• Nenhum resultado encontrado

Bataille opõe à economia dos mundos primitivos o capitalismo moderno fundado na acumulação e na poupança. Todas as sociedades arcaicas dissipavam uma parte do seu excedente, só a sociedade capitalista - e é precisamente isso que ele condena - seguiu o caminho oposto. "A actividade humana não pode ser reduzida inteiramente a processos de produção e de conservação, e a consumpção tem de ser dividida em duas partes distintas. A primeira, é representada pelo uso do mínimo necessário para os indivíduos de uma dada sociedade, para a conservação da vida e para a continuação da actividade produtiva. (...) A segunda parte é representada pelas despesas ditas improdutivas: o luxo, as cerimónias fúnebres, as guerras, os cultos, a edificação de monumentos sumptuosos, os jogos, o teatro, as artes, a actividade sexual perversa (isto é, desviada da finalidade

genital) que representam outras tantas actividades que, pelo menos originariamente, têm o seu fim em si mesmas."18 Ora o capitalismo é caracterizado pelo facto de todos os

Cf. Bataille, La Part Maudite, O.C., VII, pp.39-40. Cf. Bataille, La Part Maudite, O.C., VII, p.47. Bataille, La Notion de Dépense, O.C., I, p.305.

excessos serem gastos de novo de um modo produtivo; o processo de acumulação é orientado pelos imperativos de auto-valorização do capital. O que Bataille lamenta é a autonomização do investimento produtivo dos lucros face ao consumo improdutivo dos excessos produzidos. Os capitalistas receberam, a par da sua riqueza, a obrigação do gasto funcional e por isso é que a sociedade moderna dispensa o luxo ostentado publicamente e passa a ostentar as riquezas por detrás das paredes privadas. Desapareceu o carácter generoso, orgiástico, desmedido, que ainda assim distinguia a dissipação feudal.19

O cristianismo veio substituir a dissipação pagã prescrita pelo costume (e presente, por exemplo, nos jogos e cultos dos romanos) pela esmola livre, quer sob a forma de distribuição dos ricos aos pobres, quer sob a forma de donativos extremamente importantes para as igrejas e mosteiros que assumiram, na Idade Média, a maior parte da função espectacular.20 Nesta altura não são os teóricos que definem a sociedade

económica mas a necessidade de catedrais, abadias, padres e religiosos ociosos. Por outras palavras, a possibilidade de obras pias, agradáveis a Deus, determinava geralmente o modo de consumpção dos recursos disponíveis. A religião não é mais do que o consentimento que a sociedade dá ao uso das riquezas excedentes, ao uso ou destruição, pelo menos do seu valor útil. O ponto mais importante é a ausência de utilidade, a gratuidade destas determinações colectivas. É verdade que servem num sentido, na medida em que os homens emprestam a estas actividades gratuitas consequências na ordem de uma eficácia sobrenatural. Mas justamente só servem na condição de serem gratuitas, consumpções inúteis de riqueza. O próprio facto de escolher a salvação como

19 Cf. Habermas, op.cit, p.212.

fim parece contrário à verdade da graça. O dom da divindade à alma fiel não pode ser pago por nada.Pese embora todas as contradições, a igreja romana medieval simboliza de forma feliz o efeito de um uso improdutivo das riquezas: no mundo da pura utilidade que lhe sucederá, onde a riqueza perde o seu valor imediato e significa principalmente a

91

possibilidade de aumentar as forças produtivas, ela brilha perante os nossos olhos.

Se os laços que ligavam o catolicismo romano a uma economia pré-capitalista eram fortes, não o eram menos os que vieram a ligar o protestantismo à economia moderna (ver Parte I / Capítulo 1 - Ponto 2 ) - a dois mundos religiosos diferentes responderam tipos de economia opostos.22 O que Lutero rejeitava na dissipação da

riqueza por parte da igreja medieval era menos a própria dissipação que a ideia de méritos adquiridos por estes meios; contestava menos o luxo em si mesmo que a possibilidade de ganhar o céu fazendo da riqueza individual um uso dispendioso. Em consequência, a ociosidade contemplativa, o dom aos pobres, o brilho das cerimónias e das igrejas cessaram de ter o mesmo valor e passaram a ser signos do demónio. A doutrina de Lutero é a negação acabada de um sistema de consumpção intensa de recursos. Uma imensa armada de clérigos seculares e regulares dilapidava as riquezas excedentes da Europa, levando os nobres e os comerciantes a dilapidações maiores: é o escândalo que incomoda Lutero mas ele não faz mais que opôr-lhe a total negação do mundo. Se Lutero manteve contra a usura a maldição tradicional da Igreja, Calvino abandona a condenação deste princípio e reconhece, de forma geral, a moralidade do comércio. Por esta razão, Weber dá ao calvinismo um valor decisivo na formação do espírito capitalista. O protestantismo foi, desde o início, a religião da burguesia dos

21 Cf. Bataille, La Part Maudite, O.C., VII, pp.115-117.

negócios de Génova ou dos Países-Baixos. Tawney, na esteira de Weber, considerou que Cal vino está para a burguesia do seu tempo como Marx para o proletariado: trouxe a organização e a doutrina. Em Calvino também se verifica a negação das práticas de despesa vã e o valor, retirado à ociosidade contemplativa, ao luxo ostentatório e a formas de caridade que mantinham a miséria improdutiva, era dado às virtudes que a utilidade funda: o cristão reformado devia ser modesto, poupado, trabalhador; devia mesmo reprimir a mendicidade contrária aos princípios cuja actividade produtiva é a norma. Limitando a possibilidade do homem às obras úteis, o que lhe dava como meio de glorificar Deus era a negação da sua própria glória. A verdadeira santidade das obras calvinistas residia no abandono da santidade - na renúncia a toda a via que tivesse um halo de esplendor. A santificação de Deus ligava-se assim à dessacralização da vida humana, à consagração do homem a actividades sem glória23, à consagração das riquezas

ao desenvolvimento do aparelho de produção. Com efeito, não se poderia imaginar nada mais propício ao impulso do capitalismo: por um lado, condenação da ociosidade e do luxo; por outro, a afirmação do valor dos empreendimentos. O ódio à dissipação tornar- se-á a razão de ser e a justificação da burguesia e corresponde à atrofia geral dos antigos processos sumptuários que caracteriza a época moderna. A burguesia capitalista relega para segundo plano a construção de igrejas e prefere a de fábricas. "A nostalgia romântica pela Idade Média não é, na verdade, senão um abandono. Tem o sentido de um protesto contra o impulso industrial, contrário ao uso improdutivo das riquezas; ela responde à oposição aos valores dados nas catedrais do interesse capitalista (ao qual a sociedade moderna é redutível). Este lamento sentimental é sobretudo o feito de um romantismo reaccionário que vê no mundo moderno a separação anunciada do homem

com a sua verdade interior. (...) A multidão deixou-se ir no entorpecimento da produção, vivendo a existência mecânica - meia risível, meia revoltante - de coisa."

Na obra A Literatura e o Mal25 ao analisar As Flores do Mal de Baudelaire,

Georges Bataille dá conta dessa sociedade que deve "responder a duas solicitações simultâneas que não deixam humanamente de exigir a decisão: como o indivíduo, a sociedade é chamada a escolher entre a preocupação do futuro e a do instante presente. (...) É a parte das festas cujo sacrifício é o momento difícil. O sacrifício concentra a atenção no gasto, por conta do instante presente, de recursos que em princípio a preocupação do amanhã exigia reservar. Mas a sociedade das Flores do Mal não é já essa sociedade ambígua que, mantendo profundamente o primado do futuro, deixava numa espécie de sagrado a preeminência nominal do presente. É a sociedade capitalista em pleno desenvolvimento, reservando a maior parte possível dos produtos do trabalho ao crescimento dos meios de produzir. Esta sociedade dera a sanção do terror à condenação do luxo dos grandes. Ela afastava-se justamente duma casta que explorara em seu proveito a ambiguidade da antiga sociedade. Ela não podia perdoar-lhe ter captado para fins de esplendor pessoal uma parte dos recursos (do trabalho) que poderia ter sido empregada no crescimento dos meios de produção. Mas das águas de Versalhes às barragens modernas intervém uma decisão que não foi apenas no sentido da colectividade opondo-se aos privilegiados: essencialmente, esta decisão opôs o crescimento das forças

Bataille, La Part Maudite, O.C., VII, pp.127-128. (O sublinhado é nosso.)

25 Neste livro, constituído por um conjunto de ensaios publicados, pela primeira vez, na revista Critique,

Bataille analisa a obra de oito escritores universais (Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, William Blake, Sade, Proust, Kafka, Genet), perspectivando a noção de Mal na literatura. Curioso é notar que, à excepção de Genet, todos estes escritores viveram (pelo menos uma parte da sua vida) no séc. XIX e, mais ainda, que muitos deles revelam ligações claras ao romantismo.

produtivas aos prazeres improdutivos. A sociedade burguesa, no meio do séc.XIX, escolheu no sentido das barragens: introduziu no mundo uma mudança fundamental. Do nascimento à morte de Charles Baudelaire, a Europa empenhou-se numa rede de caminhos de ferro, a produção abriu perspectivas dum crescimento indefinido das forças produtivas e por fim deu-se este crescimento. A operação preparada há longo tempo começava uma metamorfose rápida do mundo civilizado, fundada sobre o primado do amanhã, a saber sobre a acumulação capitalista. (...) Do lado dos escritores, dado que pôs fim aos esplendores do antigo regime e substituiu as obras gloriosas pelas utilitárias, provocou o protesto romântico. (...) O romantismo dava imediatamente uma forma concreta ao que nega, ao que suprime a redução do homem a valores de utilidade. A literatura tradicional exprimia simplesmente os valores não utilitários (militares, religiosos, eróticos) admitidos pela sociedade ou a classe dominante: a romântica a dos valores que negavam o Estado moderno e a actividade burguesa."26

Parece-nos lícito afirmar que nesta longa caminhada de extraterritorialização do sagrado, de rejeição desse excesso amaldiçoado, que começou por servir uma exteriorização soberano-festiva e acaba por ver transformada a dissipação em consumo e retirados os suportes a uma soberania criadora e abnegada, o romantismo aparece ainda como um último momento onde se refugiam os fragmentos de uma actividade soberana outrora experienciada mais plenamente, negativa daquela outra, própria da modernidade, em que domina o valor de uso.

Ao criticar o agir racional orientado para fins, Bataille pretende libertar o sujeito dos seus limites e devolvê-lo à intimidade de um contexto de vida que se lhe tornou estranho, que foi excluído dos seus horizontes, que foi mutilado e despedaçado. A

transgressão de fronteiras em direcção ao sacral não significa a subjugação nem a demissão humilhante da subjectividade mas a sua libertação e o seu acesso à verdadeira soberania. A subjectividade que se transcende a si própria não é destronada nem desapossada mas restituída à espontaneidade das pulsões que tinham sido amaldiçoadas : a nudez e a morte.

CAPÍTULO II