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2 CULTURA, CLASSIFICAÇÕES E CORRENTES MULTICULTURALISTAS

2.4 Correntes do multiculturalismo

2.4.2 Multiculturalismo diferencialista

Essa corrente nasceu em ambiente anglófono, em especial nos EUA, pelas constribuições de intelectuais de esquerda pós-marxista (GOMARASCA, 2012, p. 16) e seus defensores são chamados de comunitaristas. Eles são críticos dos liberais e entendem que o foco do multiculturalismo deve ser nos laços comunitários que envolvem os indivíduos, haja vista que os seres humanos são sociais e estão envoltos em contextos culturais inescapáveis, desenvolvendo sua identidade no seio de tais comunidades. Por isso, rejeitam a autonomia da vontade tão cara aos liberais. Dão grande valor à influência do ambiente nos indivíduos, o que tem como consequência a ausência de neutralidade das estruturas sociais. Para os comunitaristas, a cultura é um valor intrínseco à comunidade, e não resultante do somatório de culturas individuais (FREDERICO, 2016, p. 240). Recusam ainda as tendências de moralidade universal do liberalismo (SILVEIRA; NEPOMUCENO, 2016, p. 78) e sua associação com um viés relativista dos direitos humanos é comum pela doutrina.

Enquanto os liberais são inclinados a querer que a sociedade civil proteja as diferenças, os comunitaristas preferem o Estado. Isto porque aqueles defendem a ideia de um Estado neutro, que deve dar tratamento igualitário a todos, enquanto os comunitaristas não acreditam que seja possível tal neutralidade, sendo o Estado prisioneiro da cultura dominante (SILVEIRA; NEPOMUCENO, 2016, p. 240). Por um lado o termo prisioneiro parece bom ao imaginar que a cultura dominante teria "capturado" o Estado. Por outro, parece inadequado porquanto pode levar ao pressuposto de que houve um Estado neutro que foi capturado, quando na realidade toda sua construção se deu sob a cultura dominante.

Além disso, os liberais podem soar mais coerentes, já que para preservar a neutralidade estatal incutem à sociedade civil o papel de lidar com as diferenças, mas há o problema de que muitas vezes tal trabalho necessita de atividade estatal, como para a adoção de políticas públicas, leis, decisões judiciais, dentre outras medidas. Destarte, essa neutralidade estatal seria apenas aparente. Já os comunitaristas – ao mesmo tempo em que alertam a existência um Estado influenciado significativamente pela cultura dominante –, elegem este mesmo Estado para proteger as demais culturas, o que é contraditório à primeira vista.

Assim como a cultura da comunidade para os diferencialistas não é a união das culturas individuais, os valores da comunidade não são a interseção dos valores individuais, mas sim descobertos pela interação de um grupo social durante a vivência em comunidade e a sensação de pertencimento. Fica claro que se os liberais focam nas individualidades, no entanto os comunitaristas não assumem o polo oposto e valorizam o coletivo em si, mas entendem que é a partir dele que o indivíduo passa a existir, pois é a comunidade que constrói a identidade humana. Se os valores individuais derivam diretamente das relações comunais, a prioridade dada ao agrupamento é para preservar a própria identidade singular (LUCAS, 2009, p. 109). É claro que tal postura não é isenta de críticas. Certamente dar primazia ao grupo em nome do bem-estar social faz sentido, porém não é tão coerente assim quando feito em nome também do bem-estar individual. Nenhum método que envolva tantas variáveis complexas é perfeito, o que significa que em algumas ocasiões de ineficiência não será possível alcançar a felicidade de determinadas pessoas, apesar da finalidade da predileção do coletivo ser justamente trazer o conforto singular.

O que Peter McLaren (2000, p. 120-122) chama de multiculturalismo liberal de esquerda pode ser encaixado nessa corrente. Pra ele, este rejeita o tratamento igualitário entre culturas e destaca as diferenças culturais, o que propende a essencialização cultural,

esquecendo que a diferença é uma construção histórica e social e traz significados implícitos que orientam relações de poder. Em outras palavras, baseia-se na idealização estereotipada de um perfil correspondente a determinada comunidade, esquecendo-se de toda a diversidade subcultural ali contida e das dessemelhanças naturais entre indivíduos, bem como de outros fatores que tornam uma cultura incompleta e dinâmica e propiciam o processo constante de resconstrução.

O autor ainda brinca que se pedem os documentos de identidade de alguém para poder se iniciar o diálogo. Tal visão estimula a falácia de que a vivência de um indivíduo socialmente localizado em determinado grupo ou estrato tem maior valor que a de alguém fora, conferindo uma autoridade especial oriunda da opressão vivida. É claro que essa experiência seria um plus, mas basear a qualidade do argumento pela identidade e não pelo seu poder de persuação, sua coerência e consistência teórica é obviamente um erro. Tal noção pode ter como fundamento a vontade de trazer à tona a participação dos oprimidos, daqueles que não integram a cultura dominante, enriquecendo a discussão. Todavia, também pode acabar silenciando pessoas da cultura dominante que porventura discordem de algum ponto específico ou passando a falsa impressão de que integrar a cultura dominante diminui o valor de sua fala. Se este último ponto se manifestar, pode até mesmo incentivar um exagero na vitimização como forma do opressor tentar se passar por oprimido e poder adquirir o status necessário para ser ouvido, subvertendo toda a concepção estabelecida.

Nas palavras do autor (MCLAREN, 2000, p. 122):

É claro que eu não estou argumentando contra a importância da experiência na formação da identidade política, mas, em vez disso, estou apontando que ela tem se tornado a nova autorização para a legitimação da validade incontestável e do trânsito político dos argumentos próprios de uma pessoa. Isto tem resultado, com frequência, em uma forma de elitismo acadêmico. Nestes casos, a autoridade do acadêmico ou acadêmica não está apenas sob ataque (e, certamente, em muitos casos), mas também tem sido substituída por um elitismo populista baseado nos papéis de identidade da pessoa que está realizando o trabalho.

Um dos graves problemas associados a tal corrente multiculturalista é que pode desenvolver visão estática e essencialista da formação cultural comunitária. É uma consequência da globalização imperante que promove a exportação de uma cultura norte- americana e eurocêntrica que tende a corroer todas as outras, enfraquecendo-as até que sejam absorvidas por ela. Como mecanismo de defesa, surgem comunidades isoladas que não devem se comunicar com a sociedade mais ampla, sob risco de perda da própria vitalidade. O problema não é só dificuldade de tal política na modernidade, em que as interações são cada vez mais frequentes e rápidas, mas ignorar o enorme benefício que as interações culturais

trazem à própria comunidade e aos seus membros. O ser humano é um ser social por natureza e a limitação de sua participação nessa esfera não deveria ser possível sem vantagens comprovadas, do contrário estaria se firmando um sistema autoritário e opressor de controle e repressão. Tal prática nas sociedades atuais alimenta o despontamento de apartheids socioculturais, com comunidades culturais criando suas próprias organizações (bairros, escolas, associações, etc) para evitar o contato com o "mundo exterior". Por isso, tal corrente também pode ser chamada de monoculturalismo plural, vez que pode dar ensejo a uma pluralidade de culturas, mas todas elas ilhadas (CANDAU, 2008, p. 50-51).