2. O CASO DA CIDADE DE GUIMARÃES
2.2. Análise da política cultural da cidade de Guimarães
2.2.2. Municipalizar em governança
Como se caracterizava o panorama cultural de Guimarães antes da cooperativa
municipal Oficina ter passado a centralizar as práticas? Tratava-se de uma cidade com
uma dimensão associativa muito activa. Isabel Fernandes, directora do Museu Alberto
Sampaio, do Paço dos Duques e do Castelo de Guimarães, afirma que «esta cidade
sempre teve uma vida cultural muito própria, um peso associativo fortíssimo» (Anexo 6,
81). Rui Torrinha, programador artístico do CCVF, também identifica a importância do
movimento associativo como génese daquilo que é hoje a dinâmica cultural de
Guimarães: «Esta efervescência cultural nasce assente num conjunto de associações que
a cidade tem (…) e que ainda hoje contribuem de algum modo para o preenchimento
desse ecossistema» (Anexo 12, 127). Efectivamente, a partir do segundo quartel do
século XX, o movimento associativo da cidade desenvolve-se fortemente, sendo
particulares exemplos disso a programação desenvolvida pelo Circulo de Arte e Recreio
e pela associação Convívio, responsáveis pelo surgimento de eventos culturais e
práticas artísticas sob a forma de festivais de teatro e de música. É a partir desta
diversidade e heterogeneidade dos agentes culturais que se tece o panorama cultural da
cidade. A sua iniciativa pauta um cenário no qual a CMG virá a rever-se. É do conjunto
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destas iniciativas e da adesão que estas geravam junto das comunidades que o poder
local se abalança para uma política que possa potenciar esse capital social e cultural. A
sinergia do movimento associativo está na génese da política cultural da cidade de
Guimarães.
Segundo Isabel Fernandes, tem «havido nos últimos anos uma municipalização
da cultura. (…) qual tem sido a inteligência da autarquia? É saber agarrar projectos
locais com qualidade nacional e desenvolvê-los» (Anexo 6, 81-82). A administração
local vem alavancar, pela sua intervenção, múltiplos eventos que já marcavam o cenário
cultural de Guimarães
37. Se numa primeira fase as associações culturais (e os
promotores privados) assumiram uma série de projectos culturais, desenvolvidos à sua
escala e de acordo com os meios técnicos e humanos que conseguiam mobilizar,
posteriormente a câmara municipal aproxima-se do trabalho que vinha a ser incubado
por estas associações e promotores, passa a co-produzir
38aquelas iniciativas e
potencializa-as, projectando-as e incorporando-as sob a alçada de uma política cultural
que agrega e complementa o que vinha a acontecer por meio quase exclusivo das
associações. Para isso serve-se, de forma crescente, da delegação dessa produção na
cooperativa Oficina.
Tratar-se-á, contudo, de um adequado sistema de governança? A ponte com as
diversas entidades da cidade parece efectuar-se; a aproximação da CMG às iniciativas
que estas tomavam demonstra reconhecimento pelo seu trabalho, e interesse no retorno
cultural e social que dele resultava. A CMG opta, contudo, por co-produzir muitas
dessas iniciativas. Coloca-se a pergunta: pode a municipalização ser ainda assim um
acto de governança? E a centralização das práticas não descurará, paradoxalmente,
dinâmicas periféricas? Ao centralizar na entidade Oficina – por meio do CCVF – os
maiores eventos culturais da cidade e parte das formas culturais independentes, o
governo local poderá, no limite condicionar a expressão da identidade das comunidades
e as suas práticas culturais. As associações continuam a existir, e outros actores locais
também terão o seu espaço – mas, integrados num sistema criado pelo poder político,
37 Isabel Fernandes refere os seguintes exemplos: «os festivais Gil Vicente não foi a câmara quem os
começou, foi o Convívio. O Guimarães Jazz, não foi a câmara que o criou, foi o Convívio. As sessões de cinema ao ar livre, não foi a câmara que lhes deu corpo, foi o Cineclube de Guimarães. O Noc Noc tem existência própria antes de 2012, não nasceu com a CEC». (Anexo 6, 81-82).
38 A título de exemplo, o caso do festival de música erudita Encontros da Primavera e dos Cursos
Internacionais de Música de Guimarães, criados pela associação Convívio, que a partir de 2001 passam a ser co-produzidos pela CMG. De 2006 em diante são fundidos num só, os Encontros Internacionais de
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abandonam as suas possibilidades de expressão e presença independente nas periferias,
e na dimensão popular que muitas vezes as associações representam para as
comunidades. Integrado na política cultural da cidade, o movimento associativo ganha
visibilidade ao mesmo tempo que perde autonomia. Atente-se no exemplo que o próprio
vereador José Bastos refere: «os Festivais Gil Vicente estiveram praticamente a cair
porque entrámos em desacordo entre a CMG, a Oficina e o Circulo de Arte e Recreio,
porque este defendia um tipo de programação completamente distinto. Esticámos a
corda e dissemos não: “somos parceiros, mas temos um projecto de grande escala que é
o CCVF, e portanto o festival tem uma linha programática alinhada com o CCVF.
Querem, querem; não querem, paciência. Isto não tem base de discussão. Se houver
discussão, um de nós sai da parceria e continuamos o projecto”» (Anexo 7, 94). O
projecto de grande escala
– por meio do CCVF – é a política cultural municipal. As
práticas submetem-se à escala e à validade desta estratégia que domina o espaço cultural
da cidade, apropriando-se dele para se afirmar de uma outra forma, e projectar-se por
meio de novos valores. Este exemplo demonstra que o modelo de governança adoptado
pela CMG não é isento de tensões com os restantes agentes.
A atenção dual e paralela ao património e à criação artística é uma das
características definidoras da política cultural de Guimarães. Os percursos iniciam-se
praticamente em simultâneo: a segunda metade da década de 80 inaugura um novo
momento político. Nesta fase ocorrem, praticamente em simultâneo, iniciativas que
visam a reabilitação patrimonial do centro histórico da cidade, assim como os primeiros
exemplos de organização de eventos artísticos. O cinema no centro histórico da cidade
afigura-se como um dos primeiros projectos que une as duas linhas de actuação. Três
momentos-chave dos últimos trinta anos ilustram esta mesma ideia: em 2001, ao tornar-
se Património Mundial da UNESCO, a cidade vê distinguido o seu trabalho no sector do
património; em 2005, ao inaugurar o CCVF, a cidade mune-se de um importante
equipamento dedicado às artes contemporâneas, de elevado capital técnico e simbólico;
e por meio da CEC em 2012, Guimarães vê consagrada a dinâmica patrimonial e de
criação contemporânea que vinha a fomentar ao longo das décadas anteriores.
O CIAJG, maior dos equipamentos inaugurados no decorrer da CEC, afigura-se
como uma ilustração dessa mesma ideia
39: o passado e a contemporaneidade, numa
39
Ressalve-se a afirmação de Nuno Faria, que não considera que o projecto tenha nascido da instrumentalização dessa ideia (Anexo 10, 114-115).
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perspectiva holística, abarcam aquilo que a cidade de Guimarães é. Esta ideia, resultante
de uma simplificação, comunicação e reprodução simbólica, resulta num traço que
marca a identidade da cidade conforme apresentada pelo poder político (Lane e
Wagschal 2011, 228). O projecto dirige-se às diferentes comunidades que abarcam o
seu território partindo daquele pressuposto, mesmo que cada equipamento responda a
diferentes pessoas ou necessidades.
A Casa da Memória, inaugurada apenas em 2016, parece ter por objectivo
colmatar uma dimensão que vinha a ser negligenciada pela actuação política do
município. Ao criar um equipamento que considera os modos de vida e a identidade das
comunidades do concelho como a sua missão, está a convocar uma dimensão nova que
a sua política cultural porventura ainda não tinha ponderado, nem por meio das políticas
de criação contemporânea nem pelas relativas ao património histórico edificado.
Mas em que medida vem a Casa da Memória criar uma ponte entre a vida das
comunidades da cidade e do concelho com a restante política cultural de Guimarães? O
vereador José Bastos defende que «(…) grande parte da população sabe que existe o
CCVF - não sabe muito bem aquilo que acontece lá, mas orgulha-se dele» (Anexo 7,
86). Segundo o então director executivo do centro cultural, uma das grandes apostas do
CCVF foi o investimento no Serviço Educativo da instituição. Mesmo tendo em conta
os «condicionalismos» demográficos, manteve a convicção de que este tipo de serviços
«vai produzir efeitos a longo prazo» (Anexo 7, 87); e o centro cultural, em coordenação
com a CMG, continua a promover uma relação de proximidade com as escolas por meio
de projectos educativos. Também Nuno Faria, do CIAJG, destaca a importância do
Serviço Educativo na programação do centro, depositando esperanças nas novas
gerações que o visitam: «(…) acredito que daqui a 20 anos haja uma maior
compreensão do que isto é. Mas é preciso perceber se os ciclos políticos estão dispostos
a esperar 20 anos» (Anexo 10, 118).
Efectivamente, o tempo não é o único critério a ter em conta na implantação de
um projecto cultural. Outros parâmetros se colocam na medição do sucesso de uma
política cultural de cidade. Se decorre das entrevistas a ideia de que a população de
Guimarães sente como seu o património que a envolve, também se detectam
dificuldades na escolha de caminhos que aproximem os projectos de criação
contemporânea às práticas culturais da comunidade. O programador artístico do CCVF
reconhece que «(…) há partes da cidade muito mais atractivas: no Verão é impossível
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