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NÍVEL DA COOPERAÇÃO DO LEITOR: ONDE SE PREENCHEM OS PRIMEIROS VAZIOS E NÍVEL DAS ESTRUTURAS NARRATIVAS

4 A EXPERIÊNCIA DE UMA PASSAGEM: A ANÁLISE

4.3 NÍVEL DA COOPERAÇÃO DO LEITOR: ONDE SE PREENCHEM OS PRIMEIROS VAZIOS E NÍVEL DAS ESTRUTURAS NARRATIVAS

E DISCURSIVAS: OS TÓPICOS TEXTUAIS

Esses processos de análise serão realizados em conjunto, pois entraremos no nível da significação, que é uma semiótica mais aberta e trabalha com os processos simbólicos. É a partir destes níveis que os contratos de leituras são firmados, levando à construção de leitores tanto de segundo nível quanto de leitura de consumo.

Aqui estamos tratando, então, do enredo. A primeira teoria sobre o enredo é de Aristóteles e é aplicado à tragédia, porém todas as teorias das narrativas recorrem a este modelo. Para Aristóteles, o enredo fala da imitação de uma ação (seqüência de acontecimentos) e isto gera um enredo, ou uma seqüência narrativa. De acordo com Aristóteles, o estilo ou a escrita e a construção psicológica ou a construção dos caracteres são acessórios para a elaboração de um enredo. Neste ponto, acreditamos ser pertinente trazermos as categorias apreciativas de Aristóteles, já trabalhadas anteriormente, onde o valor positivo está em oposição ao valor negativo; assim, temos: na estética: o belo x o feio; na ética: o bom x o mau; na morfológica: conforme x disforme e na tímica: eufórico x disfórico. È importante retornar esta estrutura, pois o que observaremos será que, em toda a série de

Indiana Jones, segue essa estrutura clássica entre o bom versus o mau, entre o belo versus o feio, pois as personagens representantes do bem, Indiana Jones e as suas

personagens femininas, são sempre belas e boas. Por outro lado, as personagens do mal, os oponentes, são sempre feios e terríveis, com uma aparência física disforme e com a própria estrutura tímica disfórica. Isto denota uma estrutura clássica na construção do enredo e na construção das personagens. Assim, o próprio modelo clássico de Aristóteles, bom x mau, é uma invariante no enredo da série.

Observando, então, a construção clássica que foi estruturada por Aristóteles e que até hoje serve de referência, Eco245 observa, ainda, que, muito embora essa teoria seja aplicada à tragédia e não ao romance, para ele pode-se trabalhar com ela em todos os modelos, pois ela, a teoria ou o modelo de narrativa proposta por

Aristóteles, se adequa a qualquer forma de narrativa. Para Eco, a teoria aristotélica é uma estrutura simples, e são as estruturas simples que perduram. Eco apresenta o que ele chama de “receita” dessa formação de narrativa:

[...] tomem uma personagem com que o leitor possa identificar-se, não decididamente ruim mas tampouco excessivamente perfeita, e façam com que lhe aconteçam casos tais que ela passe da felicidade à infelicidade ou vice-versa, através de peripécias e reconhecimento. Retesem o arco narrativo além de todo limite possível, de modo que o leitor e o espectador experimentem piedade e terror a um só tempo. E quando a tensão tiver atingido o auge, façam intervir um elemento que desate o nó inextricável dos fatos e das conseqüentes paixões – um prodígio, uma intervenção divina, uma revelação e um castigo imprevisto; que daí sobrevenha, de algum modo, uma catarse [...] que encontra finalmente uma solução aceitável, coerente com a idéia que temos sobre a ordem lógica (ou fatal) dos eventos humanos246.

Assim, nos três filmes, já nas primeiras cenas firma-se o contrato de leitura, de ratio facilis, onde a ação e o entretenimento são as tônicas. Remetendo-nos à narrativa clássica de Aristóteles: no primeiro, Indiana Jones está em plena selva peruana, no templo Chachaoyan, resgatando uma estatueta da deusa da fertilidade, e consegue passar por muitas armadilhas feitas para que ninguém conseguisse alcançar a estatueta; no segundo filme, há inicialmente um musical, para situar a época, e após muita ação para recuperar um antídoto do veneno que Indiana Jones tomou com uma taça de champanhe quando estava trocando o artefato pelo diamante; no terceiro filme, Indiana Jones, ainda adolescente, passa por uma situação de perigo para resgatar das mãos de ladrões peças sagradas dos astecas, mas sai sem problemas, sem as peças. Novamente aventura e ação.

A estrutura invariante, nas narrativas iniciais nos três enredos da série, é apresentada como tópicos:

Primeira narrativa:

− situação inicial – Indiana Jones na busca um artefato arqueológico - conflitos de interesses – perseguições – Indiana perde o artefato, mas sobrevive.

Segunda narrativa:

− situação inicial – Indiana Jones trocando um artefato arqueológico por outro – conflitos de interesses – perseguições – Indiana perde o artefato, mas sobrevive.

Terceira narrativa:

− situação inicial – Indiana Jones resgatando um artefato arqueológico – conflitos de interesses – perseguições – Indiana perde o artefato, mas sobrevive.

Podemos reconhecer que, nas três instâncias, um mesmo elemento narrativo permanece invariável. Apenas as situações de circunstâncias se alteram para dar o colorido e as nuances específicas de cada filmatografia. As narrativas se conjugam no mesmo nível: simpatizam quando recuperam artefato e antipatizam quando perdem o artefato. Em Foucault, “a identidade das coisas, o fato de que possam assemelhar-se a outras e aproximar-se delas, sem contudo se dissiparem, preservando sua singularidade, é o contrabalançar constante da simpatia e da antipatia que o garante”247. São espaços onde há reencontros, onde as figuras reaparecem com suas singularidades sempre em mobilidade, em alternância, ora simpatia ora antipatia. Uma não existe sem a outra. Assim, o movimento do artefato ora é mágico e mitificado e, em outro, não carrega mais uma narrativa mágica de mito antropológico.

Retomando a estrutura narrativa de Aristóteles, temos uma personagem com quem o leitor identifica-se e uma estrutura de enredo clássica: não é uma personagem “decididamente ruim, mas tampouco excessivamente perfeita”, acontecem situações em que ela passa da felicidade à infelicidade ou vice-versa, através de peripécias. Neste caso, o arco narrativo é retesado ao máximo para o suspense e ação. “E quando a tensão tiver atingido o auge, façam intervir um elemento que desate o nó inextricável dos fatos e das conseqüentes paixões – um prodígio, uma intervenção divina, uma revelação e um castigo imprevisto; que daí sobrevenha, de algum modo, uma catarse [...] que encontra finalmente uma solução

aceitável, coerente com a idéia que temos sobre a ordem lógica (ou fatal) dos eventos humanos”248. É essa é a tônica do enredo principal de Indiana Jones. A aventura inicial tem como constante a perda o artefato, Indiana não consegue alcançar o seu intento, mas sobrevive. Sobrevive e com mais vontade para a próxima busca, a principal: a procura do artefato sagrado.

Para o enredo principal, temos a seguinte estrutura invariante: 1. Indiana Jones é solicitado para a busca de um artefato sagrado; 2. IJ encontra a parceira feminina em situação de perigo;

3. IJ encontra com os vilões também em situações de conflitos e de perigo; 4. IJ e a parceira fogem dos oponentes, mas não recuperam os artefatos; 5. I J e a parceira são perseguidos pelos vilões,

6. IJ detém a posse do artefato sagrado; 7. IJ e a parceira sobrevivem;

8. IJ entrega o artefato; 9. IJ volta a ser professor; 10. IJ sozinho.

As três narrativas envolvem, contudo, a busca de um artefato arqueológico, sagrado, que detém em si mesmo mistério, magia e poder:

1. poder para se comunicar com Deus; 2. poder na busca da Arca Sagrada; 3. poder de dominar o mundo;

4. poder de alcançar da prosperidade, com as pedras Sankaras; 5. poder de busca da eternidade;

6. poder de conhecer o Santo Graal.

Conclui-se, pois, que esta pode ser considerada uma outra estrutura narrativa absolutamente repetitiva, onde o Poder se configura como uma linha isotópica na composição da série. Portanto, nessa construção do Poder observamos uma possível dicotomia entre o Sagrado e o Profano, apresentados no enredo, que terá sua confirmação nos cenários. A configuração tencionada entre sagrado e profano, tipificada atualmente na cultura de massa e altamente explorada pela linguagem cinematográfica, revela:

Na primeira narrativa:

− sagrado – o Egito e os seus mistérios (a Arca contém os 10 mandamentos);

− profano – as cobras e as metáforas que delas se originam.;

Na segunda narrativa:

− sagrado – a Índia e a sua cultura milenar;.

− profano – bichos peçonhentos (baratas, lacraias e outros).

Na terceira narrativa:

− sagrado – o Santo Graal e sua pretensa localização em Veneza, Itália; − profano – catacumbas associadas a esqueletos, detritos e decomposição

(ratos).

O esquema se pretende invariante, uma vez que os elementos que presentificam em cada filme são:

− IJ recupera o artefato arqueológico, mas não consegue (aventuras iniciais);

− Nova aventura – trama principal: IJ busca um artefato sagrado;

− IJ e a personagem feminina, vicária – para rir e provocar situações hilariantes;

− IJ e os vilões. Situações de perigo; é neste ponto que Indiana e a personagem feminina entram em contato com o profano, os bichos. As cobras, em um salão descoberto numa escavação no Egito; as rastejantes, num subterrâneo sagrado na Índia; os ratos, nas catacumbas em Veneza. As personagens femininas são constantes na presença do profano;

− IJ e a personagem feminina localizam o artefato;

− Os vilões conseguem reaver o artefato, sempre muita ação e situações hilariantes;

− IJ e a personagem feminina enfrentam novas situações de perigo; − IJ e a personagem feminina recuperam o artefato sagrado;

− IJ e a personagem feminina dominam o poder maléfico dos vilões; − as tramas são solucionadas: a Arca Sagrada fica no depósito do exército

norte-americano; a pedra de SanKara volta para a aldeia; e o cálice cai na fenda que se abriu na terra, aonde ninguém mais pode pegar;

− as personagens femininas têm seu final: Marion abre um bar em NY; Willie vira cantora famosa e Elsa cai na fenda com o cálice e morre. − Indiana Jones e a situação inicial.

Essas são as invariantes que podem ser visualizadas a partir da decupagem do filme Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida, apresentada em apêndice, ao final desta tese.

Esta série caracteriza-se, então, pela aventura e ação. A estrutura narrativa utiliza o esquema/gravata ou a narrativa clássica de Aristóteles, como observa Eco.

Mesmo assim, o serial está caracterizado por pequenas variações no próprio esquema, que transforma cada episódio em único. Remete à idéia do fractal, onde se consegue ver cada filme isoladamente, pois na parte se tem o todo, e, com isto, não o descaracteriza. Uma das principais alterações da série é a apresentação cronológica. Ao assistir a série inteira, percebe-se que há uma alteração: o primeiro filme ocorre em 1936, o segundo em 1935 e o terceiro em 1937, mas, neste último, as cenas iniciais apresentam a adolescência de Indiana e as principais características da personagem: seu medo de cobras e o fato de ser exímio no manuseio com o chicote. Faz-se possível pensar no fractal: assistir isoladamente cada um dos episódios da série e não se perder de vista o todo. E, ao ver a série completa, tem-se, então, a totalidade. Para Eco, aqui encontramos um tipo de temporalidade, um tempo “mascarado”, pois a obra faz o espectador sentir que ela se desenvolve linearmente, muito embora não seja o tempo transcorrido, linear, e só ao visualizar as três produções é que a temporalidade se acha completa.

Outra discussão apresentada por Eco é a questão de que a obra impõe um certo ritmo de leitura, determinando paradas e estabelecendo os pontos de expectativas. E esta série é rica nestes procedimentos, como já observamos nas construções de invariantes. Também podemos falar do tempo do espectador, que será sua competência de reconhecer as citações; aqui, por sua vez, é o espectador quem dirá o seu tempo. Como já observamos, para Eco, através da série, surge o leitor crítico, aquele capaz de vivenciar a obra de duas maneiras: vivencia primeiro o tempo do enunciado mais rapidamente; e em segundo, mais lentamente, revisita as estratégias do discurso. E esta série possibilita essas muitas leituras.

O que observamos, nestas três histórias, é sempre o mesmo enredo: a personagem-tipo sempre em situações de muita ação, em uma seqüência de ações que se repetem para construir as características, o estilo da personagem, sempre com uma aderência ao verossímil e a um sistema de expectativas direcionadas ao espectador. Para Eco, são repetições produzidas para o entretenimento, são funcionais e, por mais paradoxal que possa parecer, é justamente por estas repetições, pela “narração clássica”, que o espectador consome uma obra ou se entrega a ela. São as repetições, as memórias que tornam as narrativas “com um fascínio ao qual nos é impossível fugir, o que torna humanamente legível o revival

que a coloca hoje como objeto de nosso interesse, dividido entre desconfiança e admiração”249.

O que temos em Indiana Jones é exatamente isto: a repetição à exaustão de modelos que acabam se transformando em algo fascinante. São três histórias muito bem montadas, com repetições conhecidas de dicotomias de topo: bom x mau, sagrado x profano, o poder, as personagens femininas belas e dependentes, opositores em busca de poder, cenas-tipo de perseguição e um personagem principal que, conforme Aristóteles, “não é decididamente ruim mas tampouco excessivamente perfeito”, ou seja, muitos processos previsíveis (perseguições, desfechos, etc.) proporcionam um prazer na narrativa construídos para agradar ao leitor mais ingênuo e também para instigar a uma segunda leitura.

4.4 NÍVEL DOS PASSEIOS INFERENCIAIS: AS LEITURAS DO ESPECTADOR;