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Capítulo 2 Prostituição e a mulher negra: sexualidade sem entraves?

2.4 Mulher negra e a “hipersexualização” dos corpos

A discussão em torno das representações da mulher negra tem ganhado fôlego tanto na academia quanto nos movimentos feministas negros (STOLCKE, 2004), reconhecer que a subjetividade está diretamente associada à iconografia que fazem dos corpos das mulheres negras é compreender uma das dimensões do racismo, talvez uma das mais perversas (hooks,1995). Vilipendiada em sua humanidade, a mulher negra se encontra inserida numa

51 Texto original:”This substitution of a part for the whole, of a thing – an object, an organ, a portion of the body

lógica racista sofrendo igualmente com a opressão de raça e de gênero, é difícil, quase uma impossibilidade encontrar referenciais que positivem sua imagem. Segundo hooks (1995),

O sexismo e o racismo, atuando juntos perpetuam uma iconografia de representação da negra que imprime na consciência cultural coletiva a ideia de que ela está nesse planeta principalmente pra servir aos outros. Desde a escravidão até hoje, o corpo da negra tem sido visto pelos ocidentais como o símbolo quintessencial de uma presença feminina „natural‟, orgânica, mais próxima da natureza, animalística e primitiva (hooks, 1995, p. 468).

Essas associações destinadas as mulheres negras acabam por naturalizá-las a alguns espaços na sociedade e será por intermédio dos meios de comunicação de massa contemporâneos que o racismo e sexismo serão alimentos e consumidos. Segundo Wenceslau e Mendonça (2006)

Se partirmos do entendimento de que nos meios de comunicação de massa não apenas repassam as representações sociais sedimentadas no imaginário social, mas também instituem como agentes que operam, constroem e reconstroem no interior de sua lógica de produção os sistemas de representações, levamos em conta que eles ocupam posição central na cristalização de imagens e sentidos sobre a mulher negra (WENCESLAU e MENDONÇA, 2006, p. 1).

A representação, que não é apenas estética, mas moral (GILLIAN e GILLIAN, 1995; HAUDENSCHILD, 2011) da mulher negra reduzida a um corpo sem mente (hooks, 1995) é enredo recorrente em canções, obras literárias, novelas, etc. Joel Zito (2000, p. 78) ao analisar a historiografia televisiva brasileira vai perceber que os espaços designados as mulheres negras são sempre os mesmos, para o autor essa constância nas representações é uma “atualização dos estereótipos criados pelos romance folhetinescos do período escravocrata”

Uma das máximas da democracia racial foi a criação de um símbolo que pudesse, segundo Schwarcz (2012, p. 68) “promover um precário equilíbrio, em que as diferenças conviveriam intensa e ambiguamente”, além de ser o ícone nacional “tipo exportação” de beleza seria a representação da harmonia entre as raças, surge então a mulata (GONZALES, 1984; CORRÊA, 1996; MUNANGA, 2008). Esse ideal de mulher negra que assume sua „mulatice‟ é representa pelos predicados que enaltecem sua cor, corpo e gingado, a mais perfeita tradução do Brasil que vive em harmonia com suas raças. A „mulata‟52 é composta de

52Munanga (2008, p. 20) explica “O termo mulato, do español mulo, têm nitidamente uma conotação mais

pejorativa do que o termo mestiço, pois, no século XVIII, os índios tiveram uma certa valorização do mito do bom selvagem de J.J Rousseau e da aceitação das civilizações incas e maias.”

cheiro, sabores e cores, segundo Gilliam e Gilliam (1995, p. 529) “a objetificação das mulheres negras cria indivíduos destinados a serem „cozinhados‟ e depois consumidos, - em vez de tratados como cidadãos”.

Sendo a prostituição de rua praticada em sua grande maioria por mulheres pobres e compreendendo que pobreza no Brasil tem cor, é de se imaginar que a prostituição de rua seja, massivamente, negra (MUNANGA, 2008; NASCIMENTO, 2003). Esses papéis preconcebidos às mulheres negras são decisivos na hora de sua escolha, nosso sistema de representação oferece algumas possibilidades para as mulheres negras e pobres, tais como a empregada doméstica, diarista, babá, servente, costureira, quituteira, ambulante e prostituta. As mulheres entrevistadas para essa pesquisa vivenciaram tais experiências profissionais antes de ingressar na prostituição. Para hooks (1995),

As negras tem sido consideradas „só corpo sem mente‟. A utilização dos corpos femininos negros na escravidão como incubadoras para a geração dos outros escravos era a exemplificação prática da ideia de que as „mulheres desregradas‟ deviam ser controladas. Para justificar a exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão, a cultura branca teve de produzir uma iconografia de corpos negros que insistia em representá-las como altamente dotadas de sexo, a perfeita encarnação do erotismo primitivo e desenfreado. Essas representações incutiram na consciência de todos a ideia de que as negras eram só corpos, sem mente” (hooks, 1995, p. 469) .

Sherry Otner (1979) procura analisar como se configura a desvalorização da mulher na sociedade, como o discurso da dominação patriarcal situa a mulher no plano da natureza negando-lhe a capacidade de razão e, consequentemente de produção de cultura. Os reflexos dessa interpretação serão refletidos nas atividades exercidas pelas mulheres, de acordo com a autora (1979, p. 116) “é oferecido às mulheres uma menor variação de escolha de atividades e lhe é permitido um acesso direito a uma variação muito mais limitada de instituições sociais.” Partindo dessa análise a prostituição, função que aproxima a mulher natureza, se torna um espaço destinado a ser ocupado pelas mulheres (GIACOMINI, 2006) e propondo o recorte racial na análise para a mulher negra o espaço da prostituição é um espaço mais que naturalizado.

hooks (2000) vai analisar que as discriminações que as mulheres brancas sofrem diferem das de outras mulheres. Quase nunca em suas discussões as feministas brancas pautam outras diferenças e como as mesmas acarretam um processo de discriminação diferenciado. hooks (2000, p. 134-135) entende que as mulheres brancas sofrem

discriminação por conta da dominação sexista e patriarcal, enquanto que as mulheres negras são oprimidas e destaca que o “sexismo como um sistema de dominação é institucionalizado, mas ele nunca determina de maneira absoluta a realidade de todas as mulheres nessa sociedade. Ser oprimido significa à „ausência de escolhas‟” 53

A mulher negra se reconhecerá nas representações divulgadas sobre elas, como afirma Saffioti (1987, p. 29) “negros e mulheres, assim como todas as categorias sociais discriminadas, de tanto ouvirem que são inferiores aos brancos e homens, passam a acreditar em sua própria „inferioridade‟”. Pensar nas possibilidades que as mulheres negras e pobres possuem frente a dificuldades econômicas é reconhecer que o racismo e o sexismo é estruturante em nossa sociedade, pois oferecem limitadas escolhas de sobrevivência. Essas escolhas passam também pelo argumento da identificação, analisando quais os papéis historicamente designados as mulheres negras em nossa sociedade. Embora não se negue a agência e poder de escolha que essas mulheres possuem, é primordial, contudo analisar que é uma agência limitada pela opressão interseccional que elas sofrem.

Uma das dimensões da identidade da mulher negra que se prostitui é a prostituição. Enquanto prostitutas negras enfrentam, consequentemente, a violência racista e o estigma de ser prostituta. Tal condição, para as mulheres negras e pobres que não tiveram outras opções de sustento, é associada à decadência moral, ou seja, é uma identidade deteriorada (BARRETO, 2013). É importante reconhecer que até mesmo no mercado do sexo os privilégios54 existem e a disputa pela ocupação dos espaços está relacionada, diretamente, à leitura racial. A partir do recorte de raça os fatores de entrada e permanência das prostitutas negras superam as questões simplesmente econômicas e, principalmente, desconstruindo essa ocupação como um espaço de empoderamento de sexualidade feminina.

53

Texto original: “Sexism as a system of domination is institutionalized, but it has never determied in an absolute way the fate of all women in this society. Being opressed means the absence of choices” (hooks, 2000, p. 134/135).

54 De acordo com Nascimento (2003, p. 184) privilégio “se refere não à riqueza de posses ou à posição de

classe, mas ao favorecimento que a brancura concede ao indivíduo em situações cotidianas e em momentos decisivos de vida. Esse privilegio pode ser puramente simbólico e ter consequências concretas, como na concorrência a um emprego ou mesmo no trato diferenciado que uma professora, mesmo negra, dispensa a um aluno.”