chamado Benedicto João Manuel, era um fato
público, conhecido por todos da cidade. Refletindo sobre o estado em que se encontrava
a Justiça no município para permitir tal situação, Azevedo Sampaio traça um paralelo
entre a época daquele crime e a década que se encerrava então (1880):
12 Sampaio, Abolicionismo..., p. 17. Grifo do autor.
13 Sampaio, Abolicionismo..., p. 19. Com uma descrição de Azevedo Sampaio, Benedicto Sérgio Lencioni
inicia um capítulo intitulado “Abolicionistas”, em seu livro “O negro na história de Jacareí”: “Uma alma lusitana. Nasceu em Caldas de Vizela, em 13 de agosto de 1839 e chegou em 1854 ao Rio de Janeiro. Em 1868, com 29 anos de idade, passou a morar em Jacareí. Uma mentalidade européia. Era um homem culto que se desenvolveu entre os livros, “estudando e investigando”. Um interesse incomum pela terra que adotou, o que se explica pela sua formação, o seu gosto pelo estudo, tendo escrito vários livros, entre os quais uma monografia sobre Jacareí e outra sobre São José dos Campos. Um espírito sagaz. Percebeu as injustiças da escravidão e, com sua formação liberal e republicana, tornou-se um líder do movimento entre nós, embora não declare em nenhum momento esta postura.” LENCIONI, Benedicto Sérgio. O
“Onde estava – me dirão – a justiça de Jacareí relativa à civilização de 1852 e anos subseqüentes com referência ao crime ou crimes notórios de Benedicto João Manoel?
A justiça de Jacareí de 1852 achava-se no mesmo posto, influenciada pelo mesmo meio social da justiça de 1880, que ficou surda, sendo cega de origem, ante o fato público da denúncia documentada do hediondo crime.”14
E sobre esse meio social que contaminava a ação da Justiça, apontava:
“Jacareí, como é sabido, foi um centro de movimento desse negregado bando de traficantes que tanto tempo demorou os progressos do país, que tanto concorreu para a inveteração dos vícios que o corroem no presente de maneira tão sensível.”15
Expiando o cenário que nos pintou o farmacêutico, não seria difícil compreender
seu posicionamento adotado no passado, ou a falta dele, como tenta convencer aos
leitores de seu livro, em relação ao ato de expulsão dos abolicionistas em 1883. Mesmo
sem explicitar o quanto se comprometera com os agentes da expulsão, o Azevedo
Sampaio do fim da década de 1880 reconhece aquele acontecimento como um dos
marcos na história do abolicionismo da cidade, a ponto de não omiti-lo na linha do
tempo que constrói do movimento em Jacareí, e busca atribuir sua presença junto à
multidão contrária àqueles que lutavam pela causa da liberdade dos escravos, a uma
obra do acaso, por ter se visto enrolado no número dos operários daquela ação. Essa
percepção parece ter sido construída pelo mesmo somente a partir de sua adesão ao
abolicionismo no ano de 1887, e demonstra uma mudança de seu olhar a respeito dos
operários daquela ação, ou seja, os escravocratas e a elite local. Era uma mancha no seu
passado abolicionista, e já que impossível apagá-la, a estratégia utilizada pelo
farmacêutico foi diminuir seu envolvimento em tal ato.
14 Sampaio, Abolicionismo..., p. 20.
No entanto, numa motivação extremamente pessoal, talvez encontremos uma
possível explicação para ter se tornado o farmacêutico signatário do abaixo-assinado da
ação contrária aos abolicionistas de 1883. No ano de 1887, com a instauração de um
processo em que integrantes do Clube Abolicionista são acusados de sedição, Azevedo
Sampaio acusa a primeira testemunha, o médico e fazendeiro Dr. Joaquim Ribeiro de
Mendonça, de ter uma motivação particular para depor contra ele no inquérito: tal
testemunha, juntamente com o irmão, era proprietária de uma farmácia na cidade,
portanto, concorrente do farmacêutico agora abolicionista.16 Ou seja, acusa a testemunha de fazer de seu depoimento uma vingança. Esta atitude, que pode ser
percebida como normal vinda de alguém que, na condição de acusado, precisa
desqualificar o depoimento de uma testemunha que não lhe é favorável, coloca-nos
diante de uma lógica, ao que parece, plausível para o farmacêutico, e isso nos suscita
um questionamento: teria Azevedo Sampaio se utilizado do mesmo artifício para se
colocar ao lado de escravocratas no ato de expulsão de 1883? Explico por quê.
Num depoimento tomado no inquérito instaurado para averiguar em que
condições se dera aquele ato de expulsão dos abolicionistas de 1883, o farmacêutico
João Macário de Paula Martins declarou que o advogado expulso, Antonio Henrique da
Fonseca, defendia seus interesses numa ação que movia contra o farmacêutico Antonio
Gomes de Azevedo Sampaio por causa do funcionamento ilegal de uma farmácia deste.
Assim, reforçamos a dúvida acima exposta: teria usado este último, naquela ocasião de
1883, a mesma lógica de que acusava em 1887 aquele médico e fazendeiro que
depusera contra ele no processo de sedição, qual seja, utilizar uma motivação particular
16 APHJ – Fundo Fórum - Ano de 1887 – Caixa 96 – Sumário de Culpa – Sedição – Autora: A Justiça por
seu promotor; Réus: Antonio Gomes de Azevedo Sampaio, Pedro Mercadante, Benedicto Manoel Pinto Ribeiro e outros em número de 25; Depoimento da 1ª testemunha, Dr. Joaquim Ribeiro de Mendonça, (folha 12 verso à 15 frente); Auto de interrogatório a Antonio Gomes de Azevedo Sampaio (folha 26 frente a 27 verso).
para se vingar de alguém, fora do contexto em que acontecia o embate direto dos
interesses particulares dos envolvidos?
Se adotarmos, como transparece querer Azevedo Sampaio, a crença de que era este farmacêutico um “abolicionista de primeira água”, colocam-se diante de nós, a partir dos caminhos que percorremos na trajetória do farmacêutico, duas hipóteses para
explicar sua adesão ao lado dos escravocratas no ato de expulsão de 1883: seu temor e
submissão aos desígnios dos escravocratas, ou a concretização de uma vingança pessoal
contra o advogado abolicionista responsável por uma ação que atentava contra seus
interesses pessoais.
Não precisamos proceder uma análise psicológica das nuances de Azevedo
Sampaio ao longo da década de 1880 para redimi-lo. Ele mesmo parece, a seu modo,
fazer essa busca ao aderir ao movimento de libertação dos escravos naquele agosto de
1887, fundando o Clube Abolicionista, e ao recontar sua própria trajetória de simpatia à
causa dos escravos desde o início da década de 1880.