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4. O ENIGMA DO MUNDO

4.1. Mundo da percepção

Esse antagonismo, de acordo com Merleau-Ponty (2018, p. 122), provém de um paradoxo instalado no ato de se perceberem as coisas do mundo: as intenções perceptivas são "esmagadas" em objetos que aparecem como anteriores e exteriores a tais intenções ao mesmo tempo em que os objetos só existem para o sujeito uma vez que "suscitam pensamentos e vontades" nele próprio. O filósofo observa que o idealismo da Psicologia e o realismo da Fisiologia são incapazes de conciliar esses opostos, porque descartam justamente a estreita relação que o corpo do sujeito estabelece com o mundo no instante da percepção, relação ambivalente que parece constituir-se como um jogo de presença e ausência92.

Segundo essa mesma perspectiva, perceber não significa receber passivamente impressões capturadas pelos órgãos dos sentidos, mas compreende a interpretação e a organização de dados sensoriais em uma estrutura que confere à própria percepção forma e sentido “e que põe em jogo notadamente a relação entre a figura e o fundo, entre a coisa e seu horizonte” (PPS, p. 20). A percepção, desse modo, é anterior ao pensamento, à reflexão, e articula-se de maneira indissociável a outra experiência que lhe é imediatamente anterior, a sensação, mediante a qual se apreende um dado sensível.

Na obra poética de Pedro Kilkerry, sem dúvida, percepções sensoriais desempenham papel fundamental. Evidenciam-se, por exemplo, em “Floresta morta”, mediante a experiência de um sujeito que percebe a contradição inerente à paisagem contemplada, e em “Velhinho”, quando o eu lírico, em plena velhice, vê a si mesmo sendo levado no bico de um pássaro. Estão presentes também em poemas nos quais a temporalidade é vivenciada de modo difuso, como em “Cerbero” – em que o eu poético, metamorfoseado em besta mitológica, enquanto aguarda determinado o regresso da amada, é invadido pela visão de um passado luminoso, rico em impressões sensoriais – e “Altera quanquam venusta” – no qual a percepção da amada que jaz morta em um templo de ouro é atravessada por visões de um passado saudoso e por imagens de intenso erotismo oriundas do tempo mítico do Cântico dos cânticos. E manifestam-se de modo radical – em alguns casos, consistindo em tema principal do discurso lírico – em poemas nos quais o eu poético dirige sua atenção ao próprio instante perceptivo e às ressonâncias interiores da experiência: é o caso do

92 “Ora, acontece de fazermos do mundo uma outra experiência, menos estruturada e mais intensa, que chamamos de sensação. O termo designa de certa forma uma apreensão do sensível, anterior não somente à reflexão e à concepção, mas à própria percepção”, afirma Collot (PPS, p. 20).

poeta afetado pelas impressões visuais e sonoras enquanto aguarda a chegada da rima, em “É o silêncio”; do sujeito frágil que se percebe visto pelo objeto que vê à sua frente, em “O muro”; ou mesmo da entrega luminosa do eu poético à Natureza, em

“Ritmo eterno”.

O destaque conferido ao instante perceptivo, contudo, não se restringe a poemas nos quais o sujeito lírico manifesta-se de modo explícito no discurso, caso dos textos analisados no capítulo anterior. Em “Na Via Appia”, por exemplo, a experiência perceptiva molda a construção de uma cena em que uma legião de soldados desfila na estrada romana:

Na Via Appia

... Ei-los passam enfim, capacetes brunidos...

Purpureia, assombroso, oceano flamejante De mil togas flutuando. E ebria, nesse instante, Uma pompa de fogo os plebeios sentidos.

Lá vão rufos leões, a áureos carros jungidos, Ao concento93 da voz dos histriões em descante.

De volúpia, a marmórea, a Carne eletrizante, É qual lírio que vai de pétalos flectidos94.

Nua! — à espádua esparzida a manhã dos cabelos — Nua! na esplendidez que, Áureo Sonhar, prelibes95...

Como em leito de sol, levam-na, doce fardo,

Cordos núbios de bronze, — agitando flabelos Da plumagem real e cetínea96 das íbis,

Por seu rosto de alambre97 aromado de nardo98...

(HE, p. 80).

93 Concento: harmonia.

94 Flectido: dobrado, curvado.

95 Prelibar: “sentir prazer antecipadamente ao pensar em (algo)” (PRELIBAR, 2009).

96 Na segunda edição de ReVisão de Kilkerry (1985), consta a palavra “centíneo”, certamente um erro de digitação. Tanto na 1ª edição dessa obra como no ensaio de Carlos Chiacchio (1985a) consta o termo “cetíneo”, qualidade do cetim, tecido lustroso e macio, originalmente feito da seda.

97 Alambre: âmbar.

98 Nardo: tipo de perfume, incenso.

Fac-símile 9 – Detalhe de página da revista Nova Cruzada (ano 5, n. 11, outubro de 1906).

Fonte: acervo da Biblioteca Pública do Estado da Bahia.

Nesse soneto em versos alexandrinos, a profusão de imagens obscuras e sinestésicas, associada a raras escolhas lexicais e a truncadas estruturas sintáticas, promove uma complexidade semântica que torna o texto hermético ou mesmo ilógico à primeira vista. Terceiro poema publicado pelo poeta na Nova Cruzada, na décima primeira edição da revista, em outubro de 1906, “Na Via Appia” foi declamado na noite de 22 de julho de 1906, quando Kilkerry armou-se Cavaleiro da Nova Cruzada. Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, sua performance arrebatadora, na ocasião, causou fortes impressões em Carlos Chiacchio (1985a, p. 264-265):

E, armado cavaleiro em cerimonial de investidura, depois da vigília das armas que era a apresentação preliminar de produções inéditas, estava ritualmente apresentado ao meio intelectual, não somente baiano, mas ainda a outros do país, porque a Cruzada tinha certa irradiação ultra-muros, muito maior do que até do que no próprio ambiente da sua terra. Ah, o esplendor daquela noite, ao primeiro contato com um tipo evidentemente diverso de quantos até ali tínhamos imaginado ou conhecido! O esplendor dos seus versos ritmados de um sentido novo, tanto na forma, como na essência, e ainda o modo incomparavelmente inédito de dizê-los em público!

Estou a ouvi-lo recitar a VIA APPIA (...).

Foi nessa noite, ao clarão desses versos, que o conheci, em 1906. Para nunca mais esquecê-lo.

Em seu relato apaixonado, além de destacar a performance de Kilkerry, Chiacchio salienta o propósito ritualístico e alegórico do soneto: tal qual um xamã, o poeta torna visível, por meio do discurso lírico, o passado ancestral que constitui a origem mítica da Nova Cruzada. Resta-nos apenas imaginar Kilkerry, dirigindo-se a um auditório de “cavaleiros” que escutam, perplexos, o relato de sua transformação em um esquadrão da Legião Romana.

“Ei-los”, brada o eu poético, dando partida ao cortejo de soldados romanos que passa pela célebre estrada99. Um sinal de reticências abre e fecha o poema, sugerindo a imagem do desfile pela perspectiva de um plebeu que assiste ao espetáculo, incapaz de discernir o início e o fim do desfile. Metonimicamente, são apresentados os soldados vestidos com seus capacetes “brunidos” à luz do sol. A legião de romanos com suas togas escarlates transforma-se em um “oceano flamejante”100, que

“purpureia, assombroso”: tão resplandecente é o brilho da cor vermelha na cena, que

99 De acordo com Woolf (2017, p. 386), a Via Ápia, batizada em homenagem ao censor romano Ápio Cláudio Cego, foi a primeira e principal estrada do Império Romano e começou a ser construída em 312 a.C. para ligar Roma a Cápua. Em 264 a.C., a estrada já contava com mais de 600 quilômetros de extensão, ligando Roma à cidade de Brindisi, no sul da Península Itálica.

100 Essa imagem reforça a ambivalência sugerida pelo título do poema, “Na Via Appia” ou Nave Appia, nave que singra a estrada transformada em um “oceano flamejante”.

acaba por embriagar, como uma “pompa de fogo”, os sentidos dos plebeus que, assim como o eu poético, assistem ao cortejo.

Na segunda estrofe, enquanto os soldados continuam a desfilar diante da plateia inebriada, o eu lírico dirige sua atenção perceptiva para o ritmo da marcha, apoiado nos áureos carros e na harmonia da voz em descante de histriões que acompanham os soldados, metamorfoseados, nesse momento, em “rufos leões”101. A volúpia causada pela passagem da cor vermelha no poema eletriza a “Carne”

marmórea dos soldados, associados, em seguida, à imagem de lírios desabrochados, cujas pétalas e sépalas curvam-se para expor as hastes que sustentam, em suas extremidades, o pólen vermelho acumulado.

A tonalidade afetiva que envolve a cena permanece na terceira estrofe, transparecendo na imagem sensual de uma nudez feminina que, repetida, gera mais uma ambiguidade, já que o adjetivo “nua” pode se referir tanto à “Carne eletrizante”

da estrofe anterior, quanto à “manhã dos cabelos”. Levando-se em consideração essa segunda leitura – fortalecida pelas correspondências entre a “manhã dos cabelos” e outras passagens, como “Áureo Sonhar” e “leito de sol” – e desfazendo-se a inversão que rege a estrutura sintática dos quatro últimos versos do poema, a imagem que o encerra poderia assim ser descrita: trata-se de um fardo doce a passagem dos soldados bronzeados pelo sol que, abanando seus leques feitos de penas de íbis, carregam a manhã, conduzindo as horas.

À primeira vista, o modelo formal escolhido pelo poeta – soneto em alexandrinos – parece denunciar a presença de certo esquema parnasiano.

Entretanto, o modo como se constroem e se combinam as imagens – dando corpo a valores ou abstrações, como a noção de tempo mediante sugestões ou evocações realizadas a partir de percepções sensoriais – desfaz essa primeira impressão. O emprego das cores na descrição da cena ilustra a originalidade do texto e confirma sua filiação à estética simbolista: o vermelho explode em várias imagens da primeira estrofe – “Purpureia”; “oceano flamejante”; “pompa de fogo” – e invade a estrofe seguinte, colorindo os leões “rufos”; o branco das pétalas do lírio remetem ao aspecto marmóreo da “Carne eletrizante”; o dourado e os tons de amarelo materializam-se em

“cordos núbios de bronze” e no rosto de alambre da manhã carregada pela legião de soldados. Ademais, as cores ultrapassam o território da percepção visual,

associando-101 Destaca-se a ambivalência gerada pela escolha do vocábulo rufo, que não só descreve o tom avermelhado dos soldados, mas também sugere o rufar dos tambores que dita o ritmo da marcha.

se, sinestesicamente, a outros sentidos, ganhando tatilidade (“flamejante”; “fogo”;

pelagem dos “rufos leões”), densidade (“bronze”) e perfume (“rosto de alambre aromado de nardo”).

Nesse poema, as imagens sinestésicas, provenientes da associação entre cores e dados sensoriais de outra natureza, articulam-se ao complexo trabalho realizado no extrato fônico do poema para manifestar sensorialmente a presença de uma tonalidade afetiva que recobre a cena percebida: assim como se observam correspondências no plano das imagens, verificam-se algumas repetições sonoras inusitadas (“Ei-los” – “plebeios”, por exemplo) ao longo dos versos. Além disso, a incidência de sons anasalados – provável alusão ao canto dos histriões que modula o cortejo – e uma série de vocábulos paroxítonos com terminação em “os” [us] –

“brunidos”, “cordos”, “flabelos”, “núbios”, “plebeios”, “rufos” – recupera a sonoridade característica do latim: enquanto assistimos ao desfile da horda de romanos, escutamos a língua morta que passa.

Se as estratégias de construção e combinação de imagens e o tratamento conferido ao plano da linguagem de “Na Via Appia” remetem a procedimentos característicos da lírica de Kilkerry, o modo como se constitui a subjetividade lírica distingue esse poema do conjunto de textos analisados no capítulo anterior. Não há, no plano da enunciação lírica, dêiticos que indiciem a primeira pessoa do ato enunciativo, um dos fundamentos linguísticos da subjetividade, conforme Benveniste (2020): nenhum pronome remete à primeira pessoa (eu) ou a um alocutário (tu); os pronomes empregados (“Ei-los”, levam-na”, “seu rosto de alambre” ) indicam apenas a terceira pessoa, posição ocupada, em geral, pela legião de soldados.

Aparentemente, essa ausência aponta para aquela “desaparição elocutória do poeta”

a que se refere Mallarmé (2010, p. 164) como atributo da “obra pura”102. Todavia, a falta de dêiticos pessoais que explicitem a autorreferência do falante não nos permite afirmar que o sujeito esteja ausente do discurso, pois sua presença é denunciada, implicitamente, em dois momentos do soneto. No verso “Nua! na esplendidez que, Áureo Sonhar, prelibes...”, a dêixis pessoal manifesta-se no vocativo “Áureo Sonhar”

e na flexão verbal em “prelibes”, que se referem à 2ª pessoa do discurso e indicam,

102 Em “Crise de verso”, Mallarmé (2010, p. 164) afirma: “A obra pura implica a desaparição elocutória do poeta, que cede iniciativa às palavras, pelo choque de sua desigualdade mobilizadas; elas se iluminam de reflexos recíprocos como um virtual rastro de fogos sobre pedrarias, substituindo a respiração perceptível no antigo sopro lírico ou a direção pessoal entusiasta da frase”.

por contraste, a presença do eu na interlocução103. Além disso, a expressão “Ei-los”104 – que abre o poema e poderia ser parafraseada como “Aqui estão eles” ou “Vejam-nos” – desempenha o papel de dêitico “apresentativo situacional” (LOPES, 2018, p.

71), uma vez que alerta o interlocutor para um elemento – soldados – presente no contexto situacional e, inevitavelmente, instaura a presença do sujeito e do alocutário no plano da enunciação e na própria cena descrita.

Infiltrando-se em gestos verbais, o sujeito de enunciação esmera-se em ofuscar sua presença no discurso. Disperso no acontecimento, abdica da posição central que ocupa convencionalmente na enunciação lírica e passa a agir como a lente de uma câmera cinematográfica, realizando seus enquadramentos sem se colocar como objeto visível na cena. Sua existência restringe-se à manifestação de um ponto de vista que, aliás, mostra-se amplo e maleável: na primeira estrofe, situa-se entre a plebe que, à beira da estrada, assiste à passagem da legião romana; em outros momentos, porém, adota novas perspectivas, sugerindo deslocamentos constantes, ora aproximando-se dos soldados ou destacando detalhes da cena em planos fechados, ora distanciando-se do que vê, enquadrando em planos gerais a multidão que participa do cortejo.

Na ek-stase lírica de “Na Via Appia”, o desapossamento do sujeito resulta em múltiplos pontos de vista, a partir dos quais desdobram-se fragmentos de uma cena, imagens singulares que desabrocham, com dificuldade, da carne de uma linguagem hermética e sensível. Uma rica e estranha sonoridade conduz a expressão do sujeito lírico, que apela aos “plebeios sentidos” do leitor-ouvinte e, ao mesmo tempo, obstrui o acesso da consciência à experiência. A princípio, coisas e seres aparentemente deformados pela imaginação do poeta parecem avultar no poema. Em leitura acomodada a uma perspectiva realista, o mundo que ali se apresenta é apenas sombra vaga, resto de lembrança da realidade percebida, ou ainda fruto da alienação

103 Vide p. 129 deste trabalho.

104 A expressão articula, por meio de um hífen, o vocábulo eis e o pronome pessoal oblíquo (l)os. De acordo com Cunha e Cintra (2001, p. 552), eis faria parte de um grupo de palavras denominadas denotativas, classificadas impropriamente como advérbios. À luz da Pragmática, Lopes (2018, p. 71) também menciona a controvérsia a respeito dessa classificação gramatical e inclui a palavra na categoria da dêixis apresentativa: “Eis requer, pois, tipicamente, a presença, no contexto situacional, da entidade designada pelo SN [Sintagma Nominal] adjacente e chama enfaticamente a atenção do interlocutor para essa mesma entidade, provocando um efeito de dramatização”. Em “Na Via Appia”, é evidente o efeito dramático produzido pela expressão que abre o discurso, ainda mais se levamos em conta a gênese do soneto, criado originalmente para uma performance do poeta, que arrebatou seus ouvintes, membros da Nova Cruzada, na cerimônia que selou seu ingresso nessa mesma sociedade.

de um poeta egocêntrico, que nos impõe uma visão particular e cifrada, acessível apenas à interioridade absoluta da qual provém.

À luz da Fenomenologia, contudo, essas mesmas deformações aludem a uma estrutura que rege a percepção do espaço, a consciência do tempo e as relações de intersubjetividade: a estrutura de horizonte. A partir dessa noção, consideramos possível reconsiderar a participação da imaginação no ato perceptivo, uma vez que, organizados nessa estrutura, os objetos não se apresentam inteiramente ao sujeito percipiente, mas sempre a partir de uma dinâmica que conjuga o visível e o invisível e, desse modo, não são apenas sentidos, mas também intuídos. Propomos, assim, o exame da noção de estrutura de horizonte – à luz de Collot105, Merleau-Ponty e outros autores alinhados à Fenomenologia – para que possamos reavaliar o estatuto aparentemente absurdo e ilógico do mundo que emerge na poesia de Pedro Kilkerry.