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A mulher e a sua ligação à natureza

1. A mulher e o erotismo na ficção narrativa realista-naturalista portuguesa

1.4. A mulher e a sua ligação à natureza

A conceção tradicional do papel da mulher, vista especialmente como esposa e mãe, foi abalada na sociedade e na literatura da segunda metade do século XIX, pois novos valores emergiram que forçaram a sua evolução. Na literatura realista e naturalista, a mulher encontrava-se então associada ao erotismo, ao adultério, ao incesto e ao histerismo, afastando-se, assim, progressivamente, da imagem de mulher anjo ou de mulher burguesa repleta de virtudes dos românticos. No entanto, a tragédia a que esta mulher foi votada na literatura é reveladora da resistência à superação da sua condição subalterna.

Inserida numa sociedade mesquinha e hipócrita, a mulher não pode ser autêntica e ter um fim feliz ao lado do homem que ela ama. Ora, associando-se à natureza, a sua autenticidade emerge e ela liberta-se do jugo do homem e da sociedade. A sua sensibilidade permite que ela se ligue à natureza e a tudo o que esta simboliza. Em contrapartida, o homem, pela sua racionalidade, consegue interagir espontaneamente com o grupo social em que se encontra.

Poderíamos debruçar-nos sobre inúmeras obras, no entanto, selecionámos algumas para melhor ilustrar a proximidade da mulher à natureza. Textos como o conto “O Cerro”, de Abel Botelho, publicado no volume Mulheres da Beira, em março de 1896, e A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, de 1901, evidenciam o papel da

28 natureza, aludindo aos cheiros circundantes que, por sua vez, funcionam como uma acendalha à sensualidade recôndita das personagens femininas.

Pela voz do narrador, a personagem feminina Teresa, em “O Cerro”, mostra- nos, em primeiro lugar, uma mulher frágil, que se vai transformando num ser com desejos. O cheiro dos corpos dos homens que trabalham o vinho e as suas pernas nuas despertam sensações até então adormecidas:

Todo o seu pequeno ser, nervoso e fino, vibrava de desejos, fervia de comoção. Com um grande espanto apavorado, sentia ela agora a cada momento, sem saber porquê, tomá-la um mole deliquescer dos nervos. Irresistivelmente, as grossas pernas nuas, a escorrerem vinho, dos homens que ao meio-dia saíam do lagar, fizeram-na tremer escandecida… Acordava nela imperiosamente a fêmea. A sua alma puríssima e amantíssima baixava ao esterquilínio das provações bestiais. Era uma ignomínia com asas, um ditirambo no Céu. (Botelho, 1979: 449)

No livro A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, a personagem Joaninha simboliza um ideal de vida pacata e plena, pois vive nos ares saudáveis das serras portuguesas. Assim, Joaninha é a imagem da mulher sensualmente simples, resultando a sua sensualidade da sua inocência, da sua naturalidade e da sua espontaneidade. É a mulher ideal para ser mãe, é a mulher-anjo, com pele branca, cabelos louros e olhos escuros.

Uma outra personagem, Ana Vaqueira, encontra-se associada a uma natureza mais agreste e, por isso, possui uma sensualidade mais complexa, que despoleta sensações mais fortes e contraditórias:

- Oh Jacinto, eu daqui a um instante também quero água! E se compete a esta rapariga trazer as coisas, eu, de cinco em cinco minutos, quero uma coisa!... Que olhos, que corpo…Caramba, menino! Eis a poesia, toda viva, da serra…

O meu Príncipe sorria, com sinceridade:

- Não! Não nos iludamos, Zé Fernandes, nem façamos Arcádia. É uma bela moça, mas uma bruta… Não há ali mais poesia, nem mais sensibilidade, nem mesmo mais beleza do que numa linda vaca turina. Merece o seu nome de Ana Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para isso a fez a Natureza, assim sã e rija; e ela cumpre. O marido todavia não parece

29 contente, porque a desanca. Também é um belo bruto… Não, meu filho, a serra é maravilhosa e muito grato lhe estou… Mas temos aqui a fêmea em toda a sua animalidade e o macho em todo o seu egoísmo… São porém verdadeiros, genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé Fernandes, é para mim um repouso. (Queirós, (1920?): 157-158)

No conto, “No Moinho”, Eça estabelece uma relação entre a natureza e o espaço, fazendo alusão à personagem principal Maria da Piedade:

A mesma paisagem que ela via da janela era tão monótona como a sua vida: em baixo a estrada, depois uma ondulação de campos, uma terra magra plantada aqui e além de oliveiras e, erguendo-se ao fundo, uma colina triste e nua, sem uma casa, uma árvore, um fumo de casal que pusesse naquela solidão de terreno pobre uma nota humana e viva. (Queirós, s.d.: 56)

A natureza surge-nos em sintonia com o estado físico e psicológico desta personagem feminina:

À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na dum desejo intenso, duma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro…

A santa tornara-se Vénus. (ibid.: 68 e 69)

A lembrança de Adrião suscita sensações múltiplas em Maria da Piedade, e a natureza parece unir-se a toda esta voluptuosidade e querer ajudar a atiçar o desejo. A atmosfera, propícia ao torpor, à letargia, envolve a alma e o corpo da personagem e esta está, pois, prestes a entregar-se:

O silêncio dos campos em redor isolava-os – e, insensivelmente, ele começou a falar-lhe baixo.

Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se achar ali tão só com aquele homem tão robusto, toda receosa e achando um sabor delicioso ao seu recheio. (ibid.: 63)

E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços e beijou sobre os lábios, de um só beijo profundo e indeterminável. (ibid.: 64-65)

30 A natureza parece querer associar-se ao momento, ajudar à união. Maria da Piedade sai das trevas onde se encontra com o seu marido, para encontrar o paraíso junto de Adrião. No moinho, entrega-se, então, ao prazer10:

Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já arrebatá-la para o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela ideia, pintava-lhe na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura: de manhã, a pé cedo, para o trabalho; depois do jantar na relva à beira de água; e à noite as boas palestras ali sentados, à claridade das estrelas ou sob a sombra cálida dos céus negros de Verão… (ibid.: 64)

Enquanto a mulher é femme fragile e santa, a natureza mantém-se serena, mas, ao primeiro prenúncio de erotismo e sensualidade, a natureza muda e parece querer participar no enleio e na transformação em femme fatale.