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2. O ESTADO BRASILEIRO E A CRIMINALIDADE FEMININA

2.2 Penitenciárias femininas: reflexo do despreparo do Estado

2.2.1 A mulher criminosa e a tutela da Igreja

A partir de uma análise crítica acerca da criação dos presídios femininos, resta claro que tais instituições tinham funções e natureza distintas dos demais presídios da época, sendo uma forma de adaptação à característica prisional-penal. Os estabelecimentos criados para a reclusão das mulheres – prisões e casas de correção – seguiam o padrão das casas-convento:

As detentas eram tratadas como se fossem irmãs desgarradas que necessitavam não de um castigo severo, mas de um cuidado amoroso e bons exemplos. A oração e os afazeres domésticos eram considerados fundamentais no processo de recuperação das delinquentes. As detentas eram obrigadas a trabalhar em tarefas “próprias” de seu sexo (costurar, lavar, cozinhar) e, quando se considerava apropriado, levavam-nas para trabalhar como empregadas domésticas nas casas de famílias decentes, com a finalidade de completar sua “recuperação” sob a supervisão dos patrões […] Na década de 1920, pouco a pouco, o Estado passaria a exercer uma maior autoridade sobre as mulheres presas, mas, ainda assim, em algumas ocasiões, as prisões femininas foram postas sob a administração de ordens religiosas. A discussão sobre a quem estas

criminosas pertencem continuaria até boa parte do século XX (AGUIRRE, 2009, p. 51).

As primeiras casas de correção e detenção tinham como mote axial a busca pela salvação a partir do resgate da feminilidade e da moral, que seria alcançado com a inserção das mulheres em trabalhos e atividades tidas como femininas. Neste sentido, a criminalidade feminina era vista como um desvio do papel socialmente destinado à mulher, vista como naturalmente passiva e dócil – principalmente devido ao controle social exercido sobre ela.

As prisões de mulheres abrigavam condenadas, que deveriam, durante o tempo de sua estadia, sublimar desejos “tipicamente femininos” e se dedicar à cura da alma, ao trabalho e ao aprendizado de tarefas domésticas, sendo às freiras designada a vigilância constante da sexualidade e moral das detentas, com o objetivo de assim transformarem-nas em mulheres discretas, honestas, recatadas e piedosas, aptas para retornar a convivência social (FRANCO, 2015). Uma marcante característica dessas instituições é o fato da vigilância das presas ser responsabilidade das freiras da Congregação do Bom Pastor d'Anger, fato que teve total aval do governo que se absteve da responsabilidade de construir e administrar as instituições de correção para mulheres, sem que houvesse, se quer, a presença de agentes penitenciários ou policiais (ARTUR, 2011). O “Patronato das Freiras”, já citado anteriormente, era formado por senhoras religiosas de famílias importantes que atuavam como “carcereiras”, em busca de ambientes mais dignos e propícios para serem adaptados aos presídios femininos.

[...] a primeira penitenciária de mulheres ficou sob a administração da Congregação de Nossa Senhora do Bom Pastor d'Angeles e deveria funcionar com uma espécie de Internato Convento, onde as mulheres pudessem recuperar, através da religião e dos bons costumes, a possibilidade de viver em sociedade e incorporar os "ideais femininos" que foram usurpados pelo crime. Essa administração perdurou até 1955, quando o formato da penitenciária foi revisto e incorporados padrões de política criminal (FARIA, 2010, p. 08).

Esta administração concentrada nas mãos de freiras denuncia o real objetivo dessas instituições: “realizar um adestramento nestas mulheres, transformando-as em seres dóceis e bem comportadas, que, ao sair da prisão, pudessem desempenhar a função de uma boa esposa e mãe ou se dedicar à vida religiosa” (HELPES, 2011). Compreende-se, mais uma vez, que a natureza da custódia à qual as mulheres eram

submetidas tinha mais o caráter de domesticação do que de reclusão ou ressocialização. Neste sentido, Helpes (2013) afirma:

[…] de acordo com o entendimento do Estado Brasileiro naquele período, o problema das mulheres criminosas era, antes de ser uma questão social, que deve ser resolvida pelo Estado, era, na verdade, uma questão religiosa, uma catequização que, se não fora realizada em liberdade, seria na prisão (HELPES, 2013).

A partir daí, é fácil perceber a linha tênue que separava Igreja e Estado e a forma com que este último lidava com a criminalidade feminina: ainda em conformidade com as teorias baseadas no determinismo biológico, que entende o crime como algo não natural da mulher. “Assim, a medida que deve ser adotada é fazê-la voltar a ser mulher, e ninguém em melhores condições para cumprir esta tarefa, na época, do que a Igreja Católica” (HELPES, 2011). Vale um comparativo no sentido de que, nos casos das penitenciárias masculinas, a administração já era responsabilidade do órgão estatal, enquanto que nas prisões femininas, tal atribuição era passada para as mãos de religiosas.

Gradativamente, a tutela das mulheres presas foi se tornando responsabilidade do Estado que, mesmo depois de décadas observando o aumento das taxas de delinquência das mulheres, se encontrava despreparado para tratar a criminalidade feminina. No caso do Distrito Federal, por exemplo, só em 1955 a administração da penitenciária perde a protagonização das freiras e dá lugar a administração pela direção da Penitenciária Central do Distrito Federal.

A tutela da criminalidade feminina pelo Estado é um tema recente, que se desenvolveu a medida em que tornaram-se menos raros os eventos delinquentes protagonizados por mulheres. Percebe-se que, mesmo o Estado Brasileiro do início do século XX já constituir um país independente que buscava consolidar sua República há quase 40 anos, ele ainda tratava a segurança pública da nação de forma “assistencialista e filantrópica”, mostrando o quanto o Brasil da República Velha estava longe de ser um Estado Nacional Moderno (HELPES, 2011).

E ainda, atualmente, com o crescente número de mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade, o Estado não prioriza a readequação do sistema e não investe em recursos que permitam o cumprimento de penas em condições favoráveis para as mulheres afim de perfazer a sensação de que elas não integram o mundo do crime e de que são meros anexos da infinidade de presidiários masculinos.