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Mundos brilhantes, tempos sombrios e a morte da arte

Bahktin (2018) chama de cronotopo a conexão especial incorporada artisticamente entre as relações de espaço e tempo na literatura. O termo advém da Matemática, mas sua aplicação mais famosa ocorreu na Física, dentro da fundamentação empregada por Albert Einstein na teoria da relatividade. Para os estudos da literatura, o vocábulo importa apenas como expressão imanente do tempo e do espaço, “uma categoria de conteúdo-forma da literatura” (BAKHTIN, 2018, p. 11). No cronotopo artístico-literário [ou ficcional], a representação do tempo costuma se materializar, tornando-se artisticamente visível; enquanto o espaço passa a ficar atrelado à movimentação do tempo, do enredo e da história: “os sinais do tempo se revelam no espaço e o espaço é apreendido e medido pelo tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico” (BAKHTIN, 2018, p. 12).

Nessa conotação de conteúdo-forma, o cronotopo constrói, em parte, a imagem do homem na literatura. Não uma imagem transcendental como a de Kant, que concebia o espaço e o tempo enquanto formas da própria realidade factual. Reitera-se: a proposta de Bakhtin vai ao encontro do processo artístico, da visão artística na literatura ou, mais precisamente, no gênero romanesco. Nesse contexto,

cronotopos são centros organizacionais para os eventos narrativos essenciais e

servem para absorver a realidade temporal atual, inclusive histórica, bem como permitir que as circunstâncias dessa realidade repercutam e mesclem-se ao espaço artístico do romance: “nos cronotopos atam-se e desatam-se os nós do enredo. Pode- se dizer francamente que pertence a eles o significado basilar gerador do enredo” (BAKHTIN, 2018, p. 226). Em apertada síntese, o cronotopo volta-se para elementos vitais de toda narrativa, tais quais a posição e movimento no espaço e seus nexos com o transcurso do tempo.

Como dito, o propósito que Bakhtin dá ao cronotopo está circunscrito ao romance, contudo, nas próximas linhas, nos permitiremos direcionar esse conceito e algumas de suas especificidades para A Liga Extraordinária. Não temos a intenção de que os prognósticos a seguir sejam plenos e exatos, apenas que permitam também visualizar o tempo adquirindo um caráter pictórico-sensorial dentro do quadrinho. Isto é, transmitir um acontecimento, comunicar sobre ele, propor

indicações exatas sobre o lugar e o tempo de sua realização no enredo de Alan Moore.

Contudo, nessa HQ, às vezes, o acontecimento se torna uma imagem e no romance, não:

E isso se deve justamente a uma condensação espacial e à concretização dos sinais do tempo – do tempo da vida humana, do tempo histórico – em determinados trechos do espaço. É isso que cria a possibilidade de construir a imagem dos acontecimentos no cronotopo (em torno do cronotopo). Ele serve como ponto preferencial para o desencadeamento das “cenas” no romance, ao mesmo tempo em que outros acontecimentos “conectivos”, distanciados do cronotopo, são apresentados num formato de seca comunicação e informação (BAKHTIN, 2018, p. 227).

À essa altura, deve ter ficado perceptível que esse trabalho tem, insistentemente, buscado as marcações cronológicas de A Liga Extraordinária, referenciando os anos em que cada evento acontece e, dada a imortalidade de alguns, como o transcurso do tempo funciona como catalisador para atitudes futuras das personagens. Como dito, na HQ, ocasionalmente, o acontecimento transforma- se em imagem, mas, ao longo da história, ele também é simplificado com timelines [linhas do tempo] para preencher elipses temporais entre os capítulos, funcionando como sumários narrativos:

Figura 62: Eventos cronológicos126 que separam A Liga Extraordinária 1898 e Século

Fonte: A Liga Extraordinária: Século (MOORE; O’NEILL, 2015, p. 23-24).

Os volumes 1898 e Século, por exemplo, são sequenciais, mas uma lacuna de doze anos separa os dois títulos, tendo o início do segundo em 1910; esse salto, porém, não se dá de forma tão abrupta, pois, Moore detalha pari passu cada dado relevante do que ocorra dentro desse interregno. A timeline acima faz parte da narrativa de A Liga Extraordinária e simula um documento oficial do MI-5 com informações levantadas a partir de anotações da então Agente Mina Murray. E tal como no Almanaque do Novo Viajante, a personagem só informa aos superiores o que bem lhe aprouver, sem nunca comprometer de fato amigos e aliados. Logo, esses sumários são construídos com um mínimo de veracidade para saciar a curiosidade de seus chefes.

Ainda que pouco confiáveis, os registros documentam alguns dos eventos mais relevantes ocorridos desde o final de 1898 até a primeira década do Século XX. Às informações e às comunicações de Mina cabem uma ponderação específica: a representação se concentra em poucas cenas e estas lançam luzes também sobre partes informativas da HQ, servindo de organizador de fatos esparsos inéditos ou narrados como fragmentados em apêndices127 à narrativa gráfica principal. Em sua simplicidade, esse artifício da linha do tempo estabelece o caráter espaciotemporal da imagem fomentada no bojo do texto de Moore, uma vez que tudo o que é “estático-espacial deve ser descrito de modo não propriamente estático, mas incorporado à série temporal dos acontecimentos representáveis e da própria narração-imagem” (BAKHTIN, 2019, p. 228).

Desse modo, toda a sequência de notas cronológicas da timeline em A Liga

Extraordinária – que relatam dezenas de viagens do trio Mina, Allan e Orlando a

locações mais tarde apresentadas textual e imageticamente no decorrer da história – gravitam em torno do cronotopo e, por meio dele, “se enchem de carne e sangue, [comungando] na figuralidade ficcional” (BAKHTIN, 2018, p. 227). Então, embora o espaço [lugar] seja num primeiro momento objeto de descrição estática, mais tarde ele será incorporado à cadeia de acontecimentos representados no quadrinho, em narração dinâmica. E uma vez que a teoria do cronotopo conecta tempo e espaço em

127 Como dito no capítulo 1, o leitor que, ao final de 1898, ignora a volumosa prosa do Almanaque do

Novo Viajante, acaba deixando passar informações relevantes como a aquisição da imortalidade de

Mina e Allan; as circunstâncias como os dois vieram a conhecer Orlando; e até mesmo a decisão de Nemo de abandonar a esposa e a recém-nascida Janni Dakkar, embarcando numa expedição à Antártida. A timeline da figura 62 reúne e sintetiza alguns desses fatos.

um contínuo, os enredos que compõem uma expressiva parcela dos textos de Moore ocorre no interior da terminologia cronotópica que Bakhtin chama de tempo de

aventura ou aventura tempo-espaço; isto é, tudo aquilo que se situa no intervalo, no

hiato, na pausa que surge entre dois momentos biográficos adjacentes. Existe, portanto, um contraste do que ocorre nesse tempo de aventura com o que ele nomeia como momentos biográficos ou tempo-espaço biográfico:

Implicitamente, então, o mundo retratado nesses textos pode estar separado em dois tipos de tempo-espaço: “tempo-espaço de aventura”, em que as aventuras acontecem, e “tempo-espaço biográfico”, em que os personagens estão em casa, apaixonam-se no início e vivem felizes para todo o sempre (BEATON, 2015, p. 86).

Um exemplo que conecta fato inédito descrito na timeline da figura 62 com desenvolvimento subsequente no âmbito da narrativa em quadrinhos se dá na menção à primeira visita de Mina à Brinquedolândia em 1907 e seu retorno ao arquipélago mais de cem anos depois, em 2009. Na linha de tempo é dito que Mina viajava em um navio nas proximidades da Noruega quando o seu transporte fora incapaz de seguir mais ao norte por conta das impenetráveis camadas de gelo. Ela segue a pé para a Costa do Vento Norte e registra o estranhamento de sentir calor em um lugar que deveria ser frio. E mais: seu "grupo passa o que pareceram ser apenas três dias lá, mas, na verdade, foram três meses. Eles encontram a criatura de Frankenstein, a Rainha Olympia e a Brinquedolândia" (MOORE; O'NEILL, 2015, p. 24).

Figura 63: O tempo de aventura registrado em 1907 conecta-se com o biográfico em 2009.

Segundo as notas, esse traslado aconteceu entre 7 de janeiro e 9 de março de 1907; no dia 10 desse mesmo mês, Mina posta uma carta para a Inglaterra, reportando que ela e o grupo são convidados da Rainha Olympiana. Só um século mais tarde, em 2009, Mina regressaria à Brinquedolândia, no volume final de A Liga

Extraordinária, A Tempestade. Em um século, tudo mudou na vida de Mina Murray.

No suceder dos anos, de 1907 para 2009, ela e seu entorno passaram por transformações e se desenvolveram entre elas. Ações tiveram consequências e seus efeitos são irreversíveis, como a trágica morte de Allan Quatermain. Na primeira visita à Brinquedolândia, ele estava ao lado de Mina; nessa segunda, quem é a acompanha é Jack Dakkar, o neto de Janni Dakkar, que ela viu – na figura 48 – pequenino em 1969, brincando no convés do Nautilus enquanto conversava com sua avó. Cinco anos antes, em 1964, durante uma travessia em órbita lunar, no conto em prosa Lacaios da Lua, Mina pensava sobre a família Nemo e, em especial, no futuro de Jack:

Em algum lugar lá embaixo, na fascinante espiral sarapintada de nuvens e oceanos do mundo azul, ela sabia que seus amigos tocavam suas vidas mundanas como de costume. Nas profundidades abaixo da imensidão do oceano, uma beleza selvagem envelhecida conhecida como Jenny Nemo estaria acendendo velas no santuário de estibordo do seu sombrio submergível em memória do seu falecido marido, o fidedigno Jack Flecha Larga. Em outra parte, dentro da embarcação submarina, a filha de Jenny, Hira, ainda estaria dormindo na cabine ao lado do filho dela, o neto de Jenny. Com menos de seis anos de idade, Jack Dakkar era o fruto de um casamento dinástico arranjado entre sua mãe e o falecido pirata dos céus, Armand Robur, um descendente do mais notório Jean. Por mais que tivesse gostado do garotinho quando se conheceram, Mina não conseguia parar de pensar que ele representava uma mistura potencialmente explosiva de linhagens mortíferas (MOORE; O’NEILL, 2015, p. 272).

Esses pensamentos ainda inquietam Mina em 2009, sobretudo quando ela, Orlando e Emma estão às vias de reencontrá-lo na Ilha Lincoln128: “Ao longo das gerações, meu relacionamento com a dinastia Nemo sempre foi conturbado” (MOORE; O’NEILL, 2020, p. 35). E eis que, quando recepcionadas por um Jack já adulto, no alto dos quarenta e quatro anos de idade, ele a surpreende quando revela que a rápida interação que tiveram em 1969 deixara nele uma forte impressão; tanto

128 Mina, Orlando e Emma tinham acabado de enfrentar o Anticristo, tendo a ação vitimado Allan

Quatermain. Após o sepultamento do companheiro, as três passam a ser procuradas pelo MI-5 e buscam um porto seguro, antes de se dirigirem ao Mundo Brilhante. Orlando, portanto, sugere que o trio viaje para a Ilha Lincoln da família Nemo.

quanto a que deixou na avó Janni, ainda jovem em 1898. É dessa maneira que tempo e espaço se entrelaçam, criando a trama narrativa de Mina e a família Nemo, donde fatos que ocorrem a personagens secundários [Nemos] são mencionados para mirar aspectos da história principal [de Mina] que se desenvolveriam posteriormente como uma ponte entre o tempo-espaço de aventura e biográfico.

Assim, existem dois momentos estritamente biográficos que aproximam Mina e Jack: 1º) em 1969, rapidamente, no convés do Nautilus, com Jack aos sete anos de idade; 2º) em 2009, na Ilha Lincoln, com Jack aos quarenta e quatro anos de idade, como anfitrião e um interesse especial nela. Daí, o que se situa entre esses quarenta anos funciona como um teste, uma provação relativa ao mundo biográfico experienciado pelos dois personagens, não cronológica, mas tematicamente. No tempo-espaço de aventura, o mundo de A Liga Extraordinária em que Mina e Jack precisam atuar e em que coisas lhes sucedem obedece a regras distintas das do mundo real; como o fato dela não ter envelhecido nada desde 1901 e ele sim, em tempo real.

Ironicamente, essa parceria improvável e, de certo modo, recebida com temor da parte de Mina, paulatinamente, vai se tornando um interesse amoroso mútuo em A Tempestade. Esse romance começa a ser sugerido quando Jack mostra o quanto sabia a respeito de Mina, convidando-a para ver o seu piano. Sobre isso, há mais nessa cena do que pode transparecer à primeira vista: em Drácula (STOKER, 2018), um dos detalhes a respeito da caracterização da personagem é que ela trabalha como professora assistente, sem nunca, entretanto, especificar na redação do seu diário o que de fato lecionava. Na adaptação fílmica de Francis Ford Coppola de 1992, enquanto taquigrafava o registro, diz apenas que era uma professora. Na versão em quadrinhos129 desse filme, com roteiro de Roy Thomas e arte de Mike Mignola, a profissão passa a ser de diretora-assistente da escola da Srta. Whitehall, em Londres. Por fim, em A Liga Extraordinária, Moore estabelece que Mina era uma ex-professora de música; informação essa que surge de um comentário misógino do Capitão Nemo em 1898: “Por que o Serviço Secreto colocaria uma professora de música na companhia de homens perigosos como Quatermain e eu? A senhorita não é qualificada” (MOORE; O’NEILL, 2019, p. 35). Como o bisavô de Jack tinha esse conhecimento, supõe-se que ele tenha sido passado para Janni que, por sua vez,

repassou para o neto; o que explicaria o flerte em torno do piano, isto é, algo que aproximaria o novo Capitão Nemo da outrora professora de música.

Figura 64: O novo e o velho estão entrelaçados em A Liga Extraordinária.

Fonte: Montagem do autor.130

Na página anterior, a figura 64 captura três passagens de A Tempestade que cobrem: 1º) o já comentado reencontro de Mina e Jack em 2009; 2º) um recorte da cena do piano, numa performance de modelos vivos, reconstituindo uma fotonovela131; 3º) e, por último, o momento em que o bisneto de Nemo se declara amorosamente, fazendo referência ao título132 do derradeiro volume de A Liga

Extraordinária. No âmbito dessa HQ e nos limites do roteiro de Moore, observa-se

relações recíprocas complexas – como as de Mina e a família Nemo – e cronotopos, cabendo examinar que um tempo-espaço de aventura e biográfico costuma ser abrangente ou dominante. Contudo, “os cronotopos podem incorporar-se uns aos outros, coexistir, entrelaçar-se, permutar-se, confrontar-se, contrapor-se ou encontrar-se em inter-relações mais complexas” (BAKHTIN, 2018, p. 229). Logo, esse nexo dialógico acaba resultando em um meio-termo, já não podendo o produto dele integrar nenhum dos cronotopos inter-relacionados: “Ele (esse diálogo) integra o universo do autor e [...] leitores. E esses universos também são cronotópicos” (Ibidem, p. 229).

Especificamente sobre Mina, a mudança do seu comportamento sexual, desde que se lança em aventuras com Allan Quatermain, e extrapolado quando Orlando entra em cena, é o oposto do esperado vindo de uma personagem vitoriana. Essa construção se dá no plano do tempo-espaço biográfico, mas, paradoxalmente, é o salto para dentro do tempo-espaço de aventura experimentado de 1898 a 2009 que os motiva a seguir, a vontade de escapar, de viajar pelo mundo e se colocar em cada um dos lugares visitados naquelas anotações da timeline – na figura 62. Quando Allan sai de cena e Jack passa a pleitear a função de pretendente na vida romântica de Mina, isso obriga o leitor a encarar com outros olhos o tempo-espaço de aventura que conecta esses dois, de 1969 a 2009, preenchendo uma nova biografia, talvez uma comunhão definitiva entre a obra partida de Stoker e a de chegada de Moore.

131 Trata-se de narrativa que mescla fotografia e texto verbal dentro de uma estrutura de história em

quadrinhos. Os enredos mais populares costumam ser destinados ao público feminino, trazendo tramas sentimentais e intrigas que, invariavelmente, desembocam em um final feliz. Na figura 64, os modelos que dão vida a Jack Dakkar e Mina Murray são respectivamente o artista plástico Sayed Sattar Hasan e a diretora de palco Catherine Nesbitt; já a direção de fotografia e o design gráfico ficaram por conta de Joe Brown. O recorte nesse trabalho captura duas das quatorze fotos dessa fotonovela. A referência de Moore para essa sequência veio das tiras de Doomlord, publicadas a partir de 1982 no periódico britânico Eagle.

132 A seguir, detalharemos não apenas os motivos por trás da menção de Jack a uma “tempestade” –

na figura 64, penúltimo balão de fala – como também as reminiscências que o termo e os acontecimentos na história guardam com a peça A Tempestade, de William Shakespeare.