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O mundo das calçadas – Eduardo Yázigi – Tese/FFLCH/USP

Indústria Automotiva e pós-fordismo: Novos itinerários dos cidadãos paulistanos.

2. O mundo das calçadas – Eduardo Yázigi – Tese/FFLCH/USP

“(...) a lembrança mais antiga que tenho de mim mesmo, fora de casa, situa-se justamente numa calçada, em frente do lugar que morávamos. Era um fim de tarde, as luzes da cidade estavam recém-acesas. Alguém perto de mim disse: Olha a garoa! E eu a prendi o que era a garoa. Quase indescritível: milhões de gotículas, volteando grande e lento antes de cair. Foi uma verdadeira viagem que me fascinou e que em vão busquei reencontrar daquele jeito. Mais ainda, era um tempo em lotes baldios costumavam ser fechados por muros, atrás dos quais vicejavam ousadas mamonas. Quem passava na calçada via o muro anteposto às mamonas além das quais o céu azul. Com um pouco de sorte, nele via cruzar um avião

Paulistinha. (...) a calçada passou a ser para mim o lugar da viagem maravilhosa. Todavia, bem cedo, logo percebi que as coisas não eram bem como eu imaginava. (...) Nem por isto, ao longo de toda vida, deixei de Ter neste fragmento de cidade, uma extensão de mim mesmo. Onde fosse pelo mundo, conhecer era por meios do passo. Vim a descobrir, efetivamente, cada polegada quadrada das calçadas de meu quarteirão, rachaduras nos muros; ervinhas que grassavam; os musguinhos. Um modo sensualíssimo de me relacionar com as coisas da cidade.(...) Mas é minha rua, essa da cidade de São Paulo de quem sou tributário, onde o trabalho, circulo, me divirto e onde estão muitas das pessoas de que tanto gosto....como fica a minha rua. (...)”.(YAZIGI, 1999: 9).

A convivência com amigos e vizinhos, nas localidades em que se reside ou se trabalha, realiza laços culturais e afetivos, que podem ser lidos nos itinerários da(s) memória (s), enquanto práticas econômica e social, executadas no dia-a-dia. No cotidiano, os laços se cristalizam, no instante em que os habitantes, ao mesmo tempo se apropriam do espaço urbano (ruas, praças, calçadas, etc). Esse todo organizado, ao longo das décadas, de acordo com as estratégias dos empreendedores imobiliários, cujo uso e habitar o solo, se mercantilizou, desterrando os habitantes das terras de seus pais. No entanto, permanece vivo em sua memória.

Os novos paradigmas técnico-econômicos foram responsáveis de modo mais incisivo pela segregação da diversificação sócio-espacial no que diz respeito ao mercado consumidor, mão-de-obra, de infra-estrutura, de aparatos institucionais, acesso a educação, ao transportes públicos. O morador urbano enquanto parte integrante de uma rede sócio-cultural de uma localidade, teve dificuldade com a segregação. Esta impediu a manutenção de práticas sociais, em várias comunidades ou bairros do município de São Paulo. Esta dificuldade ocorreu no momento em que famílias ou indivíduos tiveram que se deslocar para outros bairros centrais ou periféricos. Às vezes, ou para outros municípios, em função dos novos modelos econômicos de desenvolvimento. Estes apenas favoreceram determinados grupos econômicos em detrimento do bem- estar-social da população.

O espaço urbano viu-se reconfigurado pelo poder do complexo empresarial e pelo poder do Estado. Assim, instalou-se outra divisão do espaço civil, privado, político, econômico, social e cultural. O poder está presente nas formas de representação das imagens, cujas ideologias marcam a segregação social. As classes sociais são demarcadas, também, pelo local de residência, lazer e educação. Todavia, a reafirmação do local, em muitos bairros, continua a se fazer presente, enquanto responde as novas demandas de eficiência e de eficácia

do sistema produtivo individual e coletivo. É comum que o local seja descaracterizado. Ele passa a ser um ponto no espaço urbano, adquirindo outra função ou atividade financeira ou comercial. Busca atender o modo de produção capitalista globalizado, mas segrega espaço a população comum.

O morar e o habitar guardam a dimensão do afeto, da memória e do uso do lugar. Envolvem um local determinado no espaço urbano, portanto uma localização e uma distância que se relacionam com outros pontos da tessitura social, política, histórica e cultural da cidade. Certo que por isso, adquirem qualidades peculiares. Nessa direção, o espaço urbano do morar e do habitar teria o sentido dado pela reprodução da vida e pelos itinerários de memórias. Ambos se expressariam enquanto manifestações de gestos, gritos, ações, protestos, elaborar-se-iam críticas enfim, da vida. Construir-se-iam assim, memórias e lembranças, porque criam identidades, por meio do reconhecimento das idiossincrasias locais e de seus habitantes.

O espaço urbano ganharia sentido, à medida que a vida se desenvolvesse nos modos de uso da casa, das ruas, dos transportes público e individual, etc. Haveriam de tecer um conjunto mútuo de significados para os habitantes da cidade. Estes, por sua vez, constroem ações e memórias, imbuídas de percepção, sensibilidade, razão, etc, carregadas de significados afetivos e críticos, que registram e traduzem modos de vida, vivido aos longos das décadas. O ato de morar e de habitar está pois na base da construção do sentido da vida, nos modos de apropriação da cidade, a partir da casa e das ruas. Isso significa afirmar que os atos de morar e/ou habitar produzem uma “pequena história”. Esta vê-se construída por pessoas e lugares comuns, no desencadear da vida. (CARLOS, Ana F, 2001).

A paisagem urbana é uma construção histórica, social, política, econômica e cultural que se explica por meio das relações materiais dos homens. A cada etapa de produção, adquire uma nova dimensão, registrando determinados estágios do processo de trabalho vinculado à reprodução do capital. Portanto, o ato de habitar e de morar, revela algumas das estratégias dos novos arranjos industriais. Seu processo assinala, também, a mercantilização das áreas urbanas, apontando para um movimento centro-periferia.

Capítulo 3

Logradouros da cidade de São Paulo: Itinerários de memórias, vida e de