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O fim dos binarismos é emancipador196

O presente trabalho buscou nas canções produzidas pelo grupo Os Mutantes a confirmação de que o Tropicalismo não foi um movimento de vertente única, homogêneo e de tônica baiana, exclusivamente. Foi um movimento que mobilizou uma geração em seus muitos redutos geográficos, alinhando grupos numa opção política frente à ditadura, às convenções morais, estéticas, religiosas, e mesmo questionando certos padrões da esquerda clássica que enfrentava o mesmo governo ditatorial.

Os Mutantes, encampando a Contracultura internacional, pretendeu discutir e

questionar, além do governo militar, todo um arcabouço convencional que sustentava a sociedade brasileira até aquele momento. É a face mais urbana, mais contracultural do Tropicalismo, formado na escola rock’n roll, que naquele momento propunha um paraíso bucólico e tecnológico, celebrando a “paz e amor” através de uma música cheia de sons agressivos a ouvidos “educados”, erotizados e satíricos. As contradições desses dois movimentos – Tropicalismo e Contracultura – foram pesquisadas em parte da obra do conjunto paulista.

As contradições mesmas propunham embaralhar verdades binárias que alijavam o múltiplo, o diferente, como aberrações a serem reenquadradas, como desvios que o sistema deveria sanar. Mais do que contradições, paradoxos apresentados nas canções faziam eco a uma geração que não se satisfazia mais com a organização de uma nação que se alinhava em trincheiras opostas.

Essa análise fala de uma outra oposição ao regime militar que, incorporando novas críticas, confrontava antigos códigos comportamentais e doutos saberes dos quais a ciência se dizia proprietária.

O desejo pelo múltiplo acabou produzindo uma obra que não poderia ser lida linearmente, por nunca ter uma fonte única de referência ou entendimento. Foi construída na contradição, pelos opostos e pelo múltiplo, traduzida numa linguagem pluri-referencial.

196 KAPLAN, E. Ann (org.). O mal-estar no Pós-Modernismo: teorias, práticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

Performances associaram-se às canções, que continham o formato do des-arranjo e uma

plataforma de desassossego.

No todo dessa obra não se pode observar unidade, mas atitudes que nos facilitam uma leitura por grupos:

Quando a canção apresentava uma melodia única, linear, tonal e agradável, a letra se sobrepunha quebrando e subvertendo essa harmonia. É o caso de Fuga nº II, de Vida de

Cachorro e Balada do Louco. Suas melodias sofreram o desarranjo cortante de uma letra

incômoda que, destruindo a harmonia da melodia, perturbava o todo. Ainda quando as canções tinham uma mesma melodia e proposta de clima homogêneo, duas letras cindiam sua leitura, utilizando o absurdo como veículo de crítica, como foi o caso em Meu Refrigerador

não Funciona. Nesse mesmo grupo de canções com uma só melodia, um clima estaria sendo

produzido pela escolha do insólito dos meios-tons da escala tonal conduzindo uma letra de teor subversivo em busca da liberdade. Esse é o caso de Algo Mais e de Ave, Lúcifer, onde dissonâncias e o tom-menor induziam a se ver a possibilidade de alegria e felicidade no insólito, no pecaminoso, proibido ou na velocidade - longe da normalidade. Também a harmonia graciosa poderia ser acompanhada de uma letra suave e até edulcorada, mas não passaria pelo crivo do arranjo onde a interpretação se encarregaria de desequilibrá-la, propondo o estranhamento e a interferência do diferente. Esse é o caso de Qualquer Bobagem, em que o vocalista interpreta-a como um gago.

Alguns rocks corroboraram a idéia contracultural do hedonismo hippie, flower power, psicodélico, como é o caso de A Hora e a Vez do Cabelo Crescer e de Technicolor, que deslocavam bandeiras do cenário internacional para nossa realidade. Mas essa idéia viria a sofrer um auto-questionamento, quando melodia e arranjo, pertencentes à mesma linguagem rock’n roll, de filiação woodstockeana, receberam letras desmistificadoras daquele mesmo universo, propondo uma liberdade tropicalista, nagô, macunaímica. È o caso de Saravá e

Top-Top.

Outro grupo de canções percorreu o movimento inverso, isto é, partindo de uma melodia convencional, invadia e destruía sua harmonia através de arranjos agressivos, como foi o caso de Chão de Estrelas e Dois Mil e Um. O múltiplo que enseja as citações de várias melodias infiltradas, que citam, criticam e dialogam, desmente a idéia inicial harmoniosa. Com arranjos desestabilizadores, passado e futuro entram em dialogia, discutindo e alegorizando um presente cindido e nebuloso. O resultado é uma farsa que provoca o riso enquanto propõe a crítica. Na doce Chão de Estrelas, o arranjo cinde uma melodia original harmoniosa, recortando-a e desmerecendo a intangibilidade das emoções propostas. A dor de

amor é posta em um circo frenético, em que o amor é o palhaço que brinca com os valores sagrados do Ser Humano, da Cultura e do Estado.

As canções de melodias múltiplas discutiam com mais franqueza o jogo que estava sendo exposto. As várias citações e interferências ruidosas rebaixavam e embaralhavam saberes anteriormente tidos como definitivos. Esse jogo perpassou canções como Mágica,

Panis et Circensis e Dom Quixote, carnavalizando e subvertendo seus princípios.

Esses movimentos de quebra, invasão e multiplicação de referências viriam impregnar toda a obra do grupo pelos cinco álbuns que chegaram a produzir197. E, como as canções, também as performances mantiveram uma permanente inquietude e tendência para o desalojamento do reconhecido, do convencional.

Rita Lee Mutante, partícipe e dissonante nesse grupo, produziu uma nota marcante para o olhar de um feminismo incipiente, mesmo que inconsciente. Sua presença e atuação fizeram surgir o descentramento no jogo de poder. Retrabalhando linguagens da autoridade, instrumentalizou um humor crítico em suas muitas facetas: a literatura, a política, o show-

bussiness, as crenças, o sexo, o comportamento, a imagem do corpo. Essa tropicalista deu

munição para uma presença de corpo até então inédita no Brasil. O mundo do cinema, da TV (tão poderosa neste país), histórias em quadrinhos e muitos outros textos que serviram, através da paródia, para que se contassem as contradições necessárias, que inverteriam as mesmas verdades autoritárias. A obra de Rita Lee, enquanto Mutante, tratou de fragmentar crenças, estilhaçar resistências, pulverizar identidades. E em tempos de tortura e recato, medo e confronto, direita e esquerda engoliram o riso provocador.

Rita Lee refletiu os mesmos “desequilíbrios” intencionais, alastrando, somando e incluindo o múltiplo no seu trabalho. Essa tônica viria a produzir, já na década de noventa, o

Todas as Mulheres do Mundo, quando, novamente, reverenciando e citando Leila Diniz,

propõe uma idéia de mulher que escapa de um feminismo essencialista, abarcando a diferença em que se incluem o midiático, os clichês, o grotesco e até o perverso.

197 Lembrando que essa produção chega a ser o dobro do número de canções que constituem o corpus escolhido

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