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3.2 MULHER: O SUJEITO FEMININO DE MEIA-IDADE NO COTIDIANO DA

3.2.1 Mulher-mãe: o exercício da maternidade em movimento

Frequentemente, as falas e atitudes das alunas pesquisadas evidenciavam a condição de mãe, exercida, muitas vezes, com a ausência da figura paterna. Mesmo as mulheres que residiam com seus maridos desempenhavam, prioritariamente, a função de cuidar dos filhos.

Hoje, ao chegar, identifiquei nas falas uma solidariedade para com a professora, seu bebê estivera doente a noite inteira e ela teve de levá-lo para a academia. Todas as mulheres que estavam na musculação comentaram que ela teria apoio, caso quisesse ir para casa com o bebê... “Minha gente, homem não casa, quem casa é a mulher, mulher que fica na pia, lava, passa, cuida da casa, dos filhos, já o homem continua com a vida de solteiro e só assina um papel.” (Diário de campo, 17.05.13).

O exercício da maternidade foi motivo de ausência e até de desistência de alunas na academia. Em uma das minhas idas à academia no período da tarde, vi uma mulher que levou seu filho para ficar no local enquanto ela fazia os exercícios, inclusive no período de férias escolares. A professora ressaltou que ocorre uma evasão porque as alunas não têm com quem deixar seus filhos. Com relação a esse problema, é interessante enfatizar que o projeto da professora é organizar um espaço na sala de aeróbica apropriado para crianças, para as mães poderem trazer os filhos e assim não deixarem de ir à academia, o que colabora para fortalecer a imagem dessa academia específica como um “espaço de mulheres e para mulheres”.

É importante salientar que a própria professora é mãe de dois filhos (uma menina e um menino), e desdobra-se para exercer a profissão e cuidar do lar:

Hoje fiz aula de GAP, e chamou-me atenção o desabafo da professora durante os exercícios. Ela não pôde acompanhar a festa do Dia das Mães na escola do seu filho pequeno, pois tinha que dar aula, assumiu o compromisso com o trabalho, e chorou durante a aula! Falou que estava com o coração partido, explicou que a festa foi surpresa, ela não teve como se programar, e, entre lágrimas, continuou a aula... (Diário de campo, 14.05.13).

No grupo de mulheres acompanhado por mim, a aluna Nilma acabou saindo da academia exatamente quando as crianças entraram em férias, para poder cuidar de suas duas crianças. Ela referiu também a impossibilidade de participar da confraternização, caso esta fosse realizada na casa de praia de Tati, porque não tinha com quem deixar os filhos, além do que o marido também não teria permitido.

Durante a aula o telefone de Nilma tocou, ela atendeu e era da escola dos filhos, a professora falou que seu filho mais novo estava com febre e seria melhor que ela fosse buscá-lo. Como Tati estava de carro, ela se prontificou em levar Nilma até a escola, elas saíram às pressas (Diário de campo, 18.11.13).

Scavone (2001, p.49) aponta a consolidação histórica de “uma ideologia que passou a exaltar o papel ‘natural’ da mulher como mãe, atribuindo-lhe todos os deveres e obrigações na criação do(a)s filho(a)s e limitando a função social feminina à realização da maternidade”,

acrescenta ainda que recai sobre as mulheres “a maioria das responsabilidades parentais” (Scavone, 2001, p. 49).

No contexto da academia de ginástica feminina é possível afirmar que a maternidade e a domesticidade também são elementos de prestígio social. Como afirma Del Priore (1993, p.26 apud Desouza, Baldwin, Rosa, 2000, p.490) são forças sociais que “contribuíram para o longo processo de domesticação da mulher no sentido de torná-la responsável pela casa, a família, o casamento e a procriação, na figura da santa-mãezinha. Virgem Maria provedora, piedosa, dedicada e assexuada”.

Outro aspecto característico desse modelo de maternidade é a “escolha reflexiva”, que envolve a decisão de ser mãe. Por vezes, a função da maternidade entrava em pauta na academia, quanto ao dilema de ser ou não mãe nos dias atuais, naquele grupo da turma das 8, eu e Helena éramos as únicas mulheres que não cumpríamos esse papel. Para Helena, o ideal de felicidade não depende da necessidade de ter um filho, porém o papel dela como mãe sempre foi citado nas falas, graças ao fato de ela ter sido professora de inúmeras crianças e tia de muitos sobrinhos, dessa maneira, tanto ela como o grupo legitimavam o seu papel de cuidadora para preencher a validada condição de mãe, o que reforça a importância dada ao modelo mulher/mãe na academia de ginástica:

Novamente conversamos sobre ter ou não filhos: Helena afirmou ser feliz e realizada, apesar de não ter casado e não ter tido filhos: “Depois de aposentada, encontrei ‘meu véi’ e estou muito bem com ele. Sempre convivi com crianças, fui professora e tenho muitos sobrinhos, não senti falta de ter sido mãe” (Diário de campo, 29.10.13).

Elisabeth Badinter, na obra Um amor conquistado: o mito do amor materno, nos mostra que “o amor materno não constitui um sentimento inerente à condição de mulher, não é um determinismo, mas algo que se adquire, resultado de uma construção cultural” (BADINTER, 1985, p. 2). Nesse sentido, é interessante refletir o processo histórico que envolve a mulher na sociedade ocidental. O sociólogo Pierre Bourdieu (2011, p.116) traz significativas contribuições ao resgatar que “as mulheres ficaram durante muito tempo confinadas ao universo doméstico e às atividades associadas à reprodução biológica e social da descendência; atividades (principalmente maternas)”. Para o autor, o trabalho doméstico tem por propósito:

[...] manter a solidariedade e a integração da família, sustentando relações de parentesco e todo o capital social com a organização de toda uma série de atividades sociais ordinárias, como as refeições [...] ou extraordinárias, como as cerimônias e as festas destinadas a celebrar ritualmente os laços de parentesco e a assegurar a manutenção das relações sociais e da projeção social da família, ou as trocas de

presentes, de visitas, de cartas ou de cartões postais e telefonemas (BOURDIEU, 2011, p. 116).

O autor ainda ressalta o papel estratégico da mulher como mantenedora da unidade familiar, que, ao assumir uma gama de responsabilidades, sustenta o fardo da falta de uma retribuição financeira ao trabalho doméstico14, o que acaba provocando “uma desvalorização perante a sociedade” em relação às mulheres com seu tempo de dedicação “dado sem contrapartida, e sem limites, primeiro aos membros da família, e sobretudo às crianças” (2011, p.117). O autor indica que são as mulheres “que assumem o cuidado e a preocupação com a decoração na vida quotidiana, da casa e de sua decoração interior, e são também socialmente levadas a tratar de si próprias como objetos estéticos [...], à gestão da imagem pública e das aparências” (2011, p.119).Desta forma é que se perpetua a divisão sexualizante da estrutura social, que leva à separação dos papéis sociais em coisa de homem e coisa de mulher:

[...] e cabe ao homem, nesse contexto, o papel produtor; à mulher, é reservado o papel reprodutor. O trabalho doméstico, apesar de constituir uma das formas de trabalho social, passa a ser considerado como não-trabalho e a mulher, como dona de casa. O espaço público, dominado pelos homens, é vedado às mulheres, confinando-as a uma marginalidade social e a um mundo subalterno (PEREIRA, 2012, p. 36).

Scavone (2011, p.137) aponta o final dos anos 1960 aos meados da década de 1980 como sendo um período em que entra em efervescência o debate feminista sobre a condição da mulher na sociedade, e, simultaneamente com a discussão desses ideais, se configuraram “as grandes mudanças ocorridas nas sociedades ocidentais pós-segunda guerra: aceleração da industrialização e da urbanização, inserção crescente das mulheres no mercado de trabalho, controle da fecundidade (sobretudo a pílula contraceptiva).”

Frente às circunstâncias, ocorrem mudanças no padrão da maternidade, o que inclui a possibilidade de a mulher realizar uma “escolha mais reflexiva da maternidade” (2011, p.53), sendo que tal escolha está diretamente associada às condições sociais, econômicas e culturais de cada mulher. Nesse contexto, Scavone salienta que “a maternidade como escolha é um fenômeno moderno e contemporâneo que foi se consolidando no decorrer do século XX e a crítica feminista tem um lugar importante nesta reflexão”, todavia, a autora afirma que, na

14 “Em setembro/2011 entrou em vigor a Lei 12.470/2011 que possibilitou à dona de casa, de baixa renda,

contribuir com a Previdência Social e garantir os principais benefícios previdenciários como aposentadoria por idade, por invalidez, auxílio-doença, pensão por morte, salário-maternidade e auxílio-reclusão, exceto a aposentadoria por tempo de contribuição.

prática, “a maternidade continua sendo afirmada como um elemento muito forte da cultura e identidade feminina pela sua ligação com o corpo e com a natureza” (2011, p.56). Exatamente como se constatou no espaço da academia, as mulheres na meia idade reforçam a ideologia da maternidade, destacando-se o lugar paradoxal ocupado por Helena, que, apesar de ter seu lugar de destaque no grupo, de acordo com a avaliação que o grupo faz dela, no fundo tem na maternidade uma justificativa para uma lacuna que faltou ser preenchida.

É importante frisar ainda a forte influência da religiosidade na determinação dos valores reproduzidos pelas mulheres na academia de ginástica, que para além da maternidade, interfere em toda a percepção de mundo desses sujeitos, perpetuando o ideal feminino dentro da lógica do marianismo. Assim, no próximo tópico, discutirei a incorporação desses valores no modo de vida cotidiano.

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